Os dois se distanciaram da casa, ela parecia abandonada, não fossem os narizes idênticos de Zeniba e Yubaba que podiam ser vistos, sem estarem cobertos pelas cortinas. Estavam curiosas, mas Zeniba calara cada pergunta de sua irmã antes mesmo que saíssem de sua boca, fazendo observações corteses ou brigando por alguma mancha deixada numa toalha.


Andavam lado a lado, os dedos se roçando levemente, esforçando-se para prolongar aquele contato provocado. Nenhum deles sorria, as costas de Boh estavam muito eretas, a tensão emprestando-lhe alguma altivez.


Quando se encontravam suficientemente longe das vistas das irmãs, Boh parou, virando-se para a menina, esfregou os olhos cansados e depois pousou as mãos nos ombros dela, dando-lhe um leve aperto num gesto de conforto, puxando-a para si, ela tocou em seu queixo retesado; pôs-se nas pontas dos pés e alcançou os lábios dele, tensos demais. Traçou um caminho com os dedos até a nuca dele, acariciando-o.


- Boh. – o jeito que disse seu nome o fez amolecer um pouco, permitiu-se embalar pelo cheiro que emanava do corpo dela, passando a ponta do nariz pela testa da garota. Não conseguia controlar os batimentos do seu coração. Sentiu a quietude penetrar em seu peito, não chegando a ser algo benéfico, era carregado demais. Olhou-a longamente sem proferir alguma palavra, como se aquela comunicação muda pudesse transmitir tudo que estava sentindo, seu arrependimento. Sabia que ela lhe entenderia, somente Chihiro era capaz disso.


Suspirou e se separou dela a contragosto, com um último toque em seus cabelos.


- Eu já sabia. – ela disse. – Não vai desistir disso, não é?


Ele se surpreendeu com a força dela, podia ver, pela maneira que o olhava, o quanto era duro para a menina dizer isso.


- Veja pelo lado bom... – começou a falar, tentando amenizar as coisas.


- Não, Bou. Você não vai mais estar aqui. – o tom de voz e suas fracas palavras quase o fizeram desistir. Não sabia o que dizer, estava exausto demais para se mover, um cansaço mental, queria ser incapaz de pensar.


- Sinto muito. – conseguiu articular. Virou as costas, pensando em partir agora mesmo, sem sequer um último beijo antes de dizer adeus.


- Eu vou com você. – ele iria protestas, mas calou-se quando viu a expressão determinada no rosto dela. Deixou sua mão se enlaçar na de Chihiro e ouviu seu sussurro. – Estarei com você até o fim, Bou.


Aquelas palavras o tocaram tão profundamente, ele não conseguia exprimir quanto estava com medo.


- Sem olhar para trás? – ele perguntou brincando, fingindo que não viu o olhar de dor que passou pelo rosto da garota.


- Sem olhar para trás. – garantiu ela, mesmo temendo o efeito que suas palavras pudessem ter mais tarde, precisava estar por perto.


- Então, o que estamos fazendo parados aqui? – ele falou, como se estivessem partido para uma ansiada excursão de escola, e não indo de encontro a sua própria morte.


- Do que esta falando?


- Vamos partir agora, Chihiro. Não temos tempo a perder. – ele esperava que com isso ela desistisse, mas não se surpreendeu ao ver Chihiro firme em sua decisão. Ela era tão teimosa!


- Tudo bem.


Não se importou. Afastou-se dois passos, permitindo que Boh pudesse transformar-se no grande dragão, que evitou olhar em seus olhos. Ela subiu em seu lombo sem pedir ajuda, como se tivesse feito isso durante toda sua vida.


Iam contra aquele forte vento, a força física de Boh pondo-se a prova. Forçando seus músculos alterados a ir adiante, faltava mais um pouco e depois tudo seria...


Não sabia. Fechar os olhos, talvez... Não sabia que agonia podia encontrar. A eternidade seria tão longa... manter os olhos fechados, observar toda sua vida passar diante de si. Saberia o que tinha feito de errado? Queria a resposta... as respostas. Girar eternamente na mesma cadeia. A história sem fim. Esperando, ansioso, o momento de aquele sorriso aparecer. Quando receberia um beijo... seu primeiro beijo. Um toque tão frágil. Tudo se dissolvia no espaço. Chamou por Haku, foi o primeiro nome que pensara, entre todos. Não sabia o porquê, mas não conseguiu evitar isso. Era aquela ligação... Seria Chihiro?


Não sabia...


Sentia água penetrando em sua pelagem, as palavras que a garota pensou que não seriam escutadas pela força do vento, chegaram a seus aguçados ouvidos.


- O que vou fazer sem você?


Negligenciou uma resposta, ele não podia falar e mesmo que pudesse, não saberia o que dizer. Continuou com a cabeça erguida, o focinho apontando para frente. Tentou lançar um olhar para trás, mas não conseguiu vê-la. Um som gutural saiu de seu peito e sentiu a cabeça de Chihiro se levantar seu dorso, assim como uma de suas mãos que ele supôs que tinha ido para o rosto dela, secar rapidamente as lágrimas. Fez o barulho novamente, seria talvez mais fácil se comunicar dessa forma. Não teria palavras para descrever o que sentia.


Chihiro passou a mão no topo de sua cabeça.


- Desculpe. – disse se inclinado para ficar junto a seu ouvido pontudo. – Sei que também está sendo difícil para você. Mais até do que para mim.


“Chihiro.” Ele quis dizer. Somente um nome, mas só podia fazer sons animais.


Agora estava se aproximando demais do lugar almejado. Faltava apenas um pouco, começou suavemente a descer, notando o desgaste não natural ao seu redor, tudo iria perecer sob uma camada obscura orgânica que lhes sugaria a vida. Sentiu as pontas das árvores mais altas roçarem em sua barriga, um pássaro sobrevivente, mirrado, se afugentou a sua presença. Temor. Já estava acontecendo há muito tempo. Se soubessem de tudo antes... poderia ter fingido ser o menino mimado que nada fora afetado pela presença dela. Fazendo aquele prendedor em pedaços. Só em seu íntimo saberia...


Haku teria ido embora assim que pudesse, iam ter uma vida longa e comum. Não podia evitar pensá-lo.


O destino dera uma reviravolta rumo ao errado. Ou seria o certo?


A história estava cheia de corações partidos, mas agora tudo iria tomar um rumo, com sorte Kohaku iria voltar jovem, não havia porque o coração de Chihiro não se aquecer novamente. Ele seria somente uma lembrança...


Iriam falar para seus filhos, sobre o bom Bou? Uma garotinha igual a Chihiro, com os olhos grandes e irreais de Haku, semi-cobertos por uma franja, os cabelos azulados lhe caindo pelas costas. Tinha que ficar longe daquele mundo, onde a alegria fora tão palpável para sua mãe. Despedia-se dessa maneira, montando um hipotético final feliz.


Aterrissou, sentindo os dedos da menina se apertarem convulsivamente em sua pele uma última vez. E depois o frio, quando ela largou-se dele para alcançar o chão.


Atravessaram a passagem em silêncio, não desviando os olhos do caminho. Estavam próximos de alguma forma; sabiam disso. A clareira imutável surgia à frente deles, podia ser como se fosse à primeira vez em que estariam entrando.


Boh achou rapidamente o caminho para o lago, a tarde ainda não havia caído nesse tempo. Repetiu a ação para formar um demônio. Chihiro não quis ver, esperou-o junto as estátuas de pedra, que agora até pareciam amigas. Algo havia mudado ali, subitamente, a passagem dos segundos parecia ter estancado. Estava tudo muito quieto. O garoto apareceu ao seu lado.


- Está na hora. – anunciou num murmúrio. Chihiro não insistiu, beijou a face de Boh. E observou-o partir por entre os dois bonecos, simplesmente sumiu.


Desabou no chão, sentindo-se subitamente vazia.


- Chihiro. – uma voz conhecida lhe chamou, voltou-se para a face aflita a sua frente. Não havia se passado nem um segundo.