Spirited Away 2

A solidão de Kamaji


- Talvez... – respondeu vagamente Kamaji. – Não me recordo muito bem...

- Tem que se lembrar, Kamaji!

O velho ficou andando nervoso pelo aposento. Dando vinte e quatro passos e retornando, fazendo o mesmo percurso, murmurando consigo mesmo e balançando a cabeça. Acompanhado pelo olhar de Boh, que tinha poucas esperanças. O tempo ia passando e o silêncio se aprofundando, o estalar da madeira causando sobressaltos. Chihiro começou a se mover, as pálpebras se movendo. Dando mostras de que iria despertar.

- Chihiro! – Boh chamou, despertando-a.

Ela olhou confusa em seu entorno e murmurou atordoada:

- Não foi um sonho...

- Queria que fosse?

Chihiro não respondeu. Aconchegou-se juntou ao peito de Boh, impedindo-o de ver a dor em seu rosto.

- Eu dormi muito? – tentou controlar sua voz para que o tremor não a traísse.

- Não se preocupe com isso. Você precisava descansar. – ocultou o fato de que ele a havia feito cair no sono por magia. Passou os dedos pelo cabelo da garota e deixou sua mão pousada na nuca dela, num gesto que parecia ser despreocupado, mas que deixou os dois corações acelerados.

Chihiro estremeceu e corou. Boh aproximou os lábios do ouvido dela.

- Temos uma pista. – sorriu com a eletricidade que corria entre seu nariz e a bochecha dela, que nem se tocavam. Afastou-se, deliberadamente, para resistir à vontade de beijá-la.

Mas ela virou-se para ela, com um meio sorriso na boca. Sem notar seu movimento.

- Pista?

- Sim, pode ser perigoso. E não temos muita certeza do que seja, mas definitivamente é uma chance. – falou otimista.

- Que bom! E o que é?

- Chama-se lago dos espelhos. Agora só precisamos achá-lo.

- Ele não existe. – a voz de Kamaji era mórbida. Os dois em seu diálogo, quase tinham se esquecido do velho que estava de costas para eles.

- Como assim? – perguntou Boh.

- Não tenho muita certeza, mas sei quem pode contar-nos. Entendo agora o que ela nos disse. É realmente arriscado.

- Kamaji, conte-nos, por favor. – pediu Chihiro, curiosa.

Kamaji encarou a menina como se fosse a primeira vez que a visse. E viu a garotinha gritando que queria um emprego depois de fazer com que todas aquelas bolotinhas folgadas parassem de trabalhar, derrubando as pedras que carregavam em si mesmas. O afeto dominou-o, assim como daquela vez. Ela novamente corria risco de vida e iria fazer tudo que estivesse ao seu alcance para ajudá-la.

- Não posso. Eu não conheço essa história, só ouvi falar dela. Sabem que posso estar completamente equivocado.

- E quem é que sabe dela?

- As Tecelãs. – respondeu a Boh.

- Tecelãs... que estranho. O que elas tecem?

- O destino, Chihiro.

A menina assustou-see olhou-o com estranheza.

- É sério?

- Sim.

- Essas tecelãs... Elas controlam tudo?

- De certa forma. Tudo está desenhado nas linhas que elas tecem.

- Mas onde fica o livre arbítrio?

- As coisas são e sempre foram assim, Chihiro. Já se está definido o que irá acontecer, só se aguarda o próximo passo.

A garota não concordava com isso, mas decidiu não abrir a boca. Não sabia de muitas coisas e esse mundo lhe era tão estranho e imaginário depois de todo o tempo que se passou. Quando era menor parecia ter mais forças para acreditar fielmente sem questionar.

- Quanto às mulheres... – Boh tentou voltar ao assunto.

- Ah, sim. Elas ficam na aldeia onde eu nasci.

- Isso seria muito longe?

- Apenas algumas horas de viagem.

- Eu poderia nos transportar...

- De maneira alguma! – protestou Kamaji. – Não vai fazer essa besteira novamente, sugando a sua energia e a dos outros como um parasita! Não, não! Vão você e Chihiro. Eu fico aqui, estou muito velho para isso. E não seria muito bem recebido – acrescentou. – Portanto, se não querem morrer, não digam que fui eu que os mandei até lá. Ensino-lhes o caminho, mas não piso naquele lugar. – cruzou os pares de braços na frente do corpo.

O garoto ia argumentar, tentar convencê-lo a ir, contudo, foi detido pela mão de Chihiro que pousou em seu braço. Viu-a balançar a cabeça num sinal negativo e se levantar. Movimento o qual ele imitou, decidido a confiar no julgamento da garota.

- Ensine-me o caminho, Kamaji. – pediu, resoluto.

O velho passou a Boh as coordenadas, explicando com cuidado o caminho. Alertando para armadilhas. Enquanto Chihiro havia aberto a porta e observava o lento amanhecer sob a cobertura das árvores com a cabeça inclinada pousada no batente.

- Entendeu tudo? – Kamaji perguntou quando terminou, preocupado que se perdessem.

- Sim, obrigado. – voltou-se para sair.

- Chihiro. – chamou o idoso.

A garota virou-se reparando na súplica silenciosa e nos ombros curvados do amigo.

- Eu sei. – disse dando um aceno. – Não se preocupe conosco. Agradeço pelo que fez.

Boh tomou a mão dela e puxou-a; lentamente iam entrando na floresta. Kamaji os viu se afastar, embrenhando-se cada vez mais longe dele, sem chorar. Não respondeu ao aceno que Chihiro lhe fez nos limites da mata. Percebia somente agora, quando ela estava partindo que a tola menininha não existia mais. Ela foi substituída por uma jovem crescida, que entendia demais os sofrimentos para estar bem, lamentou. “Ela está tão infeliz!” – as palavras de Boh ecoaram em sua mente. “Foi o certo a fazer.” Tentou se convencer, mas a justificativa parecia tão fraca diante daqueles olhos. Sabia que poderia estar enviando-os para a morte e sentia isso penetrar em seu coração com negrume. Voltou-se para dentro da casa, que apesar do fogo, estava tão fria...