Sortner

Sozinho... ou quase


“O que você achou das recentes atitudes de Sherlock Holmes no caso Bowker?”

“Bom, ele conseguiu, como sempre. Resolveu o caso mais rápido do que qualquer outro faria no lugar dele.” A mulher desconhecida respondeu em tom neutro. “Infelizmente Helen quase perdeu seu Sortner, mas ninguém pode realmente culpá-lo. O Sr. Holmes não compreende essa relação eterna, então nós precisamos entender o lado dele antes de responsabilizá-lo por qualquer coisa.”

“Acha que um Sortner ao lado dele mudaria o desfecho do caso?”, o entrevistador questionou curioso.

“Obviamente ele teria mais cuidado ao lidar com os sequestradores, pensaria não apenas em Helen, como também nos riscos para Hanson. Mas nunca teremos certeza.”

“Um Sortner o tornaria mais... humano, então?”

A desconhecida sorriu, irritantemente gentil.

“Qualquer pessoa certa o tornaria mais humano. Todos nós sabemos que um comportamento especial é dedicado ao nosso parceiro e que isso nem sempre se expande a outras pessoas. Então do que adianta ele ser mais empático com o Sortner e ainda ser um imbecil com o resto do mundo?”

Sherlock revirou os olhos e desligou a televisão, questionando-se sobre o motivo de ainda insistir em ligá-la. Sabia que sempre que seu nome surgia, a ausência de seu Sortner era citada logo em seguida.

O caso Bowker não foi um dos mais complexos, mas com certeza foi um dos mais comentados. Helen Bowker, filha de um dos homens mais ricos do país, foi sequestrada. Seu Sortner, guiado principalmente pelo instinto de salvá-la, cometeu a estupidez de tentar resolver tudo sozinho. Hanson Downer acabou sendo capturado pelos criminosos. Como na maioria dos sequestros por dinheiro, Sherlock não demorou a encontrar um parente próximo como o responsável pelo plano, um tio que se sentia irracionalmente injustiçado. Com o endereço em mãos, foi mais rápido que a polícia e começou a distrair os criminosos, mas surpreendentemente teve a chance de libertar alguém.

É claro que deveria ter sido mais cauteloso.

Obviamente não sairia com os dois sem chamar uma atenção indesejada, mas Helen era prioridade e até Hanson concordava com isso. Mas algo deu errado. Os criminosos o encontraram e Sherlock até teve a chance de ajudar o outro, mas preferiu puxar Helen para fora da linha de fogo.

Seu único erro foi agir antes da polícia, mas ninguém conseguia ignorar o fato de que se Sherlock pudesse compreender a relação de Sortner, saberia que era inútil salvar uma vida sem a outra.

Agora Hanson estava em estado grave com fraturas e três tiros no corpo... E Helen definhava ao seu lado.

E isso o irritava. Maldita humanidade! Será que ninguém ficou feliz ou satisfeito pela prisão dos criminosos e pela mulher ainda estar viva?

Movido pelo tédio olhou ao redor a procura de suas informações e resmungou inaudível. Contrariado, levantou-se e foi até a poltrona avermelhada onde o cachorro estava deitado e puxou seus papéis sem muita delicadeza.

― Semanas comigo e ainda não aprendeu a deitar longe dos meus papéis? ― reclamou desamassando as folhas e as colocando de qualquer jeito dentro de um livro.

Sentou-se diante de seu microscópio sem realmente querer fazê-lo. Estava entediado, mas os casos estavam ficando cada vez mais escassos em seu dia-a-dia, justamente porque as pessoas começavam a questionar sua capacidade de proteger pessoas e passavam a procurá-lo com menos frequência.

Ninguém entendia que ele não estava no ramo para proteger e sim para resolver casos, prender criminosos.

― Stone, por acaso você não é assassino, ou é? ― ponderou observando o animal que sequer parecia escutá-lo.

Então ouviu passos apressados e crispou os lábios, preparando-se para qualquer que fosse o assunto.

― O que foi dessa vez Sra. Hudson?

― Tem duas mulheres querendo falar com você, Sherlock. Parecem agitadas.

Sherlock revirou os olhos, mas não reclamou. Finalmente teria clientes.

Logo escutou mais passos, desordenados e urgentes, tão expressivos quanto as mulheres que entraram em seu apartamento. Mulheres que conhecia muito bem.

― Harry? Clara? O que fazem aqui? ― levantou-se imediatamente, atônito.

― Não se preocupe, viemos com seu irmão ― Clara se apressou a dizer enquanto afagava os braços da mulher. ― Acalme-se Harry, por favor.

Harry ignorou o pedido e deu um passo à frente, suas mãos tremiam e seus olhos brilhavam de desespero.

― Por favor, Sr. Holmes, impeça meu irmão.

Sherlock franziu o cenho, sem entender.

― Impedi-lo de quê?

― De ser morto. Ele foi atrás do nosso pai, tem que impedi-lo.

As sobrancelhas do detetive se uniram em completa confusão.

― Mas seu irmão não desapareceu em combate?

― Ele ligou há quase uma hora ― Clara se adiantou. ― Disse que explicaria o engano depois e que resolveria as coisas com o pai de uma vez por todas.

Sherlock as olhou com uma preocupação verídica. O Sr. Watson ainda estava livre pela simples e inaceitável falta de provas, o que definitivamente era pior do que o tédio. A casa estava limpa, completamente limpa como se estivesse inabitada por anos e o detetive tentava não crer que havia mais alguém envolvido, mas como alguém tão comum quanto aquele homem poderia fazer qualquer coisa sem deixar rastro?

E agora havia John Watson, o militar que estava desaparecido e repentinamente surge em Londres pronto para enfrentar o pai?

― Certo ― concordou abruptamente, decidido. ― Vou até a casa, liguem para Lestrade e avisem o que está acontecendo.

― Vai sozinho? ― Clara perguntou aflita.

― Obviamente ― Sherlock respondeu colocando o sobretudo. ― O que Watson pode fazer com o filho ao notar a presença da polícia? Preciso chegar antes e garantir que sua noiva ainda tenha um irmão quando isso acabar. Quem é o Sortner dele?

Sherlock parou no batente da porta e esperou pela resposta, mas Clara e Harry apenas se entreolharam silenciosamente.

― O quê?

― John é um Solo ― Harry respondeu com a voz falha.

Sentiu seu estômago se contrair, causando-lhe um gosto amargo na boca. Por algum motivo aquela sensação estava voltando, um nervosismo sem motivo, sua mente o levando ao caminho irracional da intuição.

Antes que construísse qualquer conclusão, seus pés o levaram para fora do apartamento e logo sua mão se erguia para parar o primeiro táxi que apareceu. Sherlock odiava se sentir daquele jeito, ter aquelas sensações e não ter o completo controle sobre isso. Nunca quis ter um Sortner, não queria ter aqueles desejos, muito menos estar preso à dependência e repetia tais palavras todos os dias, incansavelmente, tentando convencer a si mesmo de que nada assim era necessário em sua vida.

Estava muito bem sozinho.

Então por que estava naquele táxi?

Tinha fortes teorias sobre o que esperava na casa de Harry e pela primeira vez não precisava de provas, seu coração célere e seu corpo inquieto eram mais do que suficientes. Tudo dentro de si gritava que estava próximo demais de seu par e mesmo assim não conseguia mudar seu caminho, não conseguia cogitar a possibilidade de voltar e dizer à Harry que ele não salvava pessoas, apenas resolvia casos. Dizer que não salvaria seu irmão. Afinal, no que isso ajudaria no caso?

Quando o táxi parou, Sherlock não hesitou em pagar e descer do carro. Respirou fundo e desejou tão intensamente quanto possível que John Watson fosse apenas mais um homem comum. Apenas mais uma pessoa a ser ignorada e esquecida.

Por favor.

Aproximou-se da casa e fez o mesmo caminho feito na primeira vez que esteve ali, seguindo pela lateral até a janela que já conhecia e que dava uma visão clara da escada. Dessa vez não havia ninguém e sabia que não podia esperar pela sorte, escutava vozes alteradas que vinham do andar de cima. Pai e filho discutiam.

Mais uma vez sem hesitar deu a volta e entrou na casa silenciosamente, constatando que a porta foi deixada aberta. O local continuava limpo e ausente de vestígios, exceto por uma bolsa verde-musgo deixada no canto da sala e um celular caído no chão. Sherlock ficou tentado a revirar a bolsa e tirar suas próprias conclusões, mas devido a situação se contentou em pegar o celular, esquadrinhando-o aplicativo por aplicativo tentando ser o mais ligeiro possível enquanto ouvia as vozes aumentarem, descartando ligações sem importância até chegar nas mensagens, onde parou.

Moriarty. O detetive arqueou as sobrancelhas quando leu o nome que reconhecia dos jornais, notícias com não mais que um ano. Lembrava-se bem de que tentou a todo custo investigá-lo, certo de que estava diante de um criminoso potencialmente louco e ardiloso, não se importando de atravessar todos os limites para descobrir os segredos que envolviam aquele nome. Exatamente por causa dessas atitudes que Mycroft o impediu, sedando-o e o trancando em um quarto, garantindo que não perdesse a vida no processo.

Exagerado, era como Sherlock enxergava aquele ato do irmão. Não ficou surpreso quando soube que Moriarty havia escapado livre de acusações, sabia que somente ele poderia pegá-lo, considerando que seu irmão era preguiçoso o suficiente para permitir que um criminoso assim escapasse de suas mãos.

Seus olhos brilharam com o novo interesse, fazendo-o esquecer momentaneamente o que poderia estar acontecendo no andar de cima. Não entendia o que poderia levar Moriarty a se aliar a alguém tão desastroso e descuidado quanto Watson, mas estava diante de uma nova chance de pegá-lo e não a deixaria escapar.

Uma dor aguda o impediu de começar a ler as mensagens, sua mão imediatamente apertou a origem da dor no ombro esquerdo. Arfou com o toque enquanto tentava controlar suas reações. O barulho no andar de cima chamou sua atenção, banques surdos e passos a mais, passos demais. Com um pouco de dificuldade ergueu a cabeça e colocou o celular no bolso, tentando compreender o motivo de tanto barulho se só deveria haver duas pessoas além dele na casa.

Logo uma possível resposta iluminou sua mente: homens de Moriarty. Mas por quê?

Respirou fundo jogando a dor para qualquer outro canto de sua mente, mesmo que esta insistisse em se estender, e correu escada acima.

― Sherlock!

Virou-se a tempo de ver um homem de cabelos loiros o empurrando para longe do caminho de um outro armado.

Era John Watson, um pouco mais velho e cansado do que aparentava na foto de Harriet, mas a foto era desnecessária para reconhecê-lo. O loiro trajava seu uniforme militar e seu ombro sangrava de forma preocupante. Só podia ser ele.

― Atrás de você! ― John alertou tentando desarmar um deles.

Sherlock virou a tempo de desviar de uma faca e segurar o braço de quem a empunhava. Ato continuou foi torcer o braço e empurrar o homem para a escada, esperando que o mesmo ao menos ficasse inconsciente e por tempo suficiente. Em seguida se aproximou dos dois homens que se embolavam no chão e puxou o desconhecido para longe de John. O homem, de cabelos castanhos e olhar enraivecido, tentou revidar com socos cansados, mas Sherlock rapidamente o derrubou, pronto para neutralizá-lo.

Um disparo irrompeu pelo corredor. O detetive exclamou de dor, apertando seu braço ensanguentado. Deixou suas pernas cederem, caindo de joelhos no chão ao passo que seu atacante se levantou, correndo para longe do seu campo de visão. Não viu o autor do disparo, mas pouco importava agora. Estava sozinho.

Ou quase.

Contendo os resmungos o máximo que conseguia, arrastou-se até John que continuava deitado, respirando com dificuldade. Notando a palidez do outro, Sherlock rapidamente se pôs ao seu lado e pressionou o ferimento no ombro, fazendo ambos arfarem pela dor.

― John? Olhe para mim ― pediu pegando o celular e tentando discar para a emergência.

O loiro balbuciou algo e piscou com dificuldade, quase cedendo à inconsciência. Sherlock o ajudou pressionando ainda mais o ferimento reaberto, forçando-o a reagir com a dor.

― Seu... seu braço ― John tentou, turvo.

― Shii, fique calmo. Foi apenas de raspão.

John vagueou os olhos como se tentasse focá-lo, inquieto demais para pensar em ficar calmo. O próprio Sherlock estava zonzo, talvez pela adrenalina ou pelos acontecimentos abruptos, sequer conseguindo analisar metodicamente o homem a sua frente ou se afastar para procurar Henry Watson, aquele que realmente deveria importar.

― Sherlock, o que aconteceu? ― Lestrade perguntou surgindo às suas costas, aflito. ― Eu estava a caminho quando me informaram que os vizinhos escutaram um tiro, a ambulância está vindo.

O Inspetor ajoelhou ao lado deles e checou visualmente a ambos. Sherlock finalmente se deixou tombar ao lado de John, arfando e se esforçando para continuar a pressionar o ferimento do mesmo.

― Quem é ele? ― Lestrade perguntou confuso.

― John... Watson ― Sherlock respondeu com dificuldade, logo voltando sua atenção ao outro. ― Aguente firme, a ambulância está chegando.

Lestrade franziu as sobrancelhas observando a interação inesperada, até encontrar o sangue escorrendo livremente pelo braço do detetive.

― Sherlock, pelo amor de Deus, seu braço!

― Não é grave.

O Inspetor o ignorou e em um único movimento passou para o outro lado e apertou o ferimento, tentando conter o sangue. Sherlock ainda tentou impedi-lo, mas logo tanto ele quanto John protestaram pela sensação dolorosa causada pelo ato.

Lestrade arregalou os olhos, compreendendo.

― Não diga nada a ninguém ― Sherlock pediu letárgico, pouco se importando com o olhar incrédulo do outro.

Onde está sua lentidão quando eu a quero, Inspetor?