Spirited Away 2

A sombra do passado


A mulher sorriu, recebendo a resposta que previra. Não necessitava de teias para ver o destino, ela o controlava. Seus dentes pareciam fosforescer, brilhando mais que as tochas que ardiam na parede.

- Aproxime-se então. – ordenou a Chihiro, estendendo sua mão, as veias do braço arroxeadas, claramente visíveis, mesmo no tom vermelho de sua pele.

A garota tremeu, apesar do calor que fazia. O lugar lhe era estranhamente claustrofóbico, como se aquela mulher grande ocupasse-o inteiramente, exigindo mais espaço para que pudesse ficar confortável. Avançou alguns passos.

Sua mão foi puxada com brutalidade, a palma virada para cima. Aquelas unhas gigantescas arranhando suas linhas, murmurando consigo mesma coisas inteligíveis. O sorriso espectral e maligno nunca abandonando seu rosto.

- É preciso sangue. – disse.

Chihiro não teve tempo de se afastar. As unhas perfuraram-lhe a pele, formando uma linha precisa que cortava, horizontalmente, sua palma. Não conseguiu reprimir um grito agudo de dor e surpresa. Boh avançou, segurando-a pelos braços, os olhos ardendo em fúria dirigida para aquela mulher.

- O que pensa que está fazendo? – perguntou com raiva, amparando Chihiro, que não conseguia parar de encarar o sangue que saía de suas mãos, mesclando-se a algo mais velho. Era aquele líquido o qual encostara antes.

- O que é preciso. – virou a cabeça num ângulo curioso. – Está com medo da verdade, Bou? – as palavras saiam como adagas de sua boca carmim, perfurando-o. – Vieram até aqui para saber a verdade, pois então, vocês vão tê-la. Dê-me sua mão.

Boh não relaxou um segundo sequer, mantendo um dos braços firme em torno da cintura de Chihiro para sustentá-la.

- Seja forte. – sussurrou no ouvido dela. Fechando os olhos enquanto a mulher cortava sua palma na vertical, formando uma cruz com a de Chihiro, tomando as duas mãos entre as suas, uniu-as num aperto insondável. Um sorriso calmo surgiu em seu rosto, o qual erguera como se estivesse olhando para o teto. Era iluminada por aquelas chamas bruxuleantes. Quase uma aparição, ficando cada vez mais translúcida. Doando suas energias para concretizar aquela ação. Lágrimas de martírio saíram de seus olhos brancos. O sacrifício era necessário, o destino agia novamente, girando a roda da fortuna.

E o curioso, era que não sabia como tudo terminaria. Simplesmente o final não estava escrito; pois ele dependia daqueles dois corações jovens e instáveis. Deveria confiar em suas escolhas, ou a história se repetiria infinitamente numa catástrofe sem precedentes.

- Boa sorte. – murmurou antes de desaparecer por completo, contudo eles não estavam mais ali. Vagavam nas memórias. Desenterrando o passado.

O sol batia no rosto do casal, o garoto se levantou rapidamente verificando a cicatriz em sua palma, parecia um ferimento antigo. Verificou o mesmo fato na mão da menina que o acompanhava, a qual somente agora abria seus olhos.

- Onde estamos? – ela perguntou, surpresa com a claridade. O mundo dos espíritos era muito mais sombrio.

- No passado. – Boh replicou, ajudando-a a se levantar.

- Como viemos parar aqui?

- Foi aquela mulher. Creio que podemos ter alguma resposta... – interrompeu sua fala quando duas crianças passaram correndo por eles. Era uma cena terrivelmente familiar.

Chihiro e Boh se encararam, surpresos. Ela suspirou e prendeu seus olhos na figura de Haku que se afastava, indagou a Boh:

- Por que esse momento?

- Talvez algo tenha acontecido depois. – sugeriu. – Vamos depressa, Chihiro. Precisamos ir atrás dos dois.

Começaram a correr, desenfreados, ladeira abaixo. Chihiro sentiu-se estranha ao ver a si mesma, anos mais jovem. Uma expressão esperançosa diante da possibilidade de ter Haku perto de si, para sempre. O brilho dos seus olhos esmaeceu um pouco ouvindo suas palavras.

- ...Não olhe para trás.

Chihiro parou, com súbita falta de ar. Aquelas palavras afetavam-na tanto. Estava tão próxima que poderia tocá-lo. A mágoa de todos aqueles anos parecia nunca ter existido, como se o buraco no peito se fechasse diante dele.

Repreendeu-se por este pensamento, deixando seu cabelo caído na frente do seu rosto. Procurou uma das mãos de Boh, para que pudesse acalentar seu coração.

Voltou-se novamente para o menino que observava seu “eu” mais jovem se afastar. Ele parecia triste. Saberia ele de todos os anos que ficariam afastados? Já previra tudo que iria acontecer? Que nunca mais poderiam ficar juntos... teria a vontade de segui-la? Dizer que iria fazer de tudo para que pudesse ficar com ela...

Chihiro não conseguia evitar pensar nisso. No que poderia ter acontecido.

Queria saber o que Haku tinha na mente nesse momento, quando seu olhar baixou e ele não conseguiu evitar que uma lágrima solitária saísse.

- Chihiro. – Boh disse, sua voz não tinha repreensão, estava somente preocupado. E isso somente a fez sentir mais raiva de si mesma.

- Está tudo bem, Bou. É só que... – balançou a cabeça.

- Fale. – insistiu ele.

- Ele esta aqui, tão próximo. O que teria acontecido se eu olhasse para trás? Esse pensamento sempre me consumiu. – sabia que podia confessar isso a Boh, ele a entenderia. Enterrou o rosto no peito dele, aspirando o perfume, tentando distinguir as batidas uniformes do coração. Sentiu um terno beijo em seus cabelos, a respiração dele fazendo cócegas em sua orelha.

- Precisamos ir. – Boh disse com suavidade, afastando a menina de si. - Haku está partindo.

Ela assentiu, seguindo-o. Haku andava a passos largos demais, fazendo o caminho de volta até a casa de banhos.

- O que acha que ele vai fazer? – perguntou a Boh.

- Não sei. Provavelmente... – conjeturou. – vai falar com Yubaba.

Boh estava certo, seguiram o garoto por muitos cômodos de mobílias extravagantes até o longo salão adornado que era o escritório de Yubaba. A mulher fazia contas, resmungando alto sobre prejuízos que teria por causa daquela garota tola.

Chihiro riu um pouco com os comentários dirigidos a ela. Yubaba nunca gostara muito dela, chegara gritando em seu escritório, exigindo um emprego. Coisa que somente foi conquistada por causa de uma promessa que a velha havia feito a alguém que não se recordava. Foi sua salvação. Ela gritava cada vez mais com ela, enquanto Bou quebrava a sala ao lado, exigindo atenção. Virou-se para ele, observando como estava mudado. Nunca imaginara que aquele bebê mimado se tornaria um homem tão forte... perdeu-se nos traços dele, um sorriso involuntário formando-se em seus lábios.

Boh mantinha-se ereto, vendo regiamente Haku se aproximar, os cabelos balançando, a testa franzida num sinal de irritação, parou na frente da mesa. A mulher lançou-lhe um olhar beligerante por cima dos óculos, sem imaginar o que seria mais importante do que o ouro que havia perdido, para que fosse interrompida dessa maneira.

Aquele olhar não intimidou Haku como pensou que faria. Ultimamente ele estava tornando-se muito desobediente, ignorando suas ordens como se fosse livre. Como se tivesse direito a algum livre arbítrio. Haku pertencia a ela, deveria lembrá-lo disso. Esfregou as mãos, imaginando um castigo suficientemente ruim, sorriu malevolamente pensando nas possibilidades. Foram segundos de diversão até que Haku pigarreasse alto, interrompendo o fluxo de suas idéias.

- O que quer? – perguntou sem cerimônia. A voz saiu muito grossa.

- A minha liberdade. Eu tenho meu nome, Yubaba. Não pode fazer nada contra mim.

A mulher suspirou, isso não estava nos seus planos. Precisava arranjar alguma maneira para manter Haku perto de si, custe o que custasse.