Antes mesmo que Juliana e Roberto pudessem se afastar, Vida apareceu na porta, com uma expressão alarmada. Parecia até que tinha visto o Senhor Eterno dos fantasmas. Ela encarou um a um no quarto, fazendo um silêncio pesado tomar o lugar.

— Que barulheira é essa? — perguntou ela entre dentes.

— Juliana e Roberto estão namorando — respondeu Victória a encarando com um olhar desfocado. — Só estávamos comemorando, oras.

— Não quero saber! — retrucou Vida de sobrancelhas franzidas, evidentemente impaciente. — Vocês quase nos entregaram! Quase que a Guerra nos descobre!

E então um barulho de portas se abrindo e fechando e passos se fizeram ouvir no corredor. Logo, Luan, Helena e Laura estavam também presentes no quarto. Os três traziam uma expressão assombrada nos rostos.

— O que houve? — perguntou Luan preocupado. E, depois de notar Vida, franziu as sobrancelhas. — O que você está fazendo aqui?

— Minha irmã pediu para preparar os treinamentos para vocês — respondeu ela com um sorriso infantil, como se nada tivesse acontecido. — Ela precisou sair numa missão com a Guerra. Então, eu assumi a responsabilidade de mantê-los a salvo e em forma.

Luan franziu ainda mais as sobrancelhas, confuso e intrigado.

— E quando começamos? — perguntou Juliana, desviando o olhar da Senhora Eterna para ela. Agora, a guardiã já conseguia respirar melhor. Até tinha tomado sua expressão séria novamente, mas sem soltar a mão do guardião ao seu lado.

— Começa agora — respondeu Vida com um sorriso malicioso. — Estejam prontos às sete. — E olhou o relógio sobre o criado-mudo. — Ou seja, vocês têm três minutos.

— Mas, já está escuro — disse Luan ainda parecendo confuso. — Não seria melhor treinarmos amanhã, bem cedo?

Vida desfez o sorriso do rosto e encarou o bruxo seriamente.

— Não — disse simplesmente. — Vocês precisam começar a treinar imediatamente. — E fez um minuto de silêncio. — Espero vocês prontos no salão principal, no térreo. Até lá. — E saiu do quarto com as mãos para trás e um sorriso triunfante no rosto.

Luan e Helena se entreolharam.

— O que deu nela? — perguntou a bruxa.

Luan deu de ombros e estalou os dedos. Imediatamente, estava usando suas roupas de bruxo. Helena o imitou e também estava pronta. O casal de bruxos lançou um olhar tenso para os guardiões.

— Acho melhor vocês se apressarem também — disse Luan seriamente.

Victória se levantou da cama, pegou suas roupas de batalha, seu chicote, e entrou no banheiro, apressadamente. Quase de maneira alarmada.

— Vocês também — completou Helena encarando os outros guardiões, um a um.

Logo, eles começaram a agir. Uma Laura confusa lançou um olhar estreito para Roberto e Juliana e voltou para seu quarto, enquanto o novo casal se beijava uma última vez antes de irem se trocar. Agora, somente os bruxos estavam no quarto. Rodrigo estalou os dedos e logo estava pronto também.

— O que será que a Vida está aprontando? — perguntou o bruxo mais novo, sem saber que essa pergunta pulula as mentes humanas aqui na Terra há séculos.

— Boa pergunta — respondeu Luan e saiu do quarto preocupadamente.


No horário marcado, todos os guardiões e os bruxos já estavam reunidos no salão principal, no térreo. Um clima tenso e pesado pairava sobre o local. Vida apareceu, saindo do jardim de rosas, e colocou logo um sorriso malicioso no rosto.

— Bem, eu não vou poder treinar todos vocês individualmente — disse ela fingindo tristeza, fazendo um burburinho se espalhar entre os guardiões. — Por isso, irei dividi-los em pares. — Disse mais alto.

Todos se entreolharam, enquanto Vida caminhava na direção deles.

— Laura, você fica com Juliana — disse Vida com um sorriso sádico. — Roberto, você fica com Victória — continuou ela. — Luan e Helena — disse e encarou Rodrigo, o último que sobrara. — E você, Rodrigo, fica comigo.

O bruxo engoliu em seco, enquanto os outros pares se entreolhavam surpresos e um tanto confusos com suas duplas.

— Agora, sem delongas, quero que me sigam para a área de treinamentos — disse Vida antes que alguém pudesse dizer qualquer coisa. E se dirigiu ao elevador.

Este era tão grande que conseguiu comportar todos de uma vez só. Começou a descer e a descer, até chegar ao andar “-10”, onde parou, fazendo Rodrigo sentir o habitual frio na barriga. As portas deste se abriram e todos desceram. Agora, estavam numa espécie de amplo e longo corredor, cheio de portas e dizeres dourados nelas. Vida começou a caminhar por ele, sendo seguida pelos outros de perto. Parou numa das portas que dizia: Floresta e encarou Juliana ainda com o sorriso no rosto.

— É aqui que você e Laura ficam — disse ela abrindo a porta para que passassem.

As duas entraram, depois de lançar um olhar desfocado para Vida, e a porta foi fechada. Depois continuaram a caminhar pelo corredor, só parando em frente à porta que dizia: Cidade, onde Roberto e Victória entraram. Mais à frente, pararam novamente em frente à porta: Deserto, onde Luan e Helena ficaram. E então, só sobraram Vida e Roberto, que caminharam mais um pouco, só parando em frente à última porta, que dizia: Terra.

Terra, como assim? — perguntou o bruxo confuso.

— Você vai ver — disse Vida e abriu a porta para que ele entrasse.

Rodrigo entrou, sendo seguido de perto por Vida, que fechou a porta atrás de si, fazendo-a desaparecer na parede.

A sala na qual se encontravam agora era completamente branca, como algodão, porém com uma iluminação um tanto forte demais.

— Já, já a simulação começa — disse Vida desdenhosamente, vendo a dificuldade do bruxo para enxergar algo.

A simulação irá se iniciar em cinco segundos — soou uma voz feminina e robótica de algum lugar. — Três segundos, preparem-se.

E então a sala se escureceu completamente. Os olhos do bruxo, ainda com dificuldade de se adaptarem às mudanças repentinas de luz, conseguiram captar apenas uma coisa imediatamente: pontos brilhantes. Eles estavam espalhados por todos os lugares. Eram como os salpicos no corpo do seu dragão. Além deles, o bruxo podia sentir uma leve e morna brisa que roçava seu rosto delicadamente.

— O que é isso? — perguntou ele, sem obter uma resposta.

E então, seus olhos se estabilizaram. Olhou em volta à procura de Vida, mas não havia ninguém ali além dele. Franziu as sobrancelhas e fitou os pontos brilhantes e distantes. Aquelas luzes vinham de... Vinham de carros. Dezenas de carros parados num semáforo, que Rodrigo desconhecia o que era. E então ele se deu conta de onde estava. Estava parado no meio da rua! Pulou para a calçada, quando um carro arrancou buzinando, com o coração a mil. O bruxo engoliu em seco e olhou novamente à sua volta.

— Onde é que eu estou? — Rodrigo se perguntou.

E então notou algo estranho no final da rua. O ar tremeluzia, como se um calor muito forte brotasse daquele local. O bruxo, curioso, começou a caminhar para lá. O ar começou a tremeluzir com mais força, e agora tinham um leve brilho arroxeado. Só então entendeu o que acontecia. Era magia de teletransporte! O bruxo se virou para correr na direção contrária, quando o ar explodira naquele local, revelando um homem de quase três metros de altura. Usava um elmo dourado com a forma de um dragão com a boca escancarada; uma túnica negra; couraça, grevas, coturnos e ombreiras douradas. Além de estar segurando uma espada que devia ter o tamanho de Rodrigo. Seus braços musculosos estavam à mostra e deviam ter a grossura do tórax do bruxo. Rodrigo engoliu em seco. Sabia exatamente que tipo de ser era aquele. Era um Guerreiro das Sombras. Servo do Senhor Eterno das sombras. O que inventou a magia de teletransporte, usando suas sombras e espelhos. A mesma magia que os bruxos antigos usaram para transportar Atlantis para aquela dimensão.

— Estou perdido — O bruxo deixou escapar, sabendo que os Guerreiros das Sombras eram os únicos mortais capazes de vencer um bruxo.

O guerreiro, que tinha parte do rosto coberto por um lenço negro, cravou os olhos verdes em Rodrigo, que ficou paralisado de medo, e começou a caminhar em sua direção. O bruxo, percebendo o que o gigante fazia, se recuperou do choque que o olhar dele lhe causara e começou a correr na direção oposta. O guerreiro, por sua vez, o alcançaria apenas caminhando. Por isso, não demorou muito para que a espada do gigante estivesse formando um arco acima de sua cabeça e descendo bem na direção do bruxo. Mas ele foi mais rápido, estendendo as mãos para o alto e formando seu campo de força refletor. A espada do guerreiro, agora saturada de carga elétrica, voou para o alto. O gigante, vendo o que o bruxo acabara de fazer, rugiu feito um trovão e pulou, resgatando sua espada no ar, caindo novamente sobre a calçada com um estrondo, rachando-a de ponta a ponta. Rodrigo engoliu em seco e estendeu as mãos para o alto. Naquele mesmo instante, nuvens negras começaram a se formar nos céus. Podia não ser bom em magia de manipulação do ar, mas era muito bom em manipular as nuvens e os raios. Então, uma chuva de raios poderosíssimos recaiu sobre o guerreiro, que começou a tremer e a rugir, mas não aparentava ter danos maiores. O bruxo, vendo que aquilo não ajudaria em nada, abaixou as mãos, fazendo os raios cessarem e pôs-se a pensar, enquanto corria de um guerreiro furioso em seu encalço.

— Pensa, Rodrigo, pensa — disse a si mesmo ofegante.

O guerreiro, ainda o perseguindo, começava a derrubar muros e passarelas suspensas com apenas movimentos dos braços. É isso! Passarelas!, pensou o bruxo. Então parou de correr e estendeu as mãos para as tais passarelas de metal. Estas começaram a ranger e a se contorcer como se tivessem vida própria. Metais se juntavam e começavam a formar uma silhueta um tanto curiosa. Aquilo exigia muita magia do bruxo, mas ele prosseguiu. Logo, um dragão, inteiramente feito de metal, se erguia sobre a rua, com um guincho grave e metálico. O gigante encarou a fera com olhos estreitados, jogando a espada enorme para o lado e, puxando dois khopesh da cintura, correu na direção dele. O bruxo, sentindo uma dor aguda no lado esquerdo do peito, se afastou da batalha, vendo que aquela seria uma boa distração. E só então se perguntou onde estaria a maldita Vida, que o deixara ali para morrer.

— Está indo bem — disse ela encostada a um dos muros que não foram derrubados pelo gigante.

— Por que você não me ajudou, sua idiota?! — perguntou Rodrigo com a maior fúria que conseguiu, colocando a mão no peito esquerdo logo em seguida, com uma pontada aguda.

— Você entenderá o que se passa aqui mais à frente, mestiço — disse ela misteriosamente, ainda com o sorriso malicioso no rosto.

O que ela havia acabado de dizer? O bruxo franziu as sobrancelhas e a encarou confuso. Vida nunca o chamara de mestiço antes. E então a ficha caiu. Terra, Guerreiro das Sombras, deixá-lo ali sozinho. Aquela não era a Vida.

— Quem é você? — perguntou da forma mais ameaçadora que conseguiu.

Vida deu um sorriso gutural e grave e então encarou o bruxo. Seus olhos não estavam mais azuis. Agora eram dois orbes cinzentos, como nuvens de tempestade.

— Quem é você? — perguntou o bruxo evidentemente assustado, enquanto outra pontada repuxava seu peito.

— Tem certeza que não me conhece? — perguntou Vida, agora com uma voz masculina. Uma voz até familiar. A mesma voz do Senhor Eterno que destruíra sua casa. — Poder não quis colaborar comigo, mestiço. Então, eu tive que achá-lo sozinho. — E lhe acertou um chute bem no peito, fazendo-o cair sobre a calçada, quase sem respiração.

O bruxo, com a visão meio turva, se esforçava ao máximo para respirar, mas o Senhor Eterno que possuía o corpo de Vida colocou seu pé bem em seu pescoço.

— Andei estudando as estrelas esses dias, para achar você, sabia? — perguntou ele num tom divertido. — E aqui está você. Quem diria que seria tão fácil?

— Quem... — Rodrigo tentava se livrar do pé que prensava seu pescoço.

— Ainda não descobriu quem sou, é? — perguntou ele no mesmo tom de antes. — Então eu vou te dar umas pistas. Estudo estrelas para saber sobre o futuro; meu pai morreu acidentalmente há muitos anos atrás; eu coloquei Morte na sua vida para que ela o exterminasse... — Não podia ser. Rodrigo não queria acreditar. — Isso mesmo, mestiço, eu sou o Destino.