De você, só quero tudo
No claro e no escuro

Não vou mentir dizendo que todas as nossas primeiras vezes foram fáceis. Nenhuma delas foi. Mas depois que aconteciam se transformavam em melhores momentos e melhores lembranças. Depois que deixavam de serem primeiras e se tornavam terceiras, quartas, infinitas, tudo passava a se encaixar. Como se fossem para acontecer, apesar de qualquer empecilho que tivesse sido imposto.

Então enquanto estou em seus braços e fico olhando para o teto de seu quarto, para os móveis antigos, para as cortinas pesadas e escuras, me sinto segura. No começo jamais deixaria que isso acontecesse tão perto da luz do dia, tão as claras. Mas enquanto você se desvencilha de meu abraço e caminha até as cortinas pronto para abri-las deixando os primeiros raios de sol invadir o cômodo inteiro, eu suspiro.

Saio da cama com todo o cuidado, me visto com a minha camiseta, aquela que os dedos dele tiraram habilmente e me abraço a seu corpo ainda nu. Gosto de seu cheiro, não importa qual seja a ocasião, esfrego meu nariz em suas costas e escuto sua risada controlada. Quando se vira e me beija fico grata pela sorte que tive, quando me apaixonei pelo melhor amigo.

― Scorpius. – Suspiro com todo o desejo que ele me provoca desde o momento que entendi o que era desejo. Seus olhos cinza e cansados são meus preferidos, as orelhas quase roxas e a pele pálida revelando muitas de suas veias pulsantes e vivas. Sei que amo cada pedaço dele, cada circunstância, cada verdade e cada mentira.

Seu abraço me aquece.

Sei que logo preciso aparatar, chegar a casa antes que meus pais acordem, sair daqui antes que os dele despertem. Temos poucos minutos ao amanhecer, ainda bem que as longas noites compensam qualquer correria matutina. Estou começando a colocar o restante de minhas roupas, amarrando meu cabelo desajeitadamente.

Ele deitado na cama acompanhando cada um de meus movimentos. Não sou graciosa, nem pequena, sou totalmente atrapalhada e muitas vezes quase caio de bunda no chão, meu corpo além de ocupar espaços é pesado. E seus olhos parecem acompanhar todos os movimentos com ternura, amor.

― Deveríamos morar juntos. – A voz dele é tão enérgica. Como se não existisse possibilidade de recusa.

Sou pega de surpresa. Esqueço as botas que tentava calçar, pulo em sua cama e paro bem diante de seu rosto. Analiso toda a expressão. Sei que está falando sério. Mas mesmo assim pergunto.

― Está falando sério?

― Estou. – Ele segura meu rosto com as mãos. E sorri. – Você sabe que quero tudo com você. No claro. No escuro. Quero tomar café da manhã. Não quero que aparate ao amanhecer e também não quero aparatar. Pode ser um quarto e um banheiro. Mas poderemos caminhar pelas ruas ao amanhecer em busca de café e croissant.

Poderia fazer o café da manhã e tomaríamos em nossa cama. Vivendo nossa vida. No claro. No escuro. Em todos os momentos. Com muitas outras primeiras vezes.

― Scorpius, eu acho ótimo. – O beijo.

E ele me beija.

Nessa manhã perco a hora e quando chego em casa todos estão acordados. E pela primeira vez não me importo.

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Me devolve o aperto do abraço
Que me libertou

Não era fácil, não era nada fácil. Eu sabia que não seria fácil, mas precisava engolir e encarar. Muito mármore, muito luxo, muitas peças de coleções que ele vivia lustrando e deixando sem pó. Cheirava dinheiro. Me dava náuseas. Mas Rose estava feliz, ela parecia feliz com Scorpius. Eu precisava encarar. Inclusive uma conversa com Draco. Coisa que não imaginei que precisaria encarar naquela noite.

― Sei que se sente desconfortável.

― Hum... – murmurei.

Talvez pensasse que me sentia sufocado com tanto luxo e riqueza. Ele insistia em limpar um vaso, parecia caro e ficava cada vez mais brilhante conforme ele passa um pano.

― Acho que teremos que conviver juntos a partir de agora.

Reparei em seu olhar, estava depositado em Rose e Scorpius que estavam sentados juntos de frente a lareira. Suas mãos entrelaçadas, ela encostada com a cabeça no ombro dele. Suspiro e sorrisos saindo dos lábios de minha filha. Engoli em seco. Não podia fingir de cego.

― Ele faz bem a ela. – confessei. – Rose sempre foi nossa grande preocupação durante tanto tempo. Ela é fora do padrão, se é que me entende. – Encaro Draco que parecia me analisar.

― Scorpius também não se encaixa no padrão, mesmo que sua aparência diga o contrário.

Concordo com a cabeça, o garoto certamente não era um padrão. Não era igual ao pai na adolescência, lembro-me quando se meteu em uma detenção ao brigar com meu sobrinho James. Potters e Malfoys nunca se dando bem, mais tarde descobri que James estava deixando Rose chateada. Scorpius estava cuidando dela.

― Um sobrenome sempre foi um grande peso a se carregar. – ele continuou falando como se estivéssemos falando de um assunto antigo e inacabado.

― Entendo.

― Não, não pode entender... – ele não estava zangado só constava o fato em minha frente. – É algo que não controlamos. A maldade das pessoas e os preconceitos. Digamos que tudo começou quando segurei ele no colo pela primeira vez.

Nunca em toda minha vida achei que teria uma conversa no mínimo pacata com Draco, mas lá estávamos nós, falando dos filhos que namoravam. Ele continuou:

― Quando o segurei no colo eu vi que meu mundo ia ser mais difícil, pois eu tinha uma vida que dependia de mim, uma vida que carregava sem querer os erros do meu passado. – ele para de limpar o artefato antigo e me encara, completamente compenetrado. – E sei que sua filha estava lá para o ajudar a enfrentar os preconceitos com sobrenome.

― Sei qual é o sentimento. – concordei pensando no fato do que é ter uma vida que depende exclusivamente de você. – De segurar alguém no colo e se sentir perdido, segurar um ser pequeno que se torna o mais importante do mundo. Sei também que seu filho sabe cuidar do meu ser pequeno, não posso ser cego e não admitir isso.

― Eles aprenderam a se cuidar no fim.

Draco volta seu rosto para os dois. Aqueles que uniram famílias bruxas rivais, que me fez ter uma conversa amigável com meu inimigo de escola em décadas.

Pensando em um futuro, sei que Rose merece ser feliz, ela merece ser tratada da melhor forma e receber o maior amor. E tenho que admitir que Scorpius consegue isso, a enxerga bela em sua melhor essência, por dentro e por fora e sei que ela sempre o olhou sem o julgar. No fim eles se completavam como um quebra-cabeça. As peças certas se encaixando, num cenário que parecia ser o errado, mas no fim se mostrando ser o único possível.

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De você, só quero tudo
No claro e no escuro

Eu sabia que estava cercado de mulheres fortes, talvez por isso tenha passado tanto tempo encantado com minha ralação com ela. De todas as mulheres que tinha em minha vida ela foi de longe a mais frágil. Minha irmã certamente tinha problemas de autoestima, crises de ansiedade, até mesmo ataques de pânico e mesmo com tudo isso permanecia forte, uma fortaleza que dava conta de brigar com nossa mãe, de ser muitíssimo inteligente, de conseguir defender os amigos mesmo que as vezes não se defendesse. Minha mãe sendo literalmente a ministra da magia parecia uma rocha, mas todas as vezes que desmoronava não precisava de mim, meu pai lidava com os seus piores dias.

Fico pensando se não foi ele que me ensinou mesmo que sem perceber a lidar com os piores dias dela, com as lágrimas que eram derramadas por causa de outras pessoas, com as tardes enfiados embaixo de cobertores mesmo que do lado de fora o sol esquentasse a pele quem se permitia sentir. Ela era frágil e tinha em mim a sua fortaleza. Eu me acostumei a ser porto seguro, ancora, terra firme. Me acostumei a ser a certeza no meio de tantas outras incertezas. Lily via segurança quando olhava para mim. Eu via ilusão quando olhava para ela. E nós nos acostumamos a crescer se vendo dessa maneira.

Observando Íris sei que ela é forte. Que ela não espera que eu seja certeza, que não espera que eu a salve de nada. Ela aprendeu a se salvar sozinha. Assim como minha irmã Rose, ela teve problemas grandes demais para ficar esperando que alguém limpasse suas lágrimas, ou para deixá-las escorrer em um ombro amigo. E mesmo forte, suficiente, independente de todas as formas possíveis, ela ainda me permite ficar ao seu lado e acaba sendo meu porto seguro.

― Por que está me olhando desse jeito? – Ela gosta de andar descalça pela casa, com os cabelos em cascatas coloridas, soltos e despenteados como se a vida fosse curta demais para perder um segundo para tentar arrumá-lo.

― Que jeito?

― Como se estivesse enxergando minha alma. – Sua risada é alta e faz com que eu sinta vontade de rir junto. Gosto como ela usa camisetas largas e cheias de manchas de tinta de cabelo. E como faz careta e não tem medo de ficar perto demais de meu rosto.

Seu dedo indicador encosta em minha testa.

― O que se passa nessa cabeça laranja? – Ela questiona. Me beija exatamente no lugar em que o dedo pousara anteriormente.

― Você é forte. – Digo impulsivamente. – E bonita.

Sua risada novamente aparece.

― Você também é.

Ela começa a se afastar, os raios de sol brincando em suas cores todas. Fazendo com que a poeira dançante no ar pareça partículas de brilho cada vez que ela se move. A puxo de volta, abraço e a beijo.

― Você não precisa de mim para nada. – Falo em seu ouvido.

― Está tentando terminar comigo? – Ela questiona olhando no fundo dos meus olhos.

― Não. Não estou.

― Tem certeza? Que conversa esquisita.

― Você não precisa de mim para nada e mesmo assim me deixa ficar. – Falo analisando seu sorriso voltando aos seus lábios.

― A casa é sua, não posso te expulsar. E é verdade eu não preciso de você. – Suas mãos tocam meu rosto. – Mas como eu quero você. É inacreditável o quanto eu quero você. Quero você ao meu lado, quero você durante as manhãs e tarde da noite. Por toda tarde, nas ruas, na praia, pelo mundo. Não preciso de você, mas quero. Quero muito.

Então enquanto nos beijamos vejo suas sombras, sua luz. O quanto ela é a mesma. No claro. No escuro. Nos dias bons ou ruins.

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Me devolve o aperto do abraço
Que me libertou
Te devolve pra mim e eu me encaixo
No seu tom

Olho para ela enquanto encara a tela pequena do meu celular prestando atenção no filme. Anos haviam se passado, nós dois crescemos. Apesar de ver alguns traços da idade passando nela, ainda vejo uma beleza sufocante. Penso no quanto eu era apaixonado por ela, em vários aspectos, em várias eras, em vários momentos. Ela era minha lua cheia, toda poderosa, me chamando para admira-la. Querendo perder a gravidade toda vez que entrava de cabeça nessa história. No fim, quando o beijo virou um grande nada em significados, percebi que a lua cheia era na verdade um grande ponto final. O final de tudo o que idealizei e que concretizado nem chegava perto do meu arco-íris.

Ela estava se transformando numa lua minguante, toda fina, não chamando mais tanta atenção, e ao mesmo tempo não sendo mais um ponto final. E sim um vírgula, uma vírgula necessária na minha história com ela.

― Eu odiei esse final. – ela suspira chorando olhando os créditos do filme subir com a música favorita do Oasis dela tocando.

Enxuga as lágrimas e me olha. Parece perceber que eu não estava chorando, ou se quer prestando atenção no final do filme.

― Não sabemos o final de novo! Não sabemos se ele vai ou não ficar com ela. Odeio finais em aberto.

Dou um sorriso torto pensando se minha vida não era mesmo um grande final em aberto. Minha profissão tão difícil de ganhar dinheiro, minha vida amorosa cheia de talvez, ilusões e amores verdadeiros.

― Talvez a vida seja isso mesmo. Um eterno se conformar, não devemos tentar mudar o passado, o que tem que acontecer acontece. Não devemos forçar um ficar juntos que não existe.

Ela parece ficar triste com minha fala, olhos para baixo, um pequeno vinco entre suas sobrancelhas, engole em seco, tenta segurar uma lágrima que cai no canto dos olhos. Segura minha mão e diz as palavras que precisava ouvir naquele momento.

― Sei que sempre será o meu melhor amigo. Não quero mudar nada do que vivemos, nem passado, nem presente, sei que tinha que ser exatamente assim. Eu só queria que o futuro tivesse você. Como um amigo que sempre foi para mim.

E lá estava eu, concordando com suas palavras, dizendo:

― Também quero.

Ela sorriu e me abraçou. Retribui seu abraço. Parecia que estávamos voltando há anos atrás, quando conversar com ela era fácil, quando a abraçar era prazeroso, não sufocante, quando a amar era singelo, não doloroso. Quando vi, estava me libertando em seu abraço, a resgatando de volta para mim de um jeito saudável, estava voltando a respirar.

― Eu sinto muito pelo seu pai.

Ela sussurrou em meu ouvido e o nó em minha garganta voltou, me permiti chorar em seus braços, pela primeira vez sendo salvado por ela. Querendo guardar aquele momento doloroso para sempre em minha memória, querendo viver outros momentos com ela, não mais dolorosos.

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As suas marcas se apagaram de mim
E eu não quero assim

Quando nos capturaram eu realmente achei que era o fim. Ainda mais quando pediram para Draco nos reconhecer, ele jamais ia ser enganado por um rosto inchado. E Harry não conseguiria sair dali, não terminaríamos nossa missão, não conseguiríamos afinal de contas.

Mas não esperava que eu fosse a primeira. Só que deveria ter percebido. Sangue – Ruim. Era assim que eles se referiam a mim, as pessoas como eu. Quem acabava sendo colocado nesse universo por algum motivo. Deveriam nos achar extraordinários, afinal no meio de tantas possibilidades por algum motivo tínhamos sido escolhidos.

E eu tinha me esforçado tanto. Me dedicado. Assumido riscos. Enquanto sou insultada, humilhada, torturada. Tenho certeza que a escuridão é o que move cada um deles, o escuro que absorve qualquer luz, qualquer bondade, qualquer esperança ou amor.

Enquanto a escuridão tentava me alcançar, me trazendo dores que até então desconhecia. No meio de tudo isso eu conseguia escutar sua voz. Mesmo que abafada, mesmo distante, eu conseguia escutar sua voz, chamando por mim. O que fazia com que a escuridão se afastasse cada vez que o som me alcançava.

Quando meus olhos finalmente o enxergaram, mesmo no escuro. Mesmo com todas as dores tornando meu olhar nublado, sabia que estaria perto da segurança. De volta a luz. Novamente no claro.

E mesmo que nada mais desse certo. Mesmo que aquele fosse nosso fim, eu lembraria da sensação de me sentir perdida no meio das trevas e me sentir voltando para a claridade através de voz dele, do apoio, da segurança.

Estou fraca, não consigo acompanhar tudo o que acontece em seguida, só volto ao normal quando estamos no chalé das conchas. O lugar iluminado, quente, aconchegante. Rony ao meu lado. Escapamos. Juntos. Suas mãos segurando a minha.

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Quero morar naquele tempo sem fim
E eu só quero assim

Bati a porta, estava cansado, pleno sábado e eu tendo que fazer hora extra na loja, mas não podia reclamar, gostava daquilo. Cheguei a sala e a vi. Estava sentada no tapete, de frente a lareira. Tinha um papel em mãos e chorava, soluçava de tanto chorar. Parecia uma dor muito aguda de ser sentida. Fiquei preocupado.

Me aproximei dela e a abracei. Hermione passou seus braços em volta de meu pescoço e fincou suas unhas como se dependesse de mim para o resto de sua vida, como se minha ausência a ferisse gravemente, não sabia o que estava acontecendo.

― Hermione, aconteceu alguma coisa no trabalho? – ela sempre tinha problemas no trabalho. Ser ministra da magia era um sonho estressante para ela, cheio de críticas, cheio de pressões. – Hugo e Rose estão bem?

Ela sacudiu a cabeça tentando acalmar minha preocupação, ainda chorava, ainda sentia seu mundo desabar. Olhei em volta e percebi o papel que ela tinha em mãos. Era i profeta diário. Coluna de fofocas. Rita Skeeter.

Já entendi tudo, aquele besouro bisbilhoteiro de uma figa! Tinha a ver com tudo. Estiquei o meu braço pra alcançar o papel sem desfazer do abraço e li a matéria.

Ela cutucou a parte que mais feria Hermione: Rose.

― Meu amor, não ligue para ela, sabe que nada do que escreveu é verdade?

― Onde não é verdade Rony? – dizia brava ainda chorando. – Rose me odeia, e realmente gritou em alto e bom som que eu a sufoco. Que a aprisiono feito um elfo. Justo eu?

Ela voltou a chorar. Rose era sempre um assunto difícil a ela, como queria que elas se dessem bem, como queria ir atrás de Rita agora e a esmagar, literalmente.

― Você é ministra, pode muito bem ligar para o editor chefe do jornal e pedir para Rita se retratar.

Tentei arrumar alguma solução, queria faze-la parar de se culpar por algo que repórter nenhum tinha direito de meter o dedo.

― Não quero dar mais fagulha para acender esse tipo de manchete a meu respeito. – ela se afastou de mim, parou de chorar. – Não sou perfeita, nunca quis ser. Mas parece que a perfeição me segue. Queria tantas coisas. Mudar o mundo e me dar bem com Rose é só o começo.

― Não se cobre tanto.

Peguei sua mão e a segurei com a minha, como nos tempos de guerra em que aprendemos a nos apoiar segurando nossas mãos. Um acalento em meio ao caos, uma luz na escuridão.

Ela retribuiu o aperto e suspirou. Queria entrar em sua cabeça e dar a ela mais confiança, era isso que faltava em Hermione, ela já havia mudado tanto e feito tanto por tantas pessoas criaturas e situações, não devia se sentir tão errada. Queria lhe dizer que era a melhor mãe do mundo, mesmo com defeitos, que brigas aconteciam em todas as famílias e que um dia ela e Rose se dariam bem. Mas não disse nada. Apenas continuei a segurar sua mão, parecia o suficiente por enquanto.

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Todo dia eu me transporto
Pro amassado do lençol
Que me desconfigurou
E me consertou

Eu gritei. Gritei tanto que depois senti minha garganta ruim. Sabia que os dias seguintes ficariam sem falar, minha voz sumiria.

Gritei porque estava guardando tudo dentro de mim, tantas coisas me faziam travar. Passava mais noites acordadas do que dormindo. Sempre que ia colocar algo na boca lembrava dela, deles, eram tantas pessoas me julgando sempre que eu pensava em comer.

Fui parando de comer na frente deles. Não queria aqueles olhares. Somente três pessoas me viam comendo sem que eu precisasse temer, sem que tivesse uma crise de ansiedade ou vontade de me esconder. Ela não era uma dessas pessoas. Sua voz na verdade era a pior, era a voz dela que me assombrava a maior parte do tempo.

Quando se passa uma vida inteira se policiando, sendo criticada, tentando se manter bem, mesmo que a verdade estivesse longe disso. Uma vida inteira se controlando, tratando de crises em segredo, evitando que o mundo soubesse que a filha da ministra além de gorda também tinha ansiedade e ataques de pânico. O que diriam? Eu não queria que julgassem minha família, eu já fazia isso por conta própria.

― O que você vai fazer? – Scorpius segura o artigo em suas mãos.

Eu não acreditei quando li aquelas palavras. Eu tinha gritado. Tinha enfrentado ela com toda a força que fui acumulando. O caminho para a desconstrução é tão longo. E temos o momento em que percebemos que a opinião opressora deve ser combatida, percebemos que se a pessoa não quer escutar nós gritamos até que ela escute.

― Não sei. – Digo bufando de raiva. Sempre odiei essa fama e atenção que nunca pedi. Eu queria só seguir a vida, comer em paz, ser feliz.

― Você precisa falar com ela. – Meu namorado sempre foi o coerente da relação. Ele entendia de assuntos complicados como quase ninguém entendia. – Ela é sua mãe, ela te ama.

― Eu sei. – É verdade, agora eu sei que ela me ama, sei que só foi treinada a odiar o que sou, porque não sou perfeita. Sei que ao longo dos anos teve que arrumar os dentes, ajeitar os cabelos, andar com as costas eretas, se vestir da melhor maneira. Ela foi ensinada a ser padronizada. E em uma coisa Hermione era ótima. Em aprender.

― Então converse com ela. Resolva isso. – Seu beijo em minha testa significa que está decido. – E jogue esse artigo fora, essa mulher é a escória da sociedade.

Amasso aquilo e jogo para longe de nós. Eu preciso falar com minha mãe, dizer tudo que preciso que ela escute. Sem gritar. Conversando. Mas antes disso me permito apagar as luzes e deixar que Scorpius me guie.

O jeito que seus cabelos continuam chamando atenção no escuro, o quanto gosto de seu sorriso. O quanto conseguimos nos encontrar. No claro. No escuro. Na cama. Na vida.

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Te vejo no escuro

Era nojento e estranho, os lábios dele se mexiam junto aos meus, suas mãos grandes e cheias de calos por causa do quadribol, passavam delicadamente pelas minhas bochechas, seu cheiro era de um perfume forte, que parecia caro, ele abriu a boca tentando me fazer copia-lo em seus atos. Como se eu quisesse a língua dele dentro de minha boca! O afastei delicadamente, e com um sorriso no rosto disse que precisava respirar. O abracei.

Sei que sou maluca, estou beijando Viktor Krum, um dos caras mais cobiçados pelas garotas, é gentil, educado, e sempre me escreve coisas bonitas. Sei que sou egoísta, não posso retribuir o beijo que ele tanto espera, pois não desejo beija-lo, sei que não posso ama-lo como merece, pois meu coração é de outro.

Conto tudo para a Gina, assim que chego no Largo Grimmauld ela sorri quando digo que dei meu primeiro beijo em um jogador de quadribol famoso.

― Fico tão feliz por você! Está vivendo sua juventude!

Se viver minha juventude significa ter a língua dele correndo pela minha boca, prefiro ser uma garota que não aproveitou a juventude.

― Eu decidi, esquecer o Harry por hora, vou viver também.

Gina é assim, decidida e forte, muito mais esperta do que aparenta, gosta do Harry desde que comecei a conversar com ela, e não se deixa abalar com o fato dele não olhar para ela além do conceito de irmã mais nova de seu melhor amigo.

― Gina, mamãe está te chamando na cozinha, parece que vai ter um ataque se Fred e George aparatarem mais uma vez na frente dela, é melhor ir logo.

Gina bufa diante das palavras de Rony, mas mesmo assim sai do quarto me deixando as sós com ele. Está mais alto se possível do que da última vez que o vi, ombros pra baixo, seus olhos azuis, me analisando, suas sardas espalhadas por todo seu rosto.

― Como foram suas férias? – ele tenta criar um diálogo entre nós. É difícil ficar perto dele e não tentar corar.

― Ótimas. – digo lembrando que passei tempo demais trancada em meu quarto lendo e tempo demais tendo um encontro com Viktor Krum que terminou em meu primeiro beijo.

― Hum... – ele pareceu não gostar do “ótimas” que lhe dei de resposta.

― E as suas?

― Ah você sabe, sair de casa vir para cá, ficarmos vários dias limpando o lugar a moda trouxa, ótimas! – terminou com a voz num tom sarcástico.

Sei que soa como se eu menosprezasse ele. Mas preferiria limpar o lugar todo e ter meu verão arruinado com faxina do que ter um primeiro beijo com Krum.

― Pra mim, agora, elas se tornaram melhor que ótimas. – tentei anima-lo

― Devem ter sido piores que as minhas então. – ele sorriu e eu me permiti rir com ele.

Queria lhe dizer que sim, que as férias longe dele e de Harry não tem muita graça, principalmente longe dele, mas não disse nada. O Rony com um complexo de inferioridade eterna estava na minha frente rindo comigo, minhas férias de fato estavam ótimas agora.

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Quero morar naquele tempo sem fim
E eu só quero assim

De você, só quero tudo
No claro e no escuro

Tínhamos que fazer a monitoria juntos naquela semana, Hermione sempre tão concentrada, olhando cada ponto do corredor para ver se alguma aluno estava burlando as regras, eu só pensava na informação que minha irmã havia me jogado na cara, que eu estava com ciúmes pelo fato de Harry, ela e Hermione já terem beijado e eu não.

― Hermione você beijou o Krum?

A pergunta apenas escapou de meus lábios, senti meu sangue ferver com as palavras que me assombravam serem ditas em voz alta. Ela parou de andar e virou seu calcanhar me encarando.

― Por que está me perguntando isso?

― Estou só curioso. – dei de ombros tentando parecer desinteressado, comecei a olhar no corredor em volta e voltei a andar.

― Não quero ter esse tipo de conversa com você. – ela me respondeu em minhas costas, sua voz estava um pouco falha.

― Isso só confirma que o beijou então! – não consegui controlar meus pensamentos que simplesmente escaparam em voz alta novamente.

― Sim eu o beijei e daí? – ela finalmente explodiu a informação zangada.

― E daí? – parei de andar e a encarei. Estava furioso, será que ela não percebia o quanto Viktor Krum era interesseiro e bruto demais para ela? Será que ela não percebia que podia se machucar namorando ele? Será que... – Achei que se desse o valor, mas estava enganado.

― Quem você pensa que é pra dizer isso de mim? Eu me dou muito o valor! Minha vida pessoal com namoros ou não, não te diz respeito. – ela enfiou o dedo indicador no meu peito e começou a andar na minha frente furiosa.

Sentia meu rosto quente de raiva, meu coração acelerado, meu cérebro não raciocinando.

― Então, por que um jogador de quadribol famoso? Por que não um aluno normal de Hogwarts? – porque não um ruivo melhor amigo? Pensei comigo sem ter coragem de dizer nada.

Estava de frente a ela desta vez, meu rosto estava baixo em direção ao dela, podia ver seus olhos de tão perto, eram castanhos de um jeito que não tinha reparado antes, suas bochechas estavam vermelhas, e uma voz decidida saiu de dentro dela.

― Por que? Porque aparentemente só um jogador de quadribol famoso percebeu que eu era uma garota a tempo!

Terminou saindo de perto de mim. Meu peito subia e descia de ciúmes e inveja, ou talvez fosse remorso e falta de atitudes no momento certo. Não sabia o que estava acontecendo comigo, mas Hermione beijando outro, me deixava triste e furioso ao mesmo tempo.

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De você, só quero tudo
No claro e no escuro

Era final do quarto ano e estávamos todos começando a mudar, mas enquanto andava pelo corredor tentando lembrar onde tinha esquecido meu livro sobre Anne Frank, tinha certeza que tinha deixado no final da escada.

Scorpius e Albus tinham me encontrado lá depois do jogo que quadribol e eu tive que parar de ler para prestar atenção na euforia deles por terem ganhado da grifinória, a velha rivalidade das casas sobre o qual eu sempre faço discursos e ninguém parece entender.

Então eu ando o mais rápido possível para não ser vista por ninguém, ainda não deu o horário de se recolher, mas está próximo. Infelizmente eu deveria ter desistido do livro, porque o que vejo faz com que sinta não apenas raiva, mas também vontade de chorar.

Eles estavam abraçados. E mesmo no escuro eu poderia reconhecê-lo. Enquanto os dedos dela se enterravam em seu cabelo. Seus lábios se tocando. E eu na plateia. Scorpius estava mais alto esse ano e algumas meninas pareciam impressionadas com tudo que o envolvia. Mesmo que as fofocas fossem mentirosas, mesmo que ninguém o conhecesse como eu. E isso que me deixou pior. Vê-lo beijando alguém que não sabia nada sobre ele e não se importaria em saber.

Corri para longe, o mais rápido possível. Quando me enfiei embaixo das cobertas e deixei as lágrimas caírem pensei o quanto queria um pote de sorvete. E o quanto era injusto sentir aquilo tudo.

Na manhã seguinte, meu rosto estava inchado. Minha vontade era de ignorar todas as pessoas, não aguentava olhar para a claridade. E me senti extremamente mal, como se estivesse doente, mesmo que não estivesse.

― Encontrei seu livro. – Scorpius diz me entregando. Sua capa cinza exatamente como o meu dia.

― Onde estava? – Questionei sabendo que provavelmente estava na escada onde ele enfiava a língua na garganta daquela garota.

― Na escada. – Ele responde. Não se abala e nem fica constrangido. Sinto a raiva tomando conta da melancolia.

― Está tudo bem? – Ele questiona me analisando.

― Tudo ótimo! Obrigada. – Digo pegando o livro e saindo do salão. Cansada de olhar para ele.

Vou para o banheiro e fico olhando para meu reflexo. O que eu esperava? Que fôssemos mais do que amigos? Que seríamos destinados um ao outro? Que nós dois íamos trocar nossos primeiros beijos. Começo a rir como uma lunática e gritar mentalmente para deixar as fantasias românticas de lado e enxergar a realidade.

Sou tomada por mais uma crise de choro e mais duas de gargalhadas. Estou completamente destruída. Depois de muitos minutos consigo me recompor e sair do banheiro com dignidade.

― Você não está bem. – Ele me espera do lado de fora. Encostado na parede. Com seu cabelo impecavelmente bem penteado. Diferente da noite anterior.

― Estou sim. – Saio pisando forte.

― Me desculpa. – Ela fala me alcançando. – Não sei o que eu fiz, mas me desculpa.

― Você... – Respiro fundo. – Você...

― O que? – Ele parece realmente preocupado. Passamos por várias garotas que dizem oi e que ele ignora. Incluindo a menina da noite anterior.

― Têm dias que eu te odeio. - suspiro. – E tem dias que eu me odeio.

― Não estou entendendo nada.

― Aparentemente tem alguns assuntos que você realmente não entende. – Falo segurando sua mão. – A garota que você beijou ontem a noite acabou de falar com você e você apenas ignorou ela. Por mais que eu deteste essa fanbase das garotas pelos jogadores, acho que isso vai deixá-la chateada.

Deixo que ele absorva a informação.

― Você viu? – E ele parece constrangido pela primeira vez. – Não era para ter visto, estava escuro.

― Eu te reconheceria sempre, no claro, no escuro. Mesmo que sua cabeça estivesse sendo engolida por ela.

― Rose, não queria que visse aquilo. – E agora quem parece sentir raiva é ele.

― Está tudo bem, sou sua amiga. Não tenho nada a ver com sua vida amorosa. – Volto a andar, antes que ele perceba que não está tudo bem.

Ele me alcança.

― Não existe vida amorosa, não foi nada. – Ele coça os braços com nervosismo. – Era uma brincadeira.

― Brincadeira?

― Na festa de comemoração por termos ganhado o jogo, uma brincadeira de girar uma garrafa... – Seu constrangimento é palpável.

― Sério?

― Eu queria ter evitado, mas cedi a pressão... E depois apenas fiquei me sentindo mal. E queria apagar da memória.

Sinto vontade de tirar sarro dele ou fazer piadas. Mas na verdade, estava sendo arrematada. Estava tendo meu coração, anteriormente partido no escuro, restaurado e roubado por aquele garoto pálido em plena claridade.

― Por Merlim, você precisa de um abraço? – Questiono.

― Tem dias que eu também te odeio, sabia? – Ele diz mas aceita meu abraço pousando sua cabeça em cima da minha.

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Quero morar naquele tempo sem fim

Nós estamos juntos.

Sentados em volta de uma mesa desgastadas, sentindo cheiro de canela e chocolate derretido. É tão especial. Fico olhando para suas mãos dadas e também por tudo ao redor. Já é noite e as poucas luzes amarelas parecem trazer um aspecto diferente para tudo. Conhecemos aquelas ruas, sentamos naquela mesa tantas vezes que conheço todas as rachaduras, as marcas.

Rose olha pela janela sonhadora. E eu tento gravar cada um dos gestos em minha volta. Somos tão jovens e eles parecem tão velhos. Minha irmã beberica seu chocolate quente deixando o bolo de especiarias de lado. Minha mãe deixa o chá esfriar enquanto deita nos ombros do papai. Ele dá mordidas animadas em um sanduíche sem prestar atenção em volta, como se tentasse descobrir os ingredientes certos para fazer uma releitura em casa.

Eu também tenho chocolate quente, uns três marshmellow boiando no líquido cremoso. Respirando fundo para sempre me lembrar dos cheiros. É especial. É familiar. Não importa se acontece durante uma manhã, no final da tarde, em uma noite diferente. No claro ou no escuro. Reconheceria minha família. Nossas peculiaridades. Nossas sinceridades.

― Hugo, você faz um desenho para mim? – minha irmã pergunta ainda sonhadora.

Aceno afirmativamente. Ela também deita em meu ombro exatamente como nossa mãe faz. Somos reflexos do que eles são e mesmo aos 14 anos sei que isso pode ser bom.