Fomos escoltados por dois guardas nazistas até a porta de um Fox, onde, na porta do hotel, uma multidão de fãs grita histérica por nós. Lá estão as fãs gritando, chorando, com papel e caneta nas mãos para pedir autógrafos. Todas histéricas. Escrevo um "com amor, Heinrich Holger" para uma delas, que aperta o papel autografado contra o peito, contente. Anne faz a mesma coisa.

Quase fui puxado por uma delas, se não fosse pelo guarda nazista que envolveu nos braços, quando fomos direto para o carro, que seguia caminho.

Margot não está com a gente, pois foi lá resolver um lance com a nossa volta a Munique, amanhã. Estou com nervo à flor da pele com a entrevista no Reichstag, no que Hitler II vai fazer comigo e com a Anne. Me disseram que ele vai estar lá. É claro, é a sede do governo, é lá onde ele mora.

Eu olhava pela janela do carro em movimento. Os cartazes dos cinemas da Alemanha tem as nossas imagens e acima, está escrito:

Heinrich e Anne: Os vencedores da 64ª edição do Survival Game

Aquilo fez os calafrios percorrerem o meu corpo. Primeiro, Hitler II nos ridicularizando, agora nos exaltando. Só porque ganhamos a 64ª edição. E o resto dos judeus? Continuam em quarentena e na sarjeta! Fico pensando em Edith e Moe. E no resto dos meus colegas da escola e da rua. Mordo o lábio inferior?

– Heinrich, algum problema? - Anne me perguntou.

– Nenhum. - murmurei.

Continuei a olhar pela janela. A nossa imagem está também nos outdoors, nas telas de TVs à venda na vitrine. Em uma delas, eu vi o esboço heróico da gente, com as colinas como pano de fundo, atrás de nós. Deixei as coisas rolarem como estão. Voltamos a Munique amanhã, reencontramos os nossos familiares e amigos, daí as coisas voltam a ser como eram antes. Mas ouvi dizer que os vencedores, quando voltam para casa, em uma semana deixarão a antiga casa para morar em uma novinha em folha, na área dos arianos. Enfim, tornar-nos-emos arianos. Uma limpeza étnica pós-Reality. Ainda não sei se podemos ter permissão de visitar os nossos amigos judeus, quando éramos judeus antes do programa.

E assim chegamos em frente à fachada do Palácio. Fomos recepcionados por uma multidão de fãs gritando. Uns dois guardas nazistas abriram a porta do me lado e nos escoltaram até a porta (subindo à escada), donde dava para o hall principal. Era imenso o local. Tudo era luxo para os meus olhos. O presidente do Reichstag Wilhelm Hargenhoff nos apertou a mão, dizendo:

– Vocês são os vencedores da 64ª edição do Survival Game, não é? - perguntou.

– Somos nós mesmo. - respondi, retribuindo o aperto.

– Oh, é uma honra tê-los aqui. - disse, com muita cortesia. Era um homem esbelto, cinqüentão, cujo cabelo é grisalho e com uma mecha branca no lado direito, dando uma ênfase no topete. Tinha bigode e barbicha, ambas grisalhas e era alto. Tinha um semblante paterno e feliz. Quanto a Hitler II? Ele é apenas um líder de estado, um führer. Define as estratégias da força alemã.

Ele nos conduziu para um lado do hall, onde tinha um elevador que conduzia para a varanda, onde Hitler II estava naquela noite, rindo do que eu estava falando para Lorne.

Ao abrir a porta dupla do elevador, chegamos a um outro hall bem maior que o principal. Lá no fundo, dava para reconhecer por trás um homem com uma tarja da suástica nazista: Hitler II, de costas, conversando com um grupo de homens de uma posição inferior a sua. Capitães, suponho. Anne se inclina para o meu lado e sussurra no meu ouvido:

– Você supõe que seja ele? Eu balanço a cabeça em concordância.

– Leu o meu pensamento, não foi? - inclino para o seu lado.

Ela dá de ombros. Eu o vejo em vários lugares. Sua exaltação pela pátria, culto ao líder. Nem penso em tirar cara ou coroa, pois no momento que o citado homem se vira para nós, pude perceber: era Hitler II em pessoa.

Ele pergunta para nós, em especial para Anne:

– Vocês estão prontos para a entrevista? - sua voz era taciturna.

Ele sempre reconhecia os vencedores de perto. Anne balança, enquanto eu respondo que sim. Logo ele nos conduz à varanda, onde ficamos de um lado, de mãos dadas. A partir daí, ele, com o seu talento para a oratória, posta-se diante do microfone e começa a falar:

– Sua atenção, por favor. - e lá embaixo, as pessoas pararam com o alvoroço. - Obrigado. Há muito tempo, que a Alemanha se reunificou, depois de 45 anos dividida, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, viemos presenciando muita paz e muita euforia, no momento em que o nosso país venceu a Copa Mundial de 2014, no Brasil. Porém a nossa situação complicou ainda mais, desde que o Brasil resolveu dar um ultimato no revanchismo, revertendo os 7X1 para nós, na copa 2038, no nosso próprio país. A partir de então, as coisas pioraram aqui. As crises econômicas se alastraram por aqui, as greves revolucionárias e trabalhistas pressionando o governo. Mas, com o Putch do III Reich no mesmo ano, consegui entrar no governo, porque eu quero dar do bom e do melhor para o povo ariano e julgar os judeus e os demais inferiores a nós. Pois tudo que eles fizeram foi prejudicar à Pátria, com muita ganância e trapaça. Mas isso vai mudar, com toda certeza. E com o meu antecessor, Fritz Hollharf, falecido no ano e fundador do Survival Game, eu fiz questão de aperfeiçoá-lo para o bem da Pátria. E isso arianizou os judeus, os então chamados ex-judeus. E com vocês, estes dois ex-judeus - apontou para nós. - lutaram com muita clemência e sacrifício durante o Reality. Portanto, merecem um grande êxito na história da Alemanha!

E todos aplaudiram e ovacionaram para nós, enquanto Hitler II nos condecorou, pregando uma medalha de ouro, cuja águia e a suástica nazista ficavam no centro do disco de ouro e fita era vermelha, branca e preta. O ouvi sussurrar um meus parabéns para nós. Depois:

– Agora dêem as mãos.

E saiu da nossa frente. Já estou de mãos dadas com a Anne faz muito tempo. Demos mais um passo para o meio e depois para a frente, onde nos postamos ao parapeito da varanda e erguemos as mãos dadas ao alto, o que fez o povo ovacionar mais alto. Eu esbocei um sorriso na cara, enquanto a Anne sorria semicerrado. Logo depois, Hitler II gritou para o povo:

– TUDO PELA ALEMANHA!

Agora entendi. Era um slogan do governo. Eu não percebia isso há muito tempo. Nem sempre eu estava atualizado nas notícias do governo, da Guerra, tampouco o Holocausto. Só me atualizava nas edições do Reality.

Em seguida, voltamos para dentro do prédio. Perguntei ao führer:

– Mas e a entrevista?

– Vocês terão a entrevista. - ele respondeu. - Até agora foi a condecoração de vocês.

Antes de entramos no elevador, ele nos parabenizou. Quando a porta fechou, fiquei matutando sobre a forma como trata os demais judeus. Depredando lojas de propriedade judaica, confinando-os no Holocausto, nos fornos crematórios, enquanto os vencedores do Reality ficam à vontade. A maioria ficam à beira da loucura: alguns se tornam alcoólatras; outros tentam o suicídio sem sucesso. Ás vezes temo em ficar assim desse jeito.

Fico pensando em Johann Lunhoff. Aquele galego robusto que degolou uma cara bem maior que ele. A partir do Oktoberfest desse ano, nunca mais foi visto.

***

Marni Gaetner estava toda extravagante: seu cabelo lilás, roupas do estilo Barbie. Ela estava sentada em uma poltrona vermelho carmim, com as pernas cruzadas. Anne e eu sentamos no sofá vermelho carmim. As câmeras estavam prontas para a gravação. Ela nos cumprimentou:

– Olá, como vocês estão?

– Estamos bem, obrigado. - respondi, apertando as suas mãos macias. Ela deve ter passado uma loção nelas. Anne fez a mesma coisa.

Marni estava se preparando para a filmagem da entrevista, enquanto eu arrumava o cabelo. Anne estava estática no lugar. Na hora, o técnico fez a contagem regressiva a partir do três.

Começamos a gravar. Marni começava a falar:

– Boa tarde, Alemanha! Estamos com os vencedores da 64ª edição do Survival Game, Heinrich Holger e Anne Zimmer. Vocês aí, isso mesmo, vocês na rua ou em casa, já devem estar chorando de tanta alegria de eles estarem vivos. É um maior prazer eles contarem como foi o sacrifício que eles passaram no Reality e, posteriormente, o romance dos dois. O primeiro da história do Reality. - e virando-se para nós. - Começando por Anne, o que você achou da experiência vivida por lá?

– Bom - ela parecia encabulada, dando um sorrisinho tímido. - Para ser sincera, eu até pensava que fosse a primeira a morrer, mas procurei me concentrar em Richie, porque ele foi marcado para morrer.

– Nossa! - Marni esbanjou fofura e surpresa ao ouvir o que a Anne falou. - E foi por isso que você enganou o bando da Frieda?

– Era esse o meu plano. Como Heinrich conseguiu um grupo de aliados, eu tive que fazer o meu trabalho. E eu sabia dessa caidinha que ele teve por mim na escola.

Marni olhou para mim, alegre. Eu corei com o sorriso. Eu não esperava que a Anne fosse capaz de falar da minha queda por ela. Sempre fui caidinho por ela. E ela continuou.

– E ainda acho que mais uma garota aí fora deve gritar um "lindão!" para ele.

E ela me deu a mão direita, para que eu a segurasse. Retribuí. Marni começou:

– Muito bonitinho! E então Heinrich, como foi a sua vida antes e depois do Reality?

Eu respondi: - Para ser sincero, muita perseguição, mas tive os meus amigos ao meu lado, até o Dia da Seleção. Mas no decorrer, ganhei e perdi amigos na mesma época, como se perdesse em uma batalha, mas ganhei um, que agora está sentado ao meu lado. - e sorri para a Anne.

– Ouvi dizer que o beijo entre vocês dois debaixo d'água aumentou a audiência na Alemanha toda. - falou Marni. - O que cada um tem a dizer sobre isso?

Ela leu o meu pensamento! O nosso beijo debaixo d'água aumentou a audiência do público alemão. E no momento, eu não podia imaginar, eu estava perdido no beijo subaquático com a Anne.

– Bem, - disse, ao segurar a mão da Anne. - Pelo que parece ser, na verdade foi um beijo acidentalmente "perfeito". Mas... até que gostei.

– Eu também - Anne acrescentou. - Quer dizer, eu confesso que também não esperava de que isso iria acontecer, mas como eu sabia da queda que ele tem por mim, eu comecei a acreditar que o seu amor era verdadeiro. Pelo menos ele não é um mulherengo.

Terminou a frase rindo. Marni também riu. Já eu, corado mais ainda. Concluí.

– Então, a Anne finalmente soube que eu estava apaixonado por ela. Sério, não quis causar a má impressão ao público na hora daquela noite, antes de entrarmos na Floresta, mas a verdade é que ela me fez enxergar que eu escondia o meu verdadeiro eu dentro de mim. Foi então que Lorne aprendeu a lição, me esfaqueando no pulso. Foi por causa dessa imensa ferida, é que eu soube me defender de Frieda. - e olhei para a Anne. - Se não fosse por mim, a Frieda já teria te matado e a Lorne.

Nem hesitei em fazer com que Anne me beijasse, que nós nos beijássemos, na frente da câmera. Marni se maravilhou. Os outros, bem ainda!

– Oh, que lindo! - Marni elogiou. Nós terminamos de beijar. - Oh, aplausos para o casal! - e se virou para a câmera. - e com vocês, Alemanha, o casal vencedor da 64ª edição do Suvival Game! APLAUSOS PARA OS GLORIOSOS HEINRICH E ANNE!!

E tornei a olhar para a câmera, sorrindo com a Anne encostada em mim. Pelo visto, o Führer deve não ter se importado ao ver o nosso beijo diante das câmeras.

***

O nosso novo quarto era bem maior que aquele em que nos preparávamos para o Reality, quando Desmond estava vivo. Aquilo me causou um constrangimento. Mas a janela dominava toda a parede da frente. À noite pude ver Berlim toda iluminada. O palácio de Reichstag todo iluminado.

Era a hora de dormir, quando acordo com uma aparente dor no braço, quando este fora suturado. Quando arregaço a manga da minha blusa marrom, não tinha nada. O efeito pós-Reality, pensei.

Perdi o sono, quando vejo a Anne olhando para o céu estrelado. Ela ainda não dormira. Estava sentada na cama, com os braços ao redor dos joelhos justapostos. Ando na ponta dos pés, descalço, quando ela começa a falar:

– É tão bonito isso. - sua voz soa rouca e suave.

Eu assinto. Sento ao seu lado.

– Eu não sei se vou sentir muita falta disso aqui. Pelo contrário, terei pesadelos com isso.

Tentei puxar o assunto. - Lembra da Klara von Bepjilz? A vencedora da 56ª edição?

Anne assentiu. Klara von Bepjilz veio de Frankfurt. - Lembro.

– Ouvi dizer que ela nunca mais foi vista. Ela se mudou para Zurique em julho deste ano. Ela cismou ter um colapso nervoso pós-Reality. Porque ela deixou o companheiro morrer em carnificina, sem querer. Ela até que tentou suicídio no meio da Floresta, mas na hora que uma garota bem mais alta que ela veio matá-la, ela a esfaqueou bem no umbigo sem perceber. Daí, ela venceu com o Yoep Strassengër.

– Yoep Strassengër veio de onde?

– De Munique. A princípio, eu até ouvi falar dele, mas nunca o vi em pessoa. Será que ele também se mudou. Na época eu estava com oito anos de idade.

– Richie, você não se importa de eu me deitar sobre o seu peito? - Não, imagina.

Então, me encostei no travesseiro, para que a Anne se acomodasse sobre o meu peito. Nós dois olhamos a noite iluminada pelos prédios, arranha-céus, até pelas estrelas do céu limpo, cujo o a luz do luar acrescentava um toque especial à noite. Suspirei.

– Eu também iria ter pesadelos com o que nós vivemos. Eu estaria bem mais seguro em Munique, na nossa casa.

– Eu também. - logo, nossas vozes ficaram arrastadas pelo sono.

Amanhã estaremos de volta à Munique.