Era sábado, a porta se fechou com um estrondo antes do despertador tocar. A garota se levantou a contragosto e começou a limpar o quarto, guardando todas as coisas que jogara nos cantos durante a semana. Escancarou as janelas para permitir a entrada do sol. Deixou o rádio ligado num volume alto e começou a cantarolar a canção que tocava para se distrair. Tomou o café da manhã e terminou a lição de casa antes que fossem onze horas da manhã.

Sentou-se no sofá e ligou a televisão, divertiu-se durante um tempo com os dramas descomplicados apresentados em imagens coloridas a sua frente. Imaginou como seria sua vida se fosse um determinado personagem. Na televisão as pessoas sempre eram tão altruístas e fortes! Suspirou e desligou o aparelho. Forçando a si mesma, pelo menos por hoje, a não procurar por Boh.

Foi para perto da janela para que pudesse observar o movimento na rua. Fez traços incertos num pedaço de papel que estava ali. E riscou tudo quando passou a tomar forma de uma serpente alada. Balançou a cabeça e puxou os cabelos para o alto da cabeça e deixou-os cair.

A campainha tocava estridente e, Chihiro de tão abstraída não a escutava. O barulho incessante, por fim, despertou-a de seu topor. Esticou as pernas e de um pulo foi rapidamente abrir a porta, pois não conseguia da janela observar quem estava tocando.

- Boh! - disse surpresa.

- Posso entrar? - ele perguntou, o rosto sombrio.

- Claro!

Chihiro abriu o portão, feliz por ele ter aparecido. E tornou a entrar com Boh em seu encalço.

- Sente-se. - indicou ela.

Boh sentou-se cuidadosamente em um sofá de três lugares, e Chihiro tomou o lugar no canto oposto. Trazendo suas pernas para cima, junto de seu peito.

- Veio me visitar dessa vez? - brincou.

- Sim. Você não apareceu, então tive de vir até aqui para me desculpar.

- Desculpar?

- É. Eu agi mal ontem em deixar você daquela forma. Espero que me perdoe.- ofegou.

- Não estou entendendo muito bem...

- Chihiro. - ele se aproximou um pouco.

- Eu juro que nunca vou te magoar. E a menos que você queira, não vou confundir novamente as coisas entre nós. Porque eu quero muito poder ficar perto de você.

Chihiro tomou a mão de Boh entre as suas, brincando com os dedos. Avaliou as coisas em sua mente.

- Obrigada, Boh. Eu quero também ficar perto de você. Mas... ainda não sei se desta forma.

- Você ama Haku?

A pergunta pegou-a de guarda baixa, ela corou e ergueu os olhos repentinamente agitada. Encarou Boh com a face contorcida pela dor, porém continuou segurando as mãos dele fortemente, como um ponto de apoio.

- Vai responder? - ele perguntou.

- Sim. - murmurou. - Só quero que me responda uma coisa antes.

- Fale.

- Você o conhece?

- Conheço, Chihiro. - ela sentiu um arrepio quando ouviu seu nome. Empalideceu e assentiu.

- Não tenho muita certeza... fazem seis anos que não o vejo. - estava editando a história, pois não sabia até que ponto Boh poderia estar informado. - Ele prometeu a mim que iria voltar. Eu amo o que ele era, mas tenho medo em quem ele possa ter se transformado durante esse tempo. Se seu sentimento é igual ao meu. Na verdade... chego a ter um temor de encontrá-lo. Eu não sei se ainda é possível, mas de uma maneira inevitável, sempre vou amá-lo.

- Acha que poderia amar mais alguém da mesma maneira?

A garota se retraiu.

- Não. - falou secamente. - Ninguém poderia tomar o lugar dele em meu coração; esse vazio nunca vai ser preenchido se ele não retornar. Nem que seja para dizer adeus, assim eu saberei que, no mínimo, ele lembrou de mim.

Boh chegou um pouco mais perto. Sua seriedade aumentou.

- Chihiro, você deve ser muito forte.

- Forte para que?

- Para aguentar o que vou lhe dizer. - pausou. - E o futuro.

- O que você quer falar? - olhou-o com atenção renovada.

- Segure minha mão bem forte. - pediu.

Encostou o queixo no peito, e passou a mão remanescente pelo rosto.

- O que foi? - ela perguntou delicadamente.

- Você vai me odiar.

- Não vou, Boh!

- Eu sei que vai, mas não há outro jeito. - ele respirou profundamente. - Chihiro, - por um momento as palavras ficaram suspensas no ar e depois veio o estrondo. - Haku está morto.

Os olhos dela se arregalaram em horror, estava em choque. Riu secamente.

- Não é verdade! Não acredito em você! - sem perceber estava gritando. Boh puxou-a para junto de si, mas ela começou a se debater. Ele apertou-a ainda mais, sem se importar com os socos e tapas que lhe eram dirigidos. Tentava fazer com que aquele ser entre seus braços não se machucasse ainda mais.

- Calma. – pedia em seu ouvido, acalentando-a. Ela parou de se mover quando a agonia tornou-se insuportável. Pranteando no colo de Boh. Tentando assimilar a verdade de que a pessoa que ela mais amava estava morta. Boh constantemente limpava o rosto dela com as pontas dos dedos, lidando em silêncio com sua própria aflição. – Vai ficar tudo bem.

Ela chorou até que os olhos inchados tornassem completamente secos, agarrando a camisa totalmente molhada de Boh.

- Minha mãe deve estar chegando. – a voz fraca da menina ecoou no aposento dominado por uma semi-escuridão. Chihiro curvou-se um pouco, saindo da letargia.

- Coma alguma coisa. – a voz de Boh beirava ao desespero.

- Não tenho fome. – respondeu lentamente. – Pegue alguma coisa se você quiser.

Boh somente balançou a cabeça, desolado.

- Não está pronta para vê-los, não é?

- Tenho que estar. – ele olhou-a com carinho durante alguns segundos.

- Vou fazer uma coisa...

- O que?

- Parar o tempo, Chihiro.