Dedicado a um herói que acreditou
JOHN ROMITA SR, 1930 - 2023


“E essa realmente foi sua maior preocupação?” Perguntou, incapaz de impedir a própria curiosidade.

“Olha...” O Sentinela da Liberdade pensou por longos segundos que pareceram outras décadas no gelo até dizer. “Sim.”

Haviam várias formas de responder, mas entre todas preferiu a verdade. Ele aprendeu que ser sincero era melhor.

“O mundo inteiro mudou.” O Capitão América explicou, vago em seu tom enquanto seus olhos passavam para as pessoas sentadas sobre a arquibancada circulando o palco.

Todos rostos incomuns, de desconhecidos, que ainda assim lhe olhavam de volta com uma expressão como se o conhecessem, alguns até mesmo com um feição da qual pareciam vê-lo como um velho amigo.

“Casas viraram prédios. Prédios se tornaram arranha-céus e os próprios arranha-céus caíram.”

Sendo no século vinte ou no século vinte e um, mesmo com seus anos carregando o escudo, até aprendendo a lidar com o nervosismo, ele ainda não havia se adaptado bem a mídia. Mesmo sem a boca seca e as palavras não tropeçando mais umas nas outras quando respondia algo, as câmeras e os espetáculos das luzes dos holofotes jamais casariam direito com o velho Steve Rogers.

E o pior era, se pudessem ver além do ídolo que se tornou, tudo nele admitia seu desconforto.

“O que eu conhecia se tornou ultrapassado.” Ajeitou-se na poltrona de veludo, sentindo-se em um assento de espinhos. “Símbolos de nações e símbolos para nações mudaram e se foram.”

Pousando uma das mãos sobre o escudo ao lado, apoiado no braço da cadeira. Ele sentiu a familiar sensação dos dedos calejados por incontáveis batalhas encontrando apoio no velho amigo polido de vibranium frio.

“Tem coisas que você não pode acompanhar, não importa o quanto tente e se torna mais fácil pensar nas coisas que você ainda conhecia o ritmo.”

“Porém, agora você citou apenas representações...” Respondeu o apresentador, mais acomodado na própria poltrona, erguendo sua mão a figura de Steve, enaltecendo ele como um símbolo vivo, vestido a azul, com linhas de vermelho e branco. Certamente era um tipo de vestimenta mais excêntrica quando comparado aos seus outros entrevistados que evitavam a exibição de cores para exibir um conjunto Armani no horário nobre.

“Por outro lado, antes, você falou de outra coisa.”

Ben Urich continuou, sendo fausto em sua fala, mas não se preocupando em soar indignado caso seu tom fosse bem escondido entre linhas de profissionalismo.

“Você comentou que a maior preocupação do Capitão América--” Atropelou as próprias palavras por um momento. “A sua preocupação. Você. Signo do ocidente.” E continuou quando encontrou a forma mais correta e direta a figura de Steve, não faltando títulos ao herói. “Quando finalmente foi descongelado, pensou antes de tudo em uma mulher?”

Ben sabia bem como manipular o jogo das mídias. Fosse nas linhas da redação do Clarim ou em uma transmissão no Estúdio-SM62 com câmeras para América assistir seu programa de auditório.

“Uma mulher.” Steve murmurou as palavras. “A mulher.” Corrigiu-se, em tom brado, certo do que respondia.

Urich não disse nada, e seus espectadores permaneceram tão calados quanto ele. Entre as paredes do estúdio houve uma concordância em silêncio, no que eles ingeriram as palavras do Capitão América.

Limpando a lente dos óculos, o repórter pensava por onde seguir após o que Rogers lhe admitia. No fim, até mesmo a lenda era apenas um homem. Até mesmo ele poderia ter alguém especial.

Colocando os óculos estudou bem a Steve.

O Capitão América era um artigo de carreira, promissor a qualquer um que se encorajasse a tentar desvendá-lo, mas ser o maior símbolo da nação lhe tornava um grande desafio a qualquer repórter.

Urich queria mostrar ao herói que o quanto ele era um veterano de guerras, ele também era um titã do jornalismo. Era sobre provar porque seu palco era de fato seu, até mesmo perante a lendas da história.

Ficando frente a ele, Rogers parecia centrado e a falta do elmo, expondo sua face, revelava isso. As luzes acentuavam a expressão marcante, desenhando traços pesados ao rosto que não oferecia nada que fosse agressivo, mesmo que a sombra que caia nos olhos azuis revelavam um abismo de experiência que aquele homem viveu e Ben sabia que jamais teria a oportunidade, quanto principalmente a coragem, de conceber a fração dos encontros que Steve já sobreviveu.

Era a face de um homem simples, enquanto aqueles eram olhos de alguém preso em uma constante guerra.

E atrás disso tudo, até mesmo entendendo agora um pouco mais da pessoa além do símbolo, Urich ainda não enxergava que havia um rapaz do Brooklyn escondendo o nervosismo.

“Wow.” Ben soprou com uma voz rouca depois de anos dependente da nicotina. Uma sutil surpresa era a única resposta de sua mente em meio a avalanche de pensamentos.

“Capitão, acho que você deixou nosso apresentador sem mais perguntas.” Enfim falou a terceira cadeira da entre eles, rasgando o silêncio, as risadas do público imediatamente percutiram pelo estúdio.

E tão simples assim a inquietação era perdida por Ben, enquanto Steve oferecia apenas um sorriso ao companheiro ao seu lado.

O Doutor Reed Richards nunca foi celebrado por ser uma pessoa pública, na verdade, era mais conhecido por ser extremamente ignorante a relações sociais, ainda assim, até mesmo aos olhos de Reed havia uma tensão para ser quebrada.

Além de tudo, ele não mentiria a si, após superar o receio que tinha em escapar do laboratório para atender o convite de Ben Urich, enfim podia reconhecer o apelo de estar ali. Se interessando tanto em uma visão de estudo, quanto também de se ver envolvido pelo o que Steve Rogers tinha a dizer.

“Não entenda errado.” Steve falou, ao mesmo tempo que as risadas dissiparam em meio de sua explicação. “Eu vi coisas nesse novo mundo das quais eu não imaginava quando marchava com o escudo por Berlim e Paris, mas a principal semelhança que esses dois tempos tiveram para mim foi simples...”

A plateia se aquietava, enquanto Rogers tinha a atenção de Reed e Ben para si.

“O que eu pensava, enfrentando o Terceiro-Reich ou cruzando a Time Square, foi sempre nela.”

Steve pensava nela naquele momento, não só citando simplesmente alguém que significava pouco. Quando se preparou para subir ao palco e muitas vezes que sua vida estava no fogo cruzado, ela estava ali. Não era como se pensasse nela em cada um de seus dias, mas sim nos momentos que o definiam.

“Penso que quando acordei aqui... Eu só mudei a minha guerra e no fim só sou ainda o mesmo Steve.”

“E pensar nela te prova isso?” Ben perguntou.

“E pensar nela me prova isso.”

Outra vez Urich ficou pasmo, sempre que respostas viam a sua mente, ele percebia que não havia nada a complementar pois Rogers não era apenas sincero, mas direto também.

Assentindo a Steve, o apresentador soube o momento de passar a palavra para o terceiro membro de sua mesa redonda.

“Dr. Richards. Você é um homem da ciência. Acha que faz sentido o relato de nosso veterano?”

No primeiro instante, Reed ponderou. Para ele, o dilema não estava no sentido da afirmação de Steve, mas sim o que tal afirmação falava do Capitão América.

Estudando a situação antes de responder qualquer coisa que não concordava, olhou para sua esquerda e analisou Rogers como Urich fez momentos antes.

“Olhe. Sendo um ‘homem da ciência’...” Começou, parafraseando Ben, do qual se voltou a olhar logo à sua frente. “Eu diria que muitas das circunstâncias da história do Capitão, isso sendo, da sua criação ao seu retorno, trazem muitos elementos que não me fazem um sentido exato. Afinal o corpo humano...”

Antes que terminasse sua linha de raciocínio, outra onda de risadas começou pelo estúdio. Os espectadores atropelando as palavras de Reed com seus risos sobre a sua afirmação exageradamente técnica a uma pergunta simples.

“O corpo humano não poderia...” Tentou uma segunda vez, falhando novamente pela batalha de sua presença no palco. Ajeitando-se ao assento, Reed alinhou o microfone já bem posto na bainha da gola de seu uniforme. “Eu vou tentar me prender a pergunta.”

Concluiu, falando com uma garganta seca, no que conseguia a atenção de todos mais uma vez.

“Eu penso que sim.”

Afirmou com simplicidade, alcançando a caneca posta sobre a pequena mesa colocada entre ele e Steve.

“Faz sentido. É fácil pensar no Capitão mais como uma representação do que pessoa, mas imaginem, para qualquer homem ou mulher. Para qualquer um. No vasto entendimento que temos sobre o ser humano, que é insignificante perto de tudo que ainda não compreendemos sobre nós... é algo natural se agarrar a figuras que nos evocam sentimentos. Essas pessoas definem em parte quem somos no presente.”

Parando por um instante, olhando para aqueles sentados que os assistiam, Reed assegurou que usava as palavras corretas, não querendo perder o fascínio de ninguém. Sue muitas vezes lhe acusava de complicar até mesmo a mais simples das explicações.

“É uma questão de emoções. Nostalgia, digamos, talvez sendo a emoção que mais move o Capitão.”

A forma de Reed falar era mais técnica que a de Steve, porém, enquanto a simplória honestidade do Capitão era o que cativava o povo, a complexa didática do Senhor Fantástico era tão efetiva quanto para fisgar o interesse deles.

“Afinal, o Capitão América é um símbolo da nossa nostalgia patriótica.” Reed falou, bebericando enfim o café na caneca que tinha em seu colo.

“Uma forma educada de me chamar de velho.” O Capitão respondeu, arrancando mais risadas.

Urich enxergou-se como um coadjuvante na presença de ambos heróis.

“Sendo assim.” Ben tentou falar, simplificando o que Reed dissera. “O que define o Capitão, o que admiramos nele, parcialmente... é a lembrança dessa mulher. Dessa amada.” Ele falou em afirmação, mas com um tom de pergunta ao fim, procurando a aprovação de Steve na forma como se referia a misteriosa garota.

Enquanto o Capitão assentiu positivamente a forma que Ben referiu-se a Peggy, Reed terminava de degustar o sabor do café já morno após longos minutos de conversa. Para ele, o gosto não era ruim, porém não era forte para atentar os requintes de um paladar já forçado a altas doses de cafeína.

“Ao que parece seria isso.” Respondeu, deixando a caneca novamente na pequena mesa. “Podemos assumir que a lembrança dessa amada traz muito do que admiramos no Capitão América hoje.”

Em todas suas palavras, ele tomava um extremo cuidado em jamais afirmar algo além do que podia entender ou saber. A psicologia das pessoas não era a força de Richards, assim sendo, em todas as formas das quais ele apresentava sua visão sobre o assunto, Reed não encontrou exemplo melhor para dar se não falando de suas próprias experiências.

“Eu, por exemplo, guardo muitas memórias do meu pai que me definem intencionalmente e subconscientemente. Meu pai foi minha inspiração.”

Sua voz tomou um tom rouco, involuntário, do qual o Senhor Fantástico não percebeu a forma mais distante do qual conversava. Era como se a mera fala de seu pai expusesse outra parte de Reed ao palco.

“Nós todos temos experiências com pessoas queridas. Nossas mães e amigos. Até mesmo personagens.” Para continuar o que já se tornava uma palestra ao público, Reed ergueu suas mãos, pairando-as frente ao seu rosto conforme garantia estar alinhado com a perspectiva da câmera. “A Sue já me falou que muitas vezes essas convivências são algo mais natural do que a própria matéria que nos compõe.”

Com seus dedos entrelaçados, Reed concentrou-se, permitindo que a própria estrutura de sua forma se alterasse.

“Diferentes de nossas células e material genético que podem ser alterados, essas relações são permanentes no desenvolvimento de cada um, elas nos constroem e nos tecem.”

Gravando a demonstração do Sr. Fantástico, o grande painel atrás dos três transmitiu os dedos de Reed esticando-se muito além do comprimento comum, como se puxados por uma força invisível aos olhos de todos, no qual sua forma virava extensa, mas ainda da mesma finura, moldando-se ao desejo de Richards, que enlaçou os dedos uns aos outros.

As feições sobre a plateia foram diversas, com olhares de encanto, outros de espanto, enquanto alguns viam a mutação a sua frente como algo grotesco, mas todos compartilhando o interesse.

“Eu não seria um quarto do que sou sem minha equipe me fazendo ser mais homem do que ciência.”

Em um tom tão simplório quanto o próprio Capitão, Reed ignorou a qualquer coisa que os outros pensassem ou julgassem com suas expressões, tendo a própria visão presa a bagunça de vinhas de dedos que ele formava, enquanto seus pensamentos se distanciaram dali, mas se voltavam as lembranças de sua família no Quarteto Fantástico.

“Resumindo suas palavras.” Ben tentou dizer, no que sua mente não lhe permitia distrair-se da amostra das habilidades de Reed. “Essa convivência é o melhor cheque de realidade para vocês.”

“Olha, Ben.” Desenrolando aos próprios dedos que tomavam proporções normais novamente, Reed respondeu a Urich, abrindo e fechando a mão, sentindo a familiar sensação de dormência nos tendões.

Depois de anos, já não incomodava tanto a sensação de esticar-se.

“Se eu não concordar, minha esposa pode me dar um cheque de realidade indesejado quando voltar para casa.”

Tateando a mão esquerda, sentiu por dentro do grosso tecido emborrachado da luva que usava a forma da aliança envolta no dedo anelar.

Ele sorriu sem perceber.

“Isso me lembra, Dr. Richards, eu gostaria de parabenizá-lo pela criança, meus parabéns também a Dra. Storm, por mais que ela não tenha vindo hoje, eu falo por toda equipe do Clarim, nós desejamos a ela uma boa comodidade no conforto do Baxter.”

Aplausos reverberaram pelas paredes do estúdio, tanto daqueles que se erguiam na plateia e dos outros que já ficavam de pé por trás das câmeras. Reed foi discreto, agradecendo com um sutil aceno de cabeça a Ben, que erguia sua mão como sinal de que não era necessário.

“Agora, Steve.” Urich continuou, voltando-se mais uma vez ao Capitão, que parabenizou ao Senhor Fantástico com um aperto de mãos. “Se eu lhe perguntasse...” Corrigiu-se antes de terminar. “Se eu tomasse a coragem de perguntar. Quem é a garota misteriosa que você pensou até mesmo nos piores cenários da história... nos falaria quem ela é?”

“Não.” O veterano replicou, sem cerimônias e com uma repentina rispidez em sua voz. “Eu não falaria.”

E reforçou uma segunda vez, com tanta certeza quanto na primeira.

“Por mais que não seja difícil saber quem foi ela... ela ainda foi a minha garota, não a garota do Capitão América. Isso faz eu me lembrar que existe algo mais que é só meu por trás do escudo.”

Steve acreditava que partilhou de algo que foi único apenas com aquela pessoa especial e queria preservar a si.

Em sua mente, ainda eram memórias das quais faziam poucos anos desde que viveu, enquanto para esse mundo no qual acordou, onde crianças nasceram depois dele e faleceram antes do seu retorno, não passavam de acontecimentos de uma outra vida.

E talvez fosse melhor assim, para ele, para o mundo e para Peggy.

“É um respeito a privacidade dela.”

Sua voz despojou-se de qualquer rispidez prévia e em seu tom pediu a compreensão dele.

“Sorte que eu não perguntei nada.” Urich respondeu no instante seguinte que Steve terminou de falar, pigarreando uma risada discreta a si, não por desrespeito, mas por ironia.

Não era a primeira vez que havia cruzado caminhos com alguém que dizia coisas semelhantes a essa, no entanto, a pessoa de quem escutou essas palavras não era nada como o Capitão América.

“A forma como você falou, também o que você disse, me lembrou muito sobre quando eu ainda era um repórter trabalhando no papel e caneta. Em uma das minhas noites passando por Hell’s Kitchen, tive uma reportagem com um vigilante que atua por lá.

Endireitando-se, usando o dedo indicador para erguer dos óculos quase caídos a metade do nariz, ele desviou o olhar para ver da equipe por trás dos holofotes. Vendo faces familiares dos bastidores, mas felizmente não encontrando o único indivíduo que não queria ali.

“Meu chefe vai me matar por fazer essa comparação, mas... isso que você me falou lembrou muito do que o Diabo de Hell’s Kitchen me contou. Essa privação em defender pessoas por trás do símbolo.”

“Talvez eu não seja tão diferente de um vigilante.” Steve respondeu. “Mas quem somos nós para julgar as razões de qualquer um em querer privar-nos de certas coisas? Principalmente de querer proteger alguém, mesmo que seja usando uma máscara.”

“Alguns diriam que é um ato de covardia.” Ben vociferou lentamente, não sendo claro se essa era sua própria opinião, ou se ele realmente falava pela visão de outros.

“Não posso dizer que concordo.” Reed franziu o cenho, refletindo bem no que Urich destacou como covardia, mas também abstendo-se no que era guiado pela própria curiosidade em saber o que teriam a falar.

“Muitos patrulhando as ruas...” Ben disse, erguendo a mão pedindo a palavra uma última vez antes que Steve falasse. Pisando em ovos enquanto sentia que devia se explicar. "Não usam uma máscara, mas um distintivo. Eu me considero um defensor de vigilantes. Independentemente de ser certo ou não sua conduta, eles fazem sua parte.”

Fechando a mão, ele abriu o seu dedo indicador, listando.

“Indivíduos como o Demolidor.”

Levantou o dedo médio.

“Como o Cavaleiro da Lua.”

Enfim, o dedo anelar.

“O Homem-Aran--" E Urich calou-se antes que falasse algo que custaria seu emprego no Clarim Diário. “Eu só não deixo de pensar, não há mais coragem naquele que não tem medo de esconder seu rosto? Aquele que usa uma máscara não é só alguém que tem algo a esconder, mas também a temer?”

“Não.” Steve retorquiu. Compreensível da posição que o próprio apresentador havia se posto, mas também descrente que tal descriminação fosse feita. “Todo cidadão deve deter o direito de escolha, essa é uma liberdade. É algo que defendemos com ou sem máscaras, mas não é só isso. Mostrar seu rosto, por mais que corajoso, não significa que aquele usando a máscara é um covarde.”

Não havia heroísmo que deveria ser confundido com covardia nas crenças do Capitão América, pois em tudo que aprendeu, se as ações detinham a coragem e a intenção do bem para os outros, jamais deveriam ser desvirtuadas, tanto quanto pré-julgadas.

Acima de tudo, quando o injustiçado era um benfeitor que colocava sua vida em risco.

“Quem recusa a glória, aquele que veste uma máscara, constrói algo que nem eu e o Dr. Richards conseguimos com nossos rostos expostos.” Ele alcançou o elmo posto ao lado escudo, segurando com suas duas mãos, vendo o azul marcado com pequenas asas brancas delineadas aos cantos. “É um tipo de heroísmo muito diferente.”

“Que seria?” Richards indagou, olhando Steve com seu rosto baixo e visão voltada ao capacete posto ao seu colo.

“A máscara permite a ideia de que qualquer um pode ser um herói.” Falou, sem olhá-lo de volta. “Quem veste a máscara pode ser um dos nossos amigos na plateia. Até mesmo o rapaz que leva a câmera atrás do Sr. Urich.” Erguendo seu rosto a lente, o Capitão América falou. “Pode ser você sentado ao sofá em sua casa. Qualquer um que comete deslizes tão pequenos quanto quebrar parte da louça enquanto a lava, ou que se atrasa ao trabalho por atender a outros deveres.”

Ele sempre ficou desconfortável frente às câmeras, mas neste momento Steve sentiu como se pudesse falar com qualquer um que o escutasse além da transmissão.

“Olhe a pessoa ao seu lado. Se for alguém que você ama, arriscaria a vida dela fazendo inimigos todos os dias?” Seus olhos azuis passaram a Ben, arqueado na própria poltrona para observar a Steve, ouvindo atentamente seu discurso. “Sr. Urich, imagino que você tenha esposa.”

Ele concordou.

“Se pudesse fazer o que eu faço. Fazer o que Reed é capaz, mas além do traje ainda fosse um homem comum, deixaria qualquer risco cair sobre alguém que você ama por algo tão simples quanto reconhecimento?”

Ben não pode responder, pois com qualquer réplica seria hipócrita. Atrás do reconhecimento ou caminhando pela verdade, foram sempre as razões que estiveram por trás do seu desejo no jornalismo e muitas vezes ele recuou de artigos perigosos dos quais pensava o que poderia ser de Doris se ficasse envolvido.

A ideia dela o esperando na porta em uma noite e ele nunca chegando, ou o pesadelo de chegar em casa e ver que qualquer pessoa que tivesse irritado fizesse o pior sua esposa antes que pudesse protegê-la o fazia tremer.

Urich entendeu o que o Capitão América tentava lhe falar e quando gentilmente assentiu em negação a pergunta, Steve retribuiu com um olhar de quem sabia que Ben compreendia.

O Capitão apenas fez o que Peggy lhe ensinou quando frente aquelas câmeras que lhe deixavam desconfortável.

Ele simplesmente estava sendo Steve Rogers.

“Eu acho que colocar uma máscara é despir-se da glória e no lugar dela trajar a responsabilidade.”

“Bem.” Urich suspirou, ainda agarrado pela forma como Steve falou. Ele não sabia descrever o que era, mas o sentimento era algo que ele podia sentir ser semeado com aqueles que assistiam em sua plateia.

Olhando para a lente à sua frente, posta um pouco atrás dos assentos do Capitão e do Senhor Fantástico, Ben disse.

“Se você gosta de heróis uniformizados. Soldados que trocaram a camuflagem por cores vibrantes, nós teremos um intervalo comercial e após isso um pouco mais de conversa com Steve Rogers e Reed Richards. Não mude seu canal, pois é apenas na mesa redonda que nós sempre apresentamos algo um pouco... diferente.”


SPIDER-MAN STAGE ONE:
FANTASY

PRÓLOGO: ZERO

Em um fio a aranha teceu seu caminho, suas pernas contorcidas e longas davam toques a crescente linha de teia, no que seu corpo balançava pela passagem da janela aberta.

Os ventos do outono também invadiam o quarto, ao que os raios de luz da manhã pintavam as velhas paredes azul marinho em tons de dourado e batiam diretamente contra o menino jogado sobre a própria cama desorganizada.

Lençóis amassados que quase caiam do colchão, um prato com restos encostado ao seu lado e a própria nuca apoiada na parede invés de estar deitada ao travesseiro caído no chão eram as provas de mais uma noite em pé, que no fim ele perdeu a batalha inútil para não dormir.

Quando seus despertadores já se tornavam inúteis contra seu sono, a manhã resolveu ser seu alarme natural. Sentindo a luz contra si, Peter torceu seu rosto, forçando as pálpebras fechadas antes de lentamente abri-las, sentindo o peso em mantê-las abertas.

Reconhecendo a familiar tensão aos ombros após horas dormindo sentado, ele esfregou aos olhos para se livrar dos borrões escuros semeados em sua visão, no que veio o velho ardor nos tendões do punho e o desconforto do pulso. Consequência de uma outra noite de perseguições em uma cidade que, diferente dele, nunca descansava.

Sua visão agora mais clara o fazia perceber que mais uma vez dormiu usando o traje, sendo exceção a máscara, provavelmente perdida em meio àquela bagunça. Ajeitando-se, Peter também notou meia dúzia das pequenas cápsulas cilíndricas deitadas ao seu peito.

“Apagou estudando o fluído de teia...” Disse a si com um gosto amargo na boca. Em um murmúrio de decepção que escondia um tom de reconhecimento. “Grande herói.”

Ao menos, seu cansaço significava que outros poderiam descansar.

Tateando com os pés, ele encontrou e puxou o lençol na beirada do colchão para perto, cobrindo os cartuchos e a si mesmo. Recostando-se sobre o conforto da cama que transformou em um ninho, ele agarrou-se ao tecido, notando o que não largava desde o momento que havia dormido.

O polegar correu pela forma redonda do aro, em algo tão simples quanto toque, reconheceu os velhos óculos que representavam tanto do que ele era antes.

Sentiu a ponte curvada entre as lentes garrafa tantas vezes partidas nos dias que corria de valentões invés persegui-los.

Com o dedo, examinou uma das hastes que havia sido envergada para baixo. Vieram memórias de quando seus erros não tinham consequências.

E tocando a fissura em uma das lentes, lembrou-se quando enxergava a vida como algo simplesmente embaçado, onde nada era definido em tempos simples do qual a juventude era feita da inocência e fantasia.

Largando do memento, Peter fechou seus olhos. Independente do quão difícil fosse se desapegar do passado, mesmo com coisas simples, naquele momento ele preferia aproveitar do presente, nos minutos de descanso que teria antes de ser obrigado a levantar em um futuro próximo.

Era mais fácil dormir do que se perder em lembranças e não havia nada que pudesse lhe tirar daquela cama.

“Peter, você viu aquele cupom de desconto do seu Romita?” Com exceção da voz familiar que ouviu por fora das paredes de seu quarto.

“Não!” Berrou, com seu sono exorcizado do corpo.

Ele saltou abrupto da própria cama, jogando o lençol para trás enquanto seus cartuchos de teia em seu colo agora caiam aos seus pés.

“Não, não, não, não...” Repetiu de joelhos, catando a primeira cápsula que pudesse alcançar no chão, guiado em movimentos de desespero, ouvindo passo após passo de sua tia se aproximando.

Em um clique, o pequeno compartimento acoplou-se ao bracelete em seu pulso e em um movimento tão ligeiro quanto um espasmo muscular, Peter disparou certeiro com sua mira na porta ao outro lado do quarto, cobrindo-a parcialmente em uma massa de teia.

“Eu não consigo achar...” A voz abafada ressoou ainda mais próxima.

Pegando quatro dos cartuchos restantes, Peter ouviu a primeira batida no que ela tentava abrir o lacre de fluído de teia. Aprensivo e ainda ao chão, ele ficou parado, olhando sequências de esforços falhos dela em abrir a porta. Odiava a sensação de mentir para May, mas detestava tanto quanto o frio em sua barriga toda vez que quase era pego.

“Peter, sabe que eu não gosto dessa porta trancada.”

“May!” Berrou, correndo em passos com tropeços até a porta. “Acho que...” Dando fracos solavancos, ele usou o mínimo de sua força para fingir tentar abri-la. “Essa coisa emperrou outra vez.” Mentiu, acentuando em sua voz um falso esforço.

“Ah, só o que me faltava, mais uma coisa pra arrumar.” Ela disparou do corredor. “Eu vou procurar lá embaixo. Eu só vou conseguir abastecer o carro mais tarde, então vai ter que ir de ônibus hoje.”

“Tá!” Respondeu, escutando o estalo dos saltos de May se afastando pelo corredor. Seus olhos correram sobre o despertador ao lado de sua cama. – Apenas doze minutos para se arrumar e chegar até o terminal.

Se queria chegar a tempo, era só uma questão de fazer tudo simultaneamente.

Sapateando o chão, ele procurou com os pés por sua mochila ao mesmo tempo que debatia ao próprio corpo em uma luta desesperada e sufocante para livrar-se do traje.

Sentindo o tecido elástico resistir contra sua força, ele esticou o uniforme ao máximo, arrancando o torso e recuperando o fôlego, passando a jogar as calças, o par de botas, a dupla de luvas e o conjunto de lançadores de teia até o colchão.

“Cadê a máscara?” Sussurrou a si, como se alguém pudesse ouvi-lo. Olhando aos lados, achava apenas mais caos espalhados no chão, em folhas, roupas, livros e bugigangas, mas nada de um chamativo gorro de tecido vermelho.

Ele teria de depender da sorte para encontrar. Apenas vestindo suas boxers, Peter juntou o traje em uma única bola comprimida em suas mãos, forçando o uniforme na mochila recheada, ele sentiu a resistência do tecido, mas isso não o impediu de persistir, parando só ao ouvir o rasgo do tecido.

Bufando, rendeu-se ao fato que aquilo não daria certo. Ele havia tirado a roupa para nada.

“Ah!” No andar de baixo, a voz de May bradou. “Ainda não conseguiu olhar o encanamento, não é?”

Xingando mentalmente a si por ter esquecido, Peter jogou-se de costas de volta ao colchão. Sua cama rangendo com o peso de solavancos, no que ele se contorcia uma outra vez, agora com suas pernas erguidas ao teto no que era obrigado a vestir o uniforme novamente.

May, impaciente, chamou por seu nome outra vez.

“Não!” Admitiu, rolando ao chão já vestido, deixando apenas as luvas e seus lançadores na mochila. “Mas vou.” Prometeu em seguida, incerto se realmente se lembraria.

“Peter, você tinha prometido fazer--” May falou, parando em uma breve pausa antes de reforçar. “Dois dias atrás!”

“Eu sei!” Peter respondeu, pasmo, pois na realidade não sabia que já haviam se passado dois dias. Abrindo e fechando sua boca muitas vezes, pensou em como justificar, correndo até sua mesa enquanto juntava os livros ao chão. “Eu me distraí-- com um show de mágica.” Falou em palavras quebradas, descrente com a própria desculpa.

“Show de mágica?” Ela repetiu, procurando entender se havia ouvido certo.

Ele apenas ofereceu um grunhido de afirmação, sabendo que se fosse cobrado dessa vez, seria por merecer. Sobre a escrivaninha, Peter pegou todo material necessário, acreditando não faltar nada e enfiou para dentro da mochila sem olhar duas vezes, mais concentrado em desisptar May com uma nova desculpa.

“Eu acho que você comprou a peça errada.” Desconversou, guardando seu estojo, antes de voltar-se à mesa uma outra vez para seu próprio arrependimento, achando a máscara perdida, encobrindo parte de uma caixa bagunçada em tralhas e pertences.

Congelando em um instante, Peter perdeu-se em um momento reservado à própria decepção e ressentimento. Ele se esforçava para esconder o mínimo de May, mas apenas mais segredos eram empilhados.

Com uma mão pegou a máscara, representação de tudo o que escondia, com outra, segurou os currículos já impressos na noite anterior. Lamuriou uma promessa falsa de que repararia seu erro e sacou ambos para dentro da mochila.

“Eu acho que você nem olhou os canos.” No que ela o acusou, estando correta, colocou a caixa ao chão arrastando-a com seu pé para debaixo da cama.

“E você provavelmente está certa.” Respondeu cabisbaixo, dizendo a si o que não contava a sua tia, era simplesmente porque sabia o que era melhor para ela.

Vestindo o que encontrava pela frente, as vestes comuns de um menino do Queens esconderam o traje vermelho e preto. Garantindo que as mangas do agasalho cobrissem qualquer vestígio do uniforme, Peter agradeceu por não ser mais verão ou primavera.

Os dias de calor eram os problemáticos, tendo que vestir roupas debaixo de roupas.

“Peter! Também se esqueceu de instalar a lâmpada?”

“Eu já faço isso.” Respondeu, aproximando-se da outra mesa posta ao lado direito de sua janela, onde estava sua infame exibição de conquistas feita por May. Algo que Harry e Gwen nunca lhe deixariam em paz por ter.

Espalhados sobre a bancada ficavam seus prêmios de feiras de ciência que conquistou até os quinze anos, sempre deixando a metida Srta. Stacy em segundo lugar e certificados acadêmicos que valeram vários elogios do pai de Harry, todos formando um mostruário que contavam uma vida de esforço e resultados sem precisar exibi-la em palavras, mas Peter não dava mais atenção para esses prêmios.

Seus olhos pousando somente sobre o retrato guardado entre símbolos de exibicionismo. Ele encarou por um longo minuto a foto tirada anos atrás; dele, May e seu Tio Ben, todos sorrindo em um dia de neve no Rockefeller Center.

Desviando seu olhar, voltou-se ao mural de provas expostas sobre a parede, mantidos por alfinetes e faixas de fita adesiva. Todos os testes mostrando nota máxima. Matemática, Química, Biologia, o que fosse letivo Peter Parker havia dominado, ao menos antes era assim, porém, ele também não procurava nada de especial naquilo. Erguendo uma das folhas, revelou suas anotações escondidas por trás dos papéis.

Suas novas responsabilidades escondidas sobre seus antigos deveres. Desprendendo o papel oculto, Peter estudou rapidamente sua investigação, semanas de pesquisa e agora havia coletado provas o bastante contra o Mestre da Ilusão.

“Alakazam, Beck.” Murmurou, falando em voz alta para ninguém a não ser a si próprio.

“Peter! Não instalou a lâmpada também?”

“Tia May, eu disse que já faço!” Replicou incomodado, dobrando os papéis em meio dos livros e currículos em sua mochila.

“Essa porcaria de gás falhando outra vez.” May reclamou entre batidas que dava contra o gasômetro.

Peter estava pronto para começar a salvar o dia. Resolvendo uma tarefa de cada vez. Mentalmente organizando tudo, ele preparou-se para sair do quarto. Parando em frente ao primeiro obstáculo da manhã logo a sua porta, trancada com a mesma teia que usou minutos antes para May não entrar, agora lhe impedindo de sair.

Com as duas mãos ele agarrou onde pensou estar escondida a maçaneta dentro da viscosa massa branca e forçou uma vez com esforços inúteis.

Na segunda vez, com um pé ao chão e outro apoiado à parede, ele cerrou seus dentes e puxou, vendo o material esticando ao que a madeira rangia. Provando o quão eficaz sua fórmula era em comparação ao quão idiota havia sido por se trancar no quarto.

Em seu terceiro impulso, Peter cedeu quase em imediato, escutando o estalo de sua parede rachando. Usando toda sua força ele poderia partir o lacre de teia ao preço de levar o concreto junto.

Recuando dois passos, olhou novamente o despertador. – Apenas cinco minutos restando. Levaria ainda uma hora para sua teia dissolver.

Virando-se a janela aberta, alinhada para casa ao lado, ele ponderou fazer algo do qual já estava acostumado. Pelo o que conseguia enxergar, não havia ninguém que pudesse vê-lo no vizinho, assim, prendeu as alças da própria mochila e correu em disparada no próprio quarto.

Em um salto veloz, agachando as pernas enquanto ao ar, ele atravessou a janela, jogando-se do segundo andar. Caindo, Peter abriu seus braços, sentindo pela primeira vez naquele dia a familiar sensação do vento batendo contra seu corpo, até a breve queda no gramado.

Em um grunhido seco, seus pés bateram na terra no que ele usava do cercado que separava o terreno deles aos da Watson para apoiar-se no pouso. Olhando para as ruas, encontrou apenas calçadas vazias, apaziguando qualquer incerteza que olhos curiosos do Queens haviam lhe visto.

Batendo os calcanhares, limpando as solas do tênis sujos em terra, Peter caminhou para frente de casa. Em seu rosto, um sorriso solto surgiu ao pegar o celular do bolso, contente por duas razões.

A primeira se encontrando nesses pequenos momentos de despretensão em seus dons. Havia coisas fantásticas das quais os outros não eram capazes de imaginar que ele podia fazer. Muitas vezes isso gerava conflito, mas havia momentos isolados que Peter aproveitava para dizer a si que só havia um Homem-Aranha e era ele.

Agora, a segunda razão de entregar sorrisos bobos ao aparente nada estava na tela do aparelho em sua mão, na forma de notificações marcadas em mensagens ainda não respondidas.

‘É uma pena você não pode vir ontem. Ocupado lambendo os sapatos do Jonah?’ Ele leu, subindo os poucos degraus da entrada.

‘A gente se reuniu com a galera do Flash.’ Caminhando no deque antes da porta, o nome caiu com um gosto amargo na boca dele, mesmo que as mensagens fossem dela.

‘Não vacila atrasando outra vez.’ Pigarreando uma risada, entrou em casa.

Guardando o celular, não respondeu nenhuma das mensagens de Gwen. Ele não estava a ignorando, na verdade ele não sabia se tinha a coragem de fazer uma coisa dessas com ela, conhecia os seus limites e a bronca que ouviria, mas a melhor forma de não se atrasar seria deixando de se concentrar no celular.


‘...Shalit foi libertado após cinco anos aprisionado pelo grupo radical...’

Entrando, Peter escutou o som do velho rádio ressoando pela casa, acompanhada pelo chiado distinto de uma caixa de som já gasta pelo tempo.

Caminhando até a cozinha, ele só parou quando seus olhos caíram por um breve momento nos envelopes deixados na estante do corredor logo na entrada. Dando espaço à cruel curiosidade, ele folheou as dúzias de papéis, encontrando as marcações vermelhas de aviso em contas depois de contas ainda não pagas.

Eram advertências de energia, água e hipoteca, junto dos atrasos para pagar o gás, internet e os planos de antena.

“Vai se atrasar.” Ela advertiu no fim do corredor. “Outra vez!”

Ajeitando os papéis onde havia os encontrado, Peter se perguntava se ela o chamava porque se atrasava ou porque sabia que ele estava olhando o que não devia. Mas não importava o quanto May detestasse que ele visse aquelas contas, ele não poderia só fechar os olhos para os deveres que eram seus.

Ao fim de tudo, a ignorância entre eles sempre era a mesma. Com sua tia fingindo que não sabia que Peter olhava, enquanto ele mentia que não notava o quão desesperava May estava.

Eles eram péssimos mentirosos.

“Eu não acordei com o alarme... Outra vez.” Ele falou, caminhando para dentro da cozinha. Com seus olhos ao chão, enquanto forçava um ato que não se abalava pelos números de débito nas folhas.

“Dica de veterana.” May disse muito mais jovial que o sobrinho, perspicaz o bastante para saber que ele escondia algo dela. “Você não marca quinze alarmes. Seu sono vai ignorar um, achando que pode se erguer no próximo.”

Com o dedo indicador no queixo de Peter, ela levantou seu rosto para encará-lo olho a olho. Mais uma vez se surpreendendo com o tanto que ele havia crescido. “Só serve para enganar seu sono.”

Enganar a si próprio era o último dos problemas de Peter Parker.

“Mas se eu fizer isso...” Ele desvencilhou-se do toque dela, pigarreando uma risada ao que lhe encarava com uma expressão falsa de desdenho. “Significa não ser mais acordado pela solteirona mais cobiçada do Queens. Vão me chamar de louco.”

“Sei.” Pousando uma mão sobre o próprio quadril, ela alcançou uma pequena caixa, batendo a lâmpada embrulhada no peito do sobrinho. Indicando para o rapaz com o polegar para a lâmpada ao teto. “Vou desligar o fuzil.”

“Não precisa.” Peter respondeu, passando ao lado de sua tia, rasgando a embalagem, ele arrastou uma das cadeiras para o centro da sala. Com um olhar zeloso, ela segurou o assento pelo encosto, vendo o menino subir o banco.

“E o senhor disse, haja luz e voilá!” Peter falou, girando o bico da lâmpada e encaixando-a ao teto no que a luz se acendeu sobre a palma de sua mão segurando o bulbo. “Luz se fez.”

“É. Só uma pena que no oitavo dia o Senhor não olhou o encanamento.” May lamentou, segurando a mão do sobrinho para ajudá-lo a descer do banco, mesmo que ele não tivesse pedido ajuda. “E ao nono dia Ele não pagou o gás.”

“Tem certeza?” Peter indagou, com os pés ao chão e colocando a cadeira no lugar. “Parece o tipo de coisa que Ele faria no novo testamento.”

“Volta só às onze hoje?” Ela murmurou, largando-o depois de longos segundos. Caminhando até a mesa onde serviu café para si, seu aperto sobre a chaleira trêmulo ao que líquido derramava na xicará.

“Eu...” O aperto dela não passou despercebido por Peter. “Só consigo voltar pelas onze.”

Respondeu, soando muito mais receoso e incerto na sua resposta do que deveria. Guiado pela culpa forjada em mais uma mentira. “Sabe que quem dita a hora é o chefão sorridente com bigode de vassoura--"

“Shessh!” Ela o cortou, indicando com a mão para parar. “Sem falar mal do Jonah. Ele é severo, eu sei, mas também é compreensível.”

Peter pensou se falavam do mesmo J. Jonah Jameson.

“É só conversar com ele. Com o horário que você tem feito... ele vai entender.” May assegurou, passando sua atenção do café para a torta de amora já parcialmente cortada sobre a mesa.

Ela estava errada. Jonah não se daria ao trabalho de entender. – Porém, não importava mais. Ele não era mais um empregado de Jameson e por ora, era sua escolha não contar a ela. Com as contas e dívidas não indo embora tão cedo, Peter sabia que mentir sobre seu trabalho era o melhor a se fazer.

Significava menos preocupações para a tia, assim como menos tempo pensando em justificativas do porque estava até tarde em Manhattan.

“Depende do que é pra fazer.” Falou cauteloso, abrindo as portas abaixo da pia, procurando a origem da bagunça no encanamento.

“Jantar com as Watson.” Deixando de ajeitar o pedaço, ela estudou Peter, agachado enquanto botava suas mãos contra a selva de canos. “Se não aparecer hoje, vou dizer a Anna e a MJ que você realmente tem medo de mulheres.”

MJ?” Perguntou, ignorando a acusação da tia.

“É o apelido da Mary Jane. Ela disse que eu poderia chamá-la assim.”

“Ela se chama de MJ?” Persistiu no apelido, como se sua presença na janta não fosse a pauta.

“Chama sim, e eu acho que casa bem o caráter animado dela.” May falou contente, dando de ombros ao desdenho do sobrinho. Guardando o pedaço separado em um pote que garantiu duas vezes que estava bem fechado.

As gotas d’água formaram traços por suas mãos, enquanto Peter apertou o registro abaixo da torneira. Não demorou para entender que o problema não estava nos canais. Ele teria que descer no porão para descobrir o que realmente era após a escola.

Erguendo-se e limpando as mãos, fechou o armário da pia com o calcanhar, enquanto ponderou o que era esse caráter animado que May exaltava.

Sua tia tinha um fraco por pessoas que lhe tratavam como uma jovem e, por outro lado, um receio passivo-agressivo com quem lhe considerava velha. – Desde o dia que Gwen havia lhe chamado de senhora procurando ser educada, ela tinha um pé atrás com a amiga do sobrinho.

“Eu posso tentar aparecer. Vai depender do Jonah.” Mentiu, guardando o pote de torta dentro da mochila. “Você não fez a torta pra me subornar a aparecer, fez?”

“Como se você fosse se vender tão fácil.”

“Se fizer aquele bolo de banana da semana passada...” Peter comentou, beijando o lado do rosto da tia, em seguida caminhando em passos rápidos para a saída. “Você vai ter subornado um jovem em crescimento com sucesso!” Berrou no corredor.

“Peter, não corre pra estação! Vai sujar tudo com a torta!” May praguejou. “Você tá bem agasalhado?”

“Tô sim, pode deixar!” Disse, evitando ver as contas sobre a mesa passando no corredor, apenas para quando chegou ao lado de fora, sentindo o sol da manhã permeando nas ruas do Queens entre nuvens carregadas de outono, enxergar o velho automóvel estacionado na entrada do terreno.

Mesmo que desviasse os olhos de algo como May queria, haviam outras coisas para lembrar de seus deveres. Vendo o carro, Peter disse a si que não podia manter os segredos, afinal não havia responsabilidades se fugisse dos problemas e tão pouco maturidade se justificasse seus erros invés de enfrentá-los.

Mas tudo que ele queria era tempo.


Caminhando as poucas quadras do Queens até a parada, Peter teve seus pés nas calçadas de concreto e as mãos jogadas aos bolsos do agasalho, ele deixou a música ecoar pelos fones de ouvido, tirando proveito de uma manhã de comodidade.

Haviam poucos nas ruas, mas aqueles que o olhassem enxergaram nada mais que um garoto normal.

“Winding in and winding out...” A canção ressoou em uma melodia que ele sibilou as letras junto. “The shine of it has caught my...” Em súbito, a música parou, dando lugar a uma ligação inesperada logo pela manhã.

Em um toque da tela com o aparelho no bolso, ele atendeu sem olhar e nem pensar quem o ligava.

‘Você já chegou na esquina?’ Gwen perguntou, incapaz de esconder mesmo pela ligação, a apreensão carregada em sua voz.

“Vou chegar.” Por outro lado, Peter respondeu confiante, abrindo os ombros e estufando o peito enquanto respondia alguém que nem podia enxergá-lo. “Menos de um minuto.”

‘A gente tá duas quadras daí. Não esqueceu nada?’ Ela continuou o interrogatório, com sua voz quase abafada pelo som do ônibus na estrada e as dezenas de conversas ao redor dela.

“Você me subestima, Gwendy.” Ele assegurou.

‘Eu não gosto quando me chama assim.’ Cortando-o, ela demonstrou mesmo por uma ligação seu lado mais autoritário. Suspirando, Gwen pensou muito antes de dizer. ‘Eu vou guardar um lugar pra você do meu lado.’

Simples palavras foram o bastante para Peter sentir muito. Com um outro sorriso reprimido, ele fez um longo segundo de silêncio. Digerindo o que Gwen falou, sentindo uma sensação inesperada em sua barriga, que espalhou-se ao longo do corpo.

Era o que Gwen Stacy podia fazer com ele, só poucas palavras por uma ligação e uma caixa de texto eram capazes de fazê-lo ficar mais distante do mundo do que quando escalando o topo do Chrysler em Manhattan.

‘Peter?’ Ela o chamou.

“Aqui. Eu só--"

‘Tô te vendo.’ Ela falou, algumas quadras de distância, ele já podia enxergar o grande ônibus amarelo cruzando o asfalto. Lentamente se aproximando. ‘Pelo menos eu acho que é você. Não tô acostumada a te ver no horário, mas, quem diria... um Peter Parker pontual.’

Ele não podia culpá-la pelos comentários, tão pouco podia mentir para si. Peter estava surpreso, acima de tudo contente, que havia conseguido chegar a tempo. No momento que saltou da cama, tudo indicava – Fosse o horário, a bagunça do quarto e as tarefas de May. – Que ele teria outro atrasado registrado.

‘Roupas limpas.’

Gwen elogiou, julgando-o pela janela, esticando o rosto quase para fora, notando que ele não usava as mesmas vestes do dia anterior. – Esse era um costume que Peter desenvolveu e se tornou uma das poucas colaborações dela e de May para arrumá-lo.

‘Cabelo em ordem.’

Muitas vezes ele tinha os cabelos desgrenhados, mas hoje, por qualquer que fosse o milagre, sua cabeleira estava ordenada o bastante para não ser a bagunça dos outros dias.

‘E o trabalho do Dr. Connors tá dentro da mochila.’

Ela disse, sem imaginar o que se seguiria.

“O trabalho do Connors.” Em uma frase tão simples Peter sentiu seu dia ser virado ao avesso. Alunos que se reuniam para subir ao transporte esbarravam no menino paralisado na calçada.

Ouvindo o ruído do ônibus que se aproximava, ele ficou boquiaberto, pensando no que fazer. Não era um caso de esquecer-se de fazer o projeto, ele havia feito, mas entre tudo que havia pego em seu quarto, não havia nem visto os papéis do trabalho de Connors.

Com um passo para trás, Peter forjou em sua mente todo o cenário. Connors não deixaria ele passar impune e não daria mais segundas chances. Com um segundo passo, mentalizou o caminho até sua casa. Três quadras para correr e só uma esquina até o ônibus chegar.

‘Peter!’ Gwen berrou pela janela, vendo-o dar as costas.

“Segura o motorista!” Peter suplicou antes de desligar a ligação. Escondendo o rosto com o gorro do agasalho, em um momento que a pressa não podia dar lugar ao cuidado, ele fez um desvio, correndo entre os becos do Queens.

Em um impulso, Peter jogou seu corpo ao ar como havia feito minutos antes, mais uma vez sentindo o vento correr pelas vestes, enquanto deixou a força e agilidade tomarem espaço.

Quadras que eram feitas em minutos agora eram cruzadas em segundos. Correndo, ele jamais conseguiria pegar o projeto em casa e retornar ao ônibus em tempo, mas usando as paredes das moradas como apoio e pulando de telhado para telhado, ele sabia que tinha uma chance.

E no fim, aquilo nem era sobre sua média, mas sim sobre o que Curt Connors faria. Não poderia dizer que o professor tinha uma rixa com ele, mas nem mesmo suas notas perfeitas eram o bastante para fazer Connors gostar de Peter.

Tudo era uma obra de um pequeno fator de sua vida chamado de a Sorte dos Parker. Era um termo que havia criado para definir a forma como sua vida não era escrita em linhas tortas, mas sim rabiscada em traços sem sentido.




May ligou o interruptor e a luz irradiou da lâmpada recém instalada na cozinha vazia. Esses momentos eram difíceis para ela, episódios que aconteciam quando não tinha ninguém próximo. Apagando a luz, os pensamentos dos quais nunca deixava ter espaço tomaram lugar em sua consciência.

Aquela cozinha que tantas vezes discutiu com Ben sobre ser apertada para três pessoas, agora se tornava espaçosa, mas menos confortável com apenas dois. Não era a primeira vez que notava isso e também não seria a última.

Trêmula, ela pensou por quanto tempo podia esconder de Peter tudo que lhe afligia. Antes pensava ser obra da solidão, algo que a afetava quando o sobrinho não estava perto, mas agora, não só os tremores, mas a dor no braço e a dor em sua cabeça eram frequentes até quando estavam juntos.

Em um estrondo na porta, como se alguém arrombasse a entrada, os devaneios que May procurava se livrar, foram substituídos por um lapso de uma noite antiga. De um momento em que alguém invadiu a paz na vida deles.

Ela não caminhou para frente e nem para trás, com medo de descobrir quem invadia sua casa.

“May, sou eu! Tenho que pegar meu projeto de biologia!” Peter berrou sem dar espaços entre as palavras, subindo a escada em passos corridos, pulando degraus para ganhar tempo.

No segundo andar, Peter agarrou a fechadura em um primeiro movimento, jogando seu corpo contra a porta, no impacto, a abrindo, rompendo o lacre de teia e estourando a maçaneta junto.

“Ótimo, mais uma coisa pra arrumar.” Disse, vendo a velha maçaneta, não mais encoberta em teia, rolando por seu chão. Cruzando o caminho até a escrivaninha, Peter ergueu o notebook trincado, tirando debaixo os papéis do projeto.

As folhas estavam amassadas, escritas a mão invés de digitalizadas como Connors havia pedido e, o pior de tudo, ainda faltavam duas páginas que ele não havia feito antes. Dobrando os papéis na mochila, Peter decidiu crer na aposta que conseguiria completar o restante no ônibus.

“Tchau!” Berrou para a tia, saindo pela porta antes mesmo de ouvir qualquer palavra de May.

Uma última vez fazendo seu caminho até a parada, Peter deixou de fazer suas acrobacias uma esquina antes da estação, não dando espaço ao fôlego, enquanto enxergava o transporte partir. Era uma distância de uma quadra entre eles e o ônibus já estava se movendo do terminal.

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Persistindo, ele foi em disparada o mais rápido que pôde, quase deixando marcas de suas solas no concreto e rasgando seus tênis. Com sua visão borrada pela correria, porém ainda nítida o bastante para destacar, ele pode ver a cabeleira loira de Gwen sendo ofuscada por alunos que se erguiam dos assentos para assistir a perseguição.

Seus colegas apontando e rindo dele dentro do transporte, enquanto deixava a imaginação falar que tipo de coisa diziam dele.

‘Todas as unidades disponíveis, assalto a mão armada ao Banco Central Financeiro no Queens, os suspeitos estão fazendo caminho para...’

Amaldiçoando seus fones de ouvido e a frequência da polícia instalada no celular, Peter continuou sua corrida, mas desviando do caminho que fazia, enquanto o ônibus seguia a direção da escola sem ele.

Uma última vez, olhou para trás, podendo enxergar novamente Gwen e junto dela, Flash que se sentava ao lado dela.

‘Testemunhas falaram que conseguiram ver o Aranha ajudando os...’ Ele não precisou ouvir mais nada da frequência. Entre dentes cerrados, disparou para os becos das casas, com qualquer dúvida sanada: era Beck.

Por semanas Quentin Beck fez seus assaltos criando ilusões do Homem-Aranha, enquanto o Mystério aparecia na cena a tempo de garantir que ele fosse incriminado.

Mas hoje era o dia que Peter faria questão que o Cabeça de Aquário não escapasse dele.

Sem olhos que o acompanhassem nos becos do Queens, o menino continuou a correr, enterrando os dedos por dentro da camisa até enfim puxá-la, expondo o emblema preto de uma aranha ilustrada em meio ao traje vermelho.

Tênis, calças e abrigo, Peter livrou-se uma por uma de suas vestes, mas sempre as agarrando. Ele não podia se dar ao luxo de ir atrás de roupas novas. Em um primeiro salto, seus pés trocaram o concreto das calçadas pelas paredes das casas, subindo aos telhados, ele amassou o que pôde da roupagem para dentro da mochila estufada, deixando amostras das roupas parcialmente expostas.

No segundo pulo, o menino agarrou os lançadores e os botou ao pulso, em sua queda, disparando o fio de teia que serpenteou os céus até atingir uma das casas, lhe embalando de volta aos ares metros antes de tocar o chão com o peso do próprio corpo.

“Vamos lá, Beck!” Trajando a máscara vermelha, Peter sentiu uma última vez o vento correr contra seu rosto, bagunçando seus cabelos castanhos no que os olhos marrons eram escondidos por trás das grandes lentes brancas. “Só mais uma vezinha.”

O Homem-Aranha falou se balançando pela vizinhança, agarrando-se ao fio de uma outra teia que serpenteou entre as núvens. Sua imagem entre as nuvens como um espectro escarlate em meio à luz da manhã.

Seu poder implicando responsabilidade. Agora era sua hora e não havia nada que pudesse pará-lo.

“E dessa vez você não passa do show de abertura.”


SPIDER-MAN STAGE ONE:
FANTASY

CONTINUA NO CAPÍTULO 1:
‘DOS QUINZE AOS DEZESSETE’

10 DE AGOSTO

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.