Survive

Segunda Fuga - The Diary Of Jane


Alguns minutos depois...

— O que? Um incêndio em Yamairi? - O homem falava ao telefone, parecia preocupado - A vila está condenada! Ajudar? Não posso, você sabe...Não posso deixar a minha filha aqui sozinha, e nunca que eu permitiria que uma criança visse algo tão terrível. Claro, trancarei bem a casa, não se preocupe. Boa sorte! - Ele desligou, por um momento atônito. Um incêndio havia começado, e tudo indicava que não havia como pará-lo. Eles estavam em sua última caçada...E estranhariam a sua ausência.

Uma decisão tomou-lhe a mente. Correu até seu quarto, pegando o cofre minúsculo e o abrindo, tirando um bom número de notas - todas as suas economias.

— Papai... - Uma voz infantil vinha da porta. Ali parada estava sua filha de oito anos, os cabelos castanhos e a pele excessivamente pálida - O que houve?

— Um grande incêndio! Mas não se preocupe querida, nada acontecerá conosco.

— Por que está pegando as economias?

— Estou conseguindo esconder por enquanto sobre você, mas quando tudo normalizar, será impossível inventar mais mentiras. Agora com tudo isso, qualquer coisa que eu diga e já recebo olhares desconfiados. Estou apenas aproveitando a oportunidade para fugir. Inventarei alguma desculpa.

— Papai...

— Vamos embora. Para longe. Vida nova na cidade! Que tal?

— Papai...Não precisa se preocupar comigo...Vamos jogar tudo fora por minha culpa?

— Claro que não! - Ele correu até ela para abraçá-la - O papai já planejava sair daqui mesmo. Olhe, você não quer conhecer sua mamãe? - Perguntou, apontando para o porta retrato de uma mulher linda e sorridente, que ficava em uma cômoda ao lado da cama. A menina acenou com a cabeça positivamente - Vamos atrás dela! Papai sabe onde ela está. Vamos lá com a mamãe e ficamos com ela - Nem tudo era verdade. Ele não sabia onde ela estava. Mas teriam bastante tempo para procurá-la, e não queria ver a filha preocupada.

— Mas...E se a mamãe não me querer? Eu sou um monstro...

— Tenho certeza que a mamãe não vai se incomodar. Agora vamos. Papai vai arrumar nossas coisas e partiremos. Preciso que você fique quietinha no banco de trás até passarmos por todos os titios maus. Eles não desconfiam de você. Quando estiver perto do amanhecer, papai esconde você e seguimos viagem,ok?

— Assim os titios maus não vão me pegar?

— Não. Nenhum titio mau vai te pegar, papai promete.

Ela sorriu, mas logo voltou a ficar séria.

— Papai...Estou com fome.

— Tudo bem. Fique aqui, não coloque um pé fora de casa. Vou buscar comida para você. - deixando a menina na sala, ele saiu cuidadosamente.

Quando atravessava a rua se deparou com uma idosa que era sua vizinha. Ela usava um avental sujo de sangue, e puxava com dificuldade um Ressuscitado que estava dentro de um saco de pano, amarrado nos tornozelos, o saco ensanguentado na área do peito, a estaca rasgando parte do tecido do saco.

— Ora se não é o meu vizinho adorável! - Exclamou a boa velhinha. O homem apenas sorriu - O que houve que não está ajudando?

— Sabe como é, criança em casa...Mas se quiser, posso te ajudar.

— Adoraria - Ela sorriu, e ele segurou o saco pelo ombro. Ficou com medo só de pensar que sua filha poderia terminar em um saco daqueles.

Eles caminharam por mais ou menos uma quadra, a velhinha contando casos e cenas que vira ao ajudar suas amigas com a carnificina. Elas não exatamente atuavam como os homens: procurando e matando as criaturas. Apenas juntavam os corpos em buracos, acendiam fogueiras neles e cantavam músicas religiosas. Ela também contou, aterrorizada, que encontrava vários conhecidos e amigos enquanto, por curiosidade, abria os sacos e verificava os rostos dos mortos. Também comentou sobre o incêndio que ainda não conseguiram controlar.

Em um momento, ela foi na frente e ele usou o cadáver para atingir a cabeça da velhinha com força suficiente para que ela apagasse. Com cuidado,pegou o corpo dela, deixando o corpo do morto ali. Largou-a na cama do quarto da menina, deixando que a filha se alimentasse. Terminado o banquete da pequena, ele pegou ela e a deixou no banco de trás do carro, junto com uma mala para ele, uma para ela e uma mala especial para colocá-la quando amanhecesse.

Quando estava terminando de ajeitá-la no carro, notou seu olhar distante.

— Algo errado?

— Ainda não me acostumei com isso - sua voz era fraca.

— Teremos tempo para você se acostumar. Agora vamos. O caminho é longo.

Ele fechou a porta onde a menina estava e então entrou no banco do motorista. Ligou o carro e partiu. Para longe de tudo.

Jane...Eu te encontrarei, pensou ele, olhando fixamente para a rua.

Um silêncio perdurou por incontáveis minutos, até ele estar próximo da estrada principal. Começou a lançar olhares furtivos para o espelho retrovisor, fitando sua filha. A sua semelhança com a mãe era assustadora: os cabelos castanhos, os olhos de um verde escuro, até mesmo o modo de falar era igual. Não fosse a pele exageradamente pálida - Jane era morena - a pequena era uma cópia da mãe, que viera de um lugar distante e sumiu da mesma maneira que chegou em Sotoba: de maneira misteriosa e de repente, sem qualquer aviso prévio.

Ele sentia que Jane estava viva ,e queria que ela sentisse falta dele, como ele sentia dela. Jane nunca foi de se apegar às coisas. Era um pássaro que queria voar.

Ele não queria ter sido mais um para ela. Eles tiveram uma filha. Uma linda filha. Ele devia ter alguma importância para ela.

A menina encostou a cabeça no banco e começou a murmurar baixinho uma canção, que ele percebeu mais tarde que era a mesma do rádio. Ele aumentou o volume deste, as memórias voltando à sua mente.

A morte da pequena. A suspeita de os Kirishiki serem na verdade vampiros. Os quatro dias mais torturantes da sua vida. O momento em que a menina despertou, e sugou seu sangue. As preocupações da vida da nova vampira.

O que mais o entristecia era que ela não cresceria mais; seria criança eternamente. Ela não se formaria, não se casaria, não formaria uma família. Seria eternamente sua menina. Talvez, por esse lado, não fosse tão ruim. Não para ele. Agora para ela...

Estava distraído admirando sua garotinha.Quando tornou a olhar para a rua,percebeu que agora estava na saída da cidade,e notou também o vampiro que atravessava correndo a estrada...

Ele tentou parar, e o Ressuscitado deu um pulo,assustado. Ele virou o carro violentamente, que saltou da estrada e caiu com um estrondo, à metros de distância da mesma, cercado pela escuridão.O carro capotou uma ,duas vezes, e parou.O vidro tinha quebrado. A cabeça do homem sangrava, e a perna também. A menina olhava para os lados assustada.

Rapidamente, ele abriu a porta dela e a pegou, abrindo a terceira mala que trazia e a colocando deitada em posição fetal ali.

— Papai... - Ela começou, preocupada.

— Fizemos muito barulho - disse ele - vão desconfiar se verem você intacta desse jeito, após um acidente assim - e então apontou para os ferimentos que se cicatrizavam rapidamente nos braços e no rosto da menina - Se acalme. Vamos ficar bem. - Ele sorriu.

— Seu rosto... - Ela se levantou, tocando com suavidade a testa dele, cujo corte também cicatrizava - Você...

— Teremos que conversar sobre isso depois - Disse ele - agora deite. Não se assuste minha pequena, nós sairemos dessa.

Ela se encolheu em posição fetal, os braços cruzados protegendo o peito. Ele fechou a mala e a trancou. Segurando a mala, ele deu a volta pelo carro, observando-o. Sua visão era boa no escuro, e não teve dificuldades em enxergar os danos do carro. Os vidros quebrados e boa parte amassada (incluindo duas portas).

Não tinha condições de seguir com aquele carro. Precisariam se virar com outro meio de transporte. Virando as costas, ele se misturou à escuridão, carregando a menina na mala.

Você é um lobisomem. Vai ficar tudo bem. Você protegerá a sua filha, ele pensava,e logo as memórias voltaram. Sua filha o mordendo e sugando seu sangue, ele assustado demais para reagir. Ela era nova demais para entender sobre a hipnose que poderia trazer à quem mordesse, mas não foi necessário; seu pai deixava ela se alimentar dele todos os dias, mesmo sabendo que isso estava matando-o.

O dia em que morreria. A última noite que ela sugou seu sangue. E o fato dele ter acordado bem no outro dia, notando as novas habilidades. As pesquisas intermináveis à noite. Os momentos em que passou a caçar para a sua filha. Inclusive durante uma noite, se deparara com o Kirishiki Tatsumi, ouvindo ele falar sobre o que seria sua raça: os lobisomens (embora ele nunca tenha virado de fato um lobo ou qualquer coisa parecida). Ele não precisava dormir quando amanhecesse. Tinha pulsação, respirava, e sua pele não era tão pálida, sem contar com o fato de ter despertado bem antes que sua filha.

Era mais forte do que um Shiki comum(foi assim que ele viu a tal Sunako falar?). E usaria essa força para proteger a menina, até mesmo Jane.

Jane...

Ele estava escondido próximo à beira da estrada, quando ouviu um ruído. Um carro se aproximou, seguido de outros dois. Todos os homens desceram correndo até o antigo carro que ele até então ocupara, deixando três carros ali parados, sem quaisquer vigias.

O momento perfeito.

Ele saltou para o primeiro carro mais à frente ,abrindo a porta de trás e colocando a mala no banco .Entrando no banco do motorista, notou que a chave ainda estava na ignição. Não poderia ser melhor.

Dando a partida no carro, ele continuou seu caminho,ignorando os gritos daqueles homens que se seguiram depois. Já estava bem longe quando deu um suspiro de alívio.

Estava indo para a cidade. Sua filha estava em segurança. Ele estava com o dinheiro consigo. Iria para a casa de um irmão, explicaria-lhe tudo. Ele deveria entender. Depois, seguiria caminho até se encontrar com Jane.

Jane...Estamos perto, meu amor.

E ele foi embora, para nunca mais voltar.

Something's getting in the way
Something's just about to break
I will try to find my place in the diary of Jane
As I burn another page
As I look the other way
I still try to find my place in the diary of Jane
So tell me how it should be

(Algo está entrando no caminho
Alguma coisa está prestes a partir-se
Vou tentar encontrar o meu lugar no diário de Jane
À medida que eu queimo outra página
À medida que eu olho para outro lado
Eu ainda tento encontrar meu lugar no diário de Jane
Então me conte como isso deveria ser)