Capítulo 3

No Meio da Guerra

Algo como três dias se passaram desde que nós saímos da França, a viagem havia encontrado alguns empecilhos, mas nada tão ruim quanto ser preso pelas autoridades locais, ou qualquer coisa do tipo. Naquele ponto eu às vezes até esquecia sobre tudo o que aconteceu na Normandia.

Enquanto eu mexia em alguns equipamentos e todos nós relaxávamos naquela sala, o Jacob nos lembrou de um problema.

—Aliás… como a gente vai passar pela fronteira da Alemanha?

—Não se preocupe Jacob, eu vou cuidar disso.

Afirmei logo, sem pensar por um instante, então recebi uma resposta.

—O que? Aquele Chihuahua é quem vai nos fazer atravessar essa fronteira? Eu não sei sobre isso…

—É “Schawa” Chris, eu não estou blefando alias, algo como metade da minha vida eu estive na Alemanha, eu sei falar tão bem quanto um nativo e tenho certeza que posso enganar eles, vamos só avisar que estamos em viagem, ou talvez a comércio e tudo deverá dar certo.

—Camarada, você não deveria relaxar assim.

—Tem uma guerra aqui afinal…

—Yuki falou bem, ninguém pode esquecer que vamos daqui a pouco sobrevoar a terra de ninguém, eu diria que só está faltando algum comandante perder a paciência para a Alemanha entrar em guerra de verdade…

A Yuki e o Chris mostraram estar bem cientes da situação de guerra que a Europa se encontrava, eu, claro, havia levado isso em conta em meu plano e havia dado que a nossa chance de atravessar a fronteira sem ser imediatamente atirados e cair do céu estavam em torno de 99%, ao menos. Meu plano era perfeito, afinal.

E como pode ser notado, o Chris não havia me achado tão agradável, ele passava a maior parte dos dias ajeitando o cabelo da Yuki, eu as vezes considerava o insultar um pouco por esses hábitos, mas preferi evitar mais animosidade entre nós. Ainda mais pois a Yuki parecia o seguir nesse sentimento.

“Eu fiz aquela coisa para ela e é esse o agradecimento que recebo em… que coisa”

Respirei fundo e deixei aquilo para trás, meus inventos não funcionariam se eu estiver de mal humor.

Pelas minhas costas, no entanto, eu ouvi cochichos do novo membro da tripulação, ele finalmente fez a pergunta esquisita.

—Ei, por que ele está sempre de jaleco? Isso não é ruim?

—O Aiwa… bem, ele diz que é assim que um cientista deve se vestir e é só isso, talvez seja alguma promessa.

Não via o motivo do Jacob precisar elaborar que havia uma promessa a ser mantida para tal, eu apenas usava meu jaleco pois é assim que um cientista deve ser, como poderia ser um cientista sem meu jaleco de laboratório? Talvez os homens comuns, aqueles que não são homens de ciência realmente são incapazes de compreender tal lógica.

Cansado de mexer em meus químicos sozinhos, eu resolvi ir ao Jacob e falar:

—Ei, me da o seu braço de novo, eu vou tentar aquela ideia que discuti ontem a noite.

—Já…? Certo.

Depois de algumas engrenagens se soltarem e pararem de correr, ele me deu seu exoesqueleto, ou melhor, uma parte dele, o braço direito. Eu havia visto como sua força podia aumentar com ele, eu me perguntava se… algo mais poderia ser feito, então uma ideia me veio…

E enquanto focava no projeto, Chris caminhava pelo deque, observando o céu e olhando para o seu mapa, foi quando ele notou então… a hora havia chegado.

Chris correu até a sala de descanso de tal forma que todos nós já sabíamos o que aconteceu antes mesmo dele chegar, ainda assim, ele declarou como se fosse uma surpresa:

—Estamos perto da fronteira! Precisamos nos preparar.

—Ótimo…

Eu devolvi o braço de Jacob, que então me seguiu enquanto o colocava de volta, meu jaleco voou como uma capa pelo vento, correndo até a sala de controle, onde além do piloto que nos levou sem dormir até lá… também havia o megafone que permitirá a comunicação com outra aeronave.

Ao meu lado, estava Jacob, outro homem de boa lábia, ele não sabia alemão, porém eu achei que eu ficaria maneiro com um homem gigante ao meu lado, igual um tipo de braço direito, talvez guarda-costas até.

—PAREM AÍ MESMO. IDENTIFIQUEM-SE.

Ouvi, assim como observei pela sala de controle, uma aeronave construída para a guerra, ela havia nos interceptado e começou a fazer perguntas sobre nosso propósito em alemão.

“Fácil…”

—Nós somos comerciantes, por favor, saiam do caminho.

—DE ONDE VEM?

—Nós somos um grupo primariamente alemão, como pode ver, eu estou no comando. Nós acabamos de fazer um contrato importante na Bélgica, por favor, nos deixem passar, nosso combustível está baixo.

—VOCÊS NÃO SÃO ALEMÃES. E QUEM É VOCÊ? TRAIDOR DESGRAÇADO!

“O que agora?...”

—Do que você está falando? Eu vivi minha vida inteira na Alemanha, eu nunca pensaria em trair meu país. Meu nome é Aiwa Schawa, você nunca ouviu falar de alguém com um nome assim?

—...

“O que vai ser agora…?”

—SE VOCÊ É UM ALEMÃO, ME DIGA A IDENTIFICAÇÃO DE COMERCIANTE QUE VOCÊ TEM.

—AA31189.

Claro, eu já havia conseguido a informação do padrão desses códigos alemães, junto de alguns cálculos, eu pude pensar em um código que tinha tudo o que precisávamos. Não existir de verdade, mas ser plenamente possível de existir.

—PASSEM AGORA.

Eu sorri, então olhei para o piloto, fechei o megafone e disse:

—Continue, eu consegui enganar eles, vamos nessa.

—Bom trabalho, camarada, eu pensei que teríamos bem mais problemas…

Infelizmente, o Jacob estava certo… pois logo após passarmos pela aeronave dos alemães…

—PARE AI. NÓS TEMOS UMA PERGUNTA AINDA.

Eu liguei o megafone, incerto, mas ainda achando que não seria nada demais.

—O que houve?

—SE EXPLIQUE, POR QUE HÁ UMA BANDEIRA INGLESA NA SUA AERONAVE.

—...

—...

—...

...........................................

Eu havia esquecido totalmente daquele detalhe, havia uma enorme bandeira da Inglaterra naquele dirigível. E isso era algo impossível de explicar de forma plausível agora, portanto…

—CORREE!

O piloto entendeu a mensagem e acelerou com tudo em direção a fronteira, o plano havia mudado, nós teríamos que entrar a força agora.

—Droga! Eu não tinha visto aquela porcaria!

Eu reclamei enquanto corria para meu laboratório.

—Chris! Yuki! Corram para a artilharia!

O Jacob gritava comandos agora, agindo como um líder e tomando a melhor decisão que podíamos ter agora, aquele piloto não tinha medo.

Um homem que perdeu sua esposa e seus filhos, um veterano de guerra que já havia perdido o medo de morrer, ele havia se decidido, sua última missão seria um sucesso, não importava o que aparecesse em seu caminho.

Porém, eu estava ouvindo os disparos e vendo como o chão estava indo de um lado para o outro, desviar dos artigos de metal que caiam sem parar era uma das minhas preocupações, após recolher meus equipamentos, eu também corri para a artilharia, no entanto, eu encontrei os três em um corredor, indo para a direção contrária.

—Ei! O que vocês estão fazendo?

—Vem com a gente! Não tem tempo de explicar!

Foi o grito do Jacob, sem ter ideia de que desastre o faria gritar assim, eu tive de o seguir.

E quando chegamos, era outra sala no ponto mais baixo da aeronave, uma que nos dava uma visão das nuvens abaixo de nós… tinha um motivo, naquela sala, havia as “cápsulas de escape”

Grandes cápsulas de aço que podiam aguentar uma queda de qualquer altura, quando uma aeronave está prestes a cair, é em uma dessas que as pessoas fogem, o que eu entendia disso era…

Chris olhou para nós, ele deu alguns passos para trás e falou:

—Vocês três, entrem nessa cápsula e continuem a missão. Só tem uma dessas e eu sei que só tem espaço para três de vocês nela…

—Chris! Do que você está falando? Vai ficar aqui e morrer?!

Foi a sugestão dele, porém, Jacob não podia compreender o que ele pensava, muito menos a…

—Você vai…?

—Olha, vocês, eu tenho um plano. Não sei o que vai acontecer comigo, mas eu não vou morrer nesse dirigível, eu garanto.

—Não! É melhor que eu fique aqui do que você

Foi o meu próprio grito, não foi um pensamento que levou o passado, presente e futuro em conta, havia sido algum instinto, as palavras de um eu que nem eu mesmo tinha conhecimento…

—Muito menos você chihuahua. Eu te devo uma por ter me salvo daquela cadeia. Então me deixe pagar dessa agora. Só… entrem logo e eu vou ficar, se quiserem me resgatar mais tarde eu até agradeço…

—Grr… acho que agora…

Outro disparo acertou em cheio nosso dirigível, nosso tempo estava acabando, então eu vi… aquela capsula estava se soltando. Ela ia cair sem nós.

—Vamos logo!

Jacob me agarrou, assim como fez com a Yuki e pulou para aquela capsula. Em sequência Chris fechou a porta e um segundo depois.

Mais um disparo. Nós fomos atingidos pela ultima vez. Pois logo então o dirigivel começou seu curso de queda, assim como nós.

—AAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHH!!!

Nós aceleramos até a velocidade terminal, não tinha como ficar mais rápido, meus ossos quase se quebraram, eu sentia toda a minha pele sendo esmagada contra a parede. Pensei que podia morrer ainda no ar, mas eu não deixei.

Algo me impediu. E nós continuamos a cair, cair, através das nuvens, enquanto observava nosso antigo veículo sendo atacado, então o vendo em direção de colisão contra o chão.

Enfim, com uma explosão ensurdecedora, causando uma dor que me fez desejar morrer, nós pousamos no meio da terra de ninguém.

—...

Sem falar mais, saímos daquela cápsula, bem a tempo de ver o que acontecia do lado de fora, conforme uma tropa inteira se movia para os destroços de nossa aeronave.

—Ali! Vamos ver se o Chris está ali...!!

Eu não tinha fôlego, mas ainda assim corri, tropeçando contra aquele terreno marcado pela guerra, balas e fragmentos de granadas, caindo contra a lama, sujando meu jaleco e ainda assim, todos nós corremos naquela direção.

De longe, agachados para que ninguém pudesse nos vir, nós vimos… de alguma forma, Chris estava sendo levado, não como um corpo, nem um troféu. Ele era um prisioneiro de guerra.

—Ele realmente sobreviveu… deve ter se recolhido até o ponto mais alto da aeronave e deixado o impacto ser diluído… eu não consegui imaginar isso sendo praticamente possível, mas em teoria…

Um de nós se levantou, Yuki, agora uma mistura do branco da neve e o cinza da poeira e terra, sacou sua arma, porém… essas palavras o interromperam:

—Nem mesmo você pode encarar tantos deles, só iria acabar morrendo também…

—Me ajudem… nós temos que salvar o Chris…

—Não… é impossível. A realidade é que, nessa situação, o ataque que você propõe seria o fim da nossa jornada, Yuki, eu não acho que você vá me ouvir, mas nós não temos chance dessa vez.

Dei os fatos, pela minha análise superficial, mesmo a maior margem de erro que eu podia extrapolar, a chance de sairmos vitoriosos de um confronto direto, naquela situação, eram comparáveis as chances de, numa mesma tempestade, um raio atingir o mesmo ponto duas vezes.

Então… ela deixou sua lâmina cair, assim como sua vontade de lutar.

Eu não podia dizer que estava diferente, minhas palavras eram provas de que eu havia desistido de lutar mais, agora, parecia que nossa única chance era continuar a missão, se tivéssemos sorte, resgatar Chris seria uma possibilidade, mas apenas isso…

Nós então começamos a caminhar na outra direção, planejando cruzar a fronteira.

—Camaradas, tenho uma ideia… e se eu tentar me passar por um soldado alemão, vocês dois podiam ser dois irmãos orfãos que eu trouxe.

—Jacob, de onde veio essa ideia?

—As pessoas caem para esse tipo de história, bem, algumas… foi a minha melhor ideia, se o guarda que encontramos não for nenhum veterano, eu acho que vai ser bem fácil de passar.

—E nós somos parecidos por acaso? Eu não tenho exatamente…. bem, deixa…

Naquele momento, lembrar de quem me esperava em casa era só dor de mais para o meu coração, parecia mais fácil ignorar, por enquanto eu devia fingir não ouvir o grito de minha alma, ou ver as lágrimas de sangue do meu coração.

—Podia funcionar… a maioria das pessoas não acredita no que eu consigo fazer até ver por si próprio…

“Eu posso afirmar isso, ainda não quero ouvir porque uma criança dessas consegue matar um homem sem sequer tremer, eu faço aqueles truques arriscados, mas a chance não é alta de qualquer jeito...”

—E alias, você vai passar sem falar alemão?

—Oras, camarada Aiwa, é aqui onde você entra nessa história…

Apesar de tudo o que havia acontecido, Jacob ainda estava pensando logicamente, procurando uma solução para o nosso problema de agora, o problema de que precisávamos cruzar a fronteira o mais rápido possível, antes de sermos vistos por alguma patrulha, ou coisa parecida ainda.

“Imagino que tipo de experiências o deixaram manter-se tão calma apesar de tudo que aconteceu, não dá para conseguir isso apenas com treinamento, eu acho…”

E pois ele era o unico com a acabeçaç no lugar, nós seguimos seu plano, primeiro, indo um pouco longe da fronteira, achamos o corpo de um soldado, além de uma arma, Jacob se disfarçou assim e nos levou para uma das entradas.

Assim…

Havia um soldado mantinha guarda, ele ficava no portal entre o muro de pedras, um homem pouco mais velho que o Jacob e que parecia sequer ter notado nossa presença até ser chamado.

—Com licença…! Eu preciso entrar…!

E apesar do tom de voz de Jacob parecer urgente, ele entrou na frente.

—O que houve?

Foi o que o soldado falou, em alemão, aí que o plano entra em jogo.

Eu estava perto do Jacob, um pouco mais arrasado do que deveria, com roupas rasgadas e poeira no meu rosto, fingindo não o soltar a qualquer custo, o real motivo disso…

—Achei esses dois irmãos no meio da terra de ninguém, eu preciso que eles entrem. Eles são inocentes!

Eu ouvia em alemão e dizia o que o Jacob deveria repetir, ele não podia fazer muito sobre o tom, mas eu dava minhas dicas sutis de onde aumentar a voz e ele conseguia as detectar sem problema. Assim, ele parecia ser até fluente, um nativo, apesar de demorar um pouco para responder, o soldado também não parecia ouvir meus sussurros, o que ajudou bastante.

—Qual a sua unidade? Por que você estava por ai agora?

E apesar disso… aquele homem não mudava de expressão, o pior havia acontecido… aquele era outro veterano, o rosto era quase igual ao piloto de nosso dirigível, ele não se importava em ver crianças morrer em uma guerra, para ele, isso era apenas natural… ao menos foi isso o que vi em seu rosto.

—Meu nome é Ben Sils! Eu sou da unidade 31A!

Era essa a identificação daquele soldado morto.

—Hum… eu pensei que todos vocês tinham morrido em… conseguiu sobreviver a o bombardeio só com alguma sujeira?

—Eu… consegui me esconder a tempo, foi só sorte…

Finalmente, ele deu um passo ao lado.

—Vá falar com o general sobre isso, ele deve jogar esses dois em algum orfanato, eu acho...

Apesar de nossa situação ter ido de mal a pior, nós havíamos, ao menos, conseguido entrar na Alemanha. O nosso primeiro sucesso… não duraria tanto.

Pois entrar foi realmente tudo o que conseguimos, mal demos nossos primeiros passos lá antes de um carro aparecer na cena, soldados pularem e apontaram armas em nossa direção, com gritos em um inglês de fortíssimo sotaque:

—Parem! Todos vocês estão presos!

Nós ficamos alguns dias em liberdade, mas logo… estávamos de volta a custódia de alguns homens armados… em outro país que nós não éramos exatamente nativos.

Contudo, esses sequer eram todos os nossos problemas.

Pois havia mais alguém naquela prisão, não ninguém que estávamos vindo resgatar, era apenas um homem… um cientista… Edwin Thursby...

“Nunca pensei que voltar para casa pudesse acabar desse jeito em…”