Destino voltara ao seu corpo, um tanto ofegante e suado. Talvez não fosse assim tão fácil possuir alguém, mesmo que esse alguém fosse só a Vida. Olhou em volta, esquadrinhando o quarto com o olhar. Não havia ninguém ali, exatamente como ele esperava. As enormes janelas escancaradas, a cama king size arrumada, os lustres tilintando com o vento frio que entrava pelas janelas, os incensos para possessão ainda esfumaçando um pouco. Tudo estava exatamente igual a quando ele partira. Exceto pelo vento noturno e o brilho prateado da Lua, que banhava o quarto. Ele se levantou, apagou os incensos e fechou as janelas, sentindo um arrepio correr-lhe pela coluna. Alguém entrava em seu quarto. E entrava sem usar a porta, como se surgisse do ar, pois não houve nenhum ruído.

— Terror? — perguntou Destino, reconhecendo aquele calafrio, um tanto temeroso, mas sem tirar os olhos das janelas que ainda fechava. — O que faz aqui?

— Nada demais, ora — disse ele num tom divertido. A voz era penetrante e fria, como uma lâmina aguda e fatal. — Só estava o observando.

Destino voltou seu olhar cinzento para o membro da Trindade com confusão no rosto. Seria impossível que ele soubesse da possessão, não seria? Se soubesse, estaria perdido.

— Hum... — fez Destino tentando ser desdenhoso.

Terror o encarou e ergueu uma das sobrancelhas. Quer dizer, ergueu o local onde deveria existir uma sobrancelha, pois ele não a tinha. Apenas existia uma pele cinzenta, da cor de cimento fresco, que cobria todo o seu corpo. Os olhos, vermelhos como sangue, estavam fitados no outro Senhor Eterno à sua frente. Destino, depois de engolir em seco e tentar ignorar o olhar pesado do membro da Trindade, acendeu as luzes do quarto e se sentou à cama, só então notando que havia esquecido os incensos sobre o tapete. Terror logo colocou um sorriso sádico no rosto.

— Terror, veja bem, não é nada disso que você está pensando — foi logo dizendo Destino, mas sem sucesso.

— Eu sei muito bem o que se passou aqui, filho do Tempo — disse Terror se divertindo a cada sílaba. — Você estava possuindo uma Senhora Eterna. — E fez uma pausa para encará-lo. — E uma Senhora Eterna filha do Poder, ainda por cima.

Destino engoliu em seco e seu coração disparou.

— Como sabe disso? — perguntou ele.

— Você está cheirando igual àquela menininha da Vida — explicou Terror, dizendo cada palavra com repulsa.

— Eu... — gaguejou Destino. — Eu só lhe peço... Não conte nada ao Poder.

— E por que eu faria isso, Destino? — perguntou o membro da Trindade, fingindo surpresa. — Você acabou de praticar um ato de traição contra a Trindade.

Destino abaixou a cabeça, arrependido de ter possuído aquelazinha. Fechou os olhos e bufou, balançando a cabeça.

— Eu precisava fazer isso, Terror — disse ele por fim, ainda balançando a cabeça e com os olhos fechados. — Eu precisava. O Poder não tomava nenhuma providência. E o mestiço só se fortaleceria a cada dia. — E ergueu a cabeça, para encará-lo.

Terror estava inabalado, como se fosse mesmo feito de concreto. Os olhos escarlates ainda encarando a miséria de Senhor Eterno à sua frente.

— Mas você conhece a história da criança — disse Terror sem expressão alguma.

Destino arregalou os olhos.

— Eu conheço — respondeu ele, mesmo que não fosse uma pergunta. E só então percebeu uma brecha para se aproveitar da situação. — Mas eles não conhecem. Eu continuei o plano, só isso.

Terror coçou o queixo, parecendo analisar a veracidade dos fatos. Destino, com o coração quase pulando do peito, dava um sorriso amarelo.

— Sabe o que eu acho, Destino? — perguntou ele e o Senhor Eterno o encarou com curiosidade. — Eu acho que isso tudo é uma grande mentira. — E voltou a sorrir. — Todos os Senhores Eternos sabem que você não gosta daquele moleque.

Destino deu um sorriso e concordou.

— É, eu não gosto dele mesmo.

— Então... — disse Terror e cruzou os braços sobre a couraça escarlate que usava, voltando a ficar sério. — Só que o fato não é esse. — O sorriso de Destino desapareceu por completo e em seu lugar surgiu uma linha reta e assustada. — O fato é que você possuiu a filha de nosso mestre: o Poder. E você sabe que ele não gosta que mexam com a família dele. Mesmo com os traidores.

Destino não sabia o que dizer, então assentiu.

— E então, você acha que é digno de perdão? — disse Terror ironicamente. — Lógico que não, Destino!

A essa altura, Destino chorava de medo por dentro. Aquele à sua frente não era seu pai; não era a Morte ou a Guerra; era o Terror. Um membro da Trindade Eterna. Com um simples estalar de dedos, Destino seria só mais um mortal, pois sua Essência passaria para ele sem problema nenhum.

— Então, como vai ser? — perguntou Terror e descruzou os braços, colocando as mãos nos joelhos á mostra.

Destino piscou, confuso.

— Como vai ser o que?

— Sei que você tem um jeito para me subornar — disse Terror e deu seu meio-sorriso maligno. — E então, o que vai ser?

— Eu posso te dar... — e ele esquadrinhou o quarto com o olhar. — Eu posso te dar...

— Não, Destino, acho que você não entendeu — disse Terror e balançou a cabeça. — Eu só vou aceitar uma coisa. Cabe a você me dizer se vai dá-la a mim ou eu terei que tomá-la de você a força.

Destino engoliu em seco e franziu as sobrancelhas, em súplica. Sabia exatamente do que Terror estava falando. Ele queria a adaga.

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Enquanto isso, na mansão da Morte, todos estavam reunidos, observando o mestiço, ainda desacordado, sobre uma cama branca, na enfermaria da mansão.

— Interessante — Luan deixou escapar, com os olhos estreitados.

— O quê? — perguntou Júlia o encarando de sobrancelhas franzidas.

— A morte ter uma enfermaria dentro da própria mansão — completou Luan.

Júlia sorriu. Mas o sorriso logo se foi.

— Nem todos os espíritos chegam à mansão prontos para partir — disse ela tristemente. — Eles ficam aqui. E se tem potencial ou algo importante a fazer em vida, eles voltam. Se não, os juízes o levam para julgamento.

— E... — disse Helena preocupada. — Você acha que ele tem potencial para voltar?

Júlia sorriu.

— É claro — respondeu. — Ele só está desacordado, mesmo. O Sonho cuidará dele até que a Cura, que eu já chamei há um bom tempo, chegue! — O tom de voz foi aumentando.

E então, na cama ao lado, Vida ofegou e abriu os olhos. Todos a encararam, mas Júlia era a única que tinha um olhar mortal cravado nela.

— O que você fez com ele, Vida? — perguntou ela entre dentes, cerrando os punhos.

Guerra colocou a mão sobre o ombro de Morte, e ela se acalmou um pouco, encontrando os olhos cor de âmbar da amiga.

— Eu... — disse Vida e pôs a mão sobre a testa, como quem se esforça para lembrar-se de algo. — Eu não sei muito bem. Só me lembro de uma voz na minha cabeça e que ela dizia que eu ia causar dor à pessoa que eu mais amava.

Júlia cerrou os punhos com mais força ainda, fazendo os nós dos dedos ficarem brancos. Ela, com certeza, falava de Rodrigo.

— Ah, não me diga... Olha o resultado, queridinha — disse Júlia e se afastou da visão de Vida, que encarou Rodrigo horrorizada.

— Eu fiz isso? — perguntou ela com lágrimas nos olhos.

Júlia bufou e balançou a cabeça, descrente, cruzando os braços.

— Na verdade, foi o Destino, que a possuía — respondeu Guerra por ela.

Vida abaixou a cabeça e as lágrimas começaram a rolar soltas, juntamente com soluços violentos. Guerra franziu os lábios e encarou Morte, sinalizando com a cabeça em direção à menina chorosa. Morte, depois de hesitar um pouco, assentiu. Guerra encarou os outros, um a um e os levou para fora da enfermaria. Júlia se sentou ao lado da irmã e lhe envolveu com os braços. Vida ergueu a cabeça, a colocando nos seios da irmã, e começou a chorar alto.

— U-nã-eri-zer-isso — soluçou Vida.

— O que? — perguntou Júlia confusa.

— Eu não queria fazer isso — repetiu Vida ainda chorando. — Desculpa.

— Shh... — fez a Morte enquanto afagava os cabelos cor de ferrugem da irmã gêmea. — Eu sei, eu sei. Está tudo bem, ok?

— Eu sou horrível, não sou? — perguntou Vida e começou a soluçar mais violentamente.

— Claro que não — sussurrou Morte, por mais que quisesse trucidar a irmã. Ela a amava, fazer o quê. — Claro que não. Você é a melhor irmã que eu poderia querer.

— Mesmo eu gostando do Rodrigo? — perguntou Vida e fungou.

Morte engoliu em seco e soltou a irmã.

— Você sabe que ele é meu, não sabe? — perguntou a morena quase ameaçadoramente.

— Eu sei — disse Vida e fungou novamente. — Mas eu não posso mandar no coração. Não posso dizer para ele parar de gostar do mestiço de uma hora para outra. — E fez uma pausa para encarar a irmã. — Mas, eu vou respeitar vocês... Prometo. Vou me afastar dele, dos meus bruxos, de tudo. Não quero estragar o amor de vocês, que é tão lindo.

Morte nada disse, só encarava a irmã com aparo, de sobrancelhas e lábios franzidos. Vida se levantou da cama, passou a mão pelos cabelos, o arrumando, e sorriu para a Morte.

— Adeus, irmã — e sumiu num piscar de olhos, deixando Júlia a sós com o mestiço.