Maeve saiu correndo pelas ruas já escuras, enxugando as lágrimas, até chegar à parte da cidade onde carruagens mais elegantes e até automóveis transitavam pelas ruas. Diante da porta de carvalho do prédio baixo de tijolos vermelhos, ela sacudiu a aldrava até que a porta foi aberta.

Não era o doutor, nem sua secretária, mas um homem jovem de cabelos e olhos escuros com uma sobrancelha levantada.

— O doutor Solace não está? – ela perguntou, agora sentindo-se envergonhada apesar do desespero.

— Ele teve que sair para ver um paciente... Você está ferida? Cadê sua mãe e seu pai?

Pensando na resposta àquelas perguntas, ela voltou a chorar.

— Eu não tenho mãe, nem pai... – ela se esforçou para dizer. - A Sra. Hall me colocou para fora...

— Ei, ei, tudo bem. Vai ficar tudo bem.- O homem a fez entrar e, tentando acalmá-la, apertou de leve suas mãos, mas foi o suficiente para Maeve gemer de dor e puxar instintivamente a mão esquerda dolorida.

Delicadamente, ele pegou de volta essa mão e soltou uma exclamação de surpresa ao deparar com a pele vermelha e as bolhas na palma.

— Eu deixei o ensopado queimar... A Sra. Hall sempre usa a colher de pau como palmatória... e... a colher estava dentro da panela no fogo...

O homem franziu profundamente o cenho diante daquilo.

— Venha comigo.

Ela o seguiu pelas escadas que levavam ao segundo andar. Lá passaram por uma convidativa sala de estar e chegaram à cozinha.

O homem disse para ela se sentar e trouxe uma tigela de água para pôr a mão.

— Acho que isso pode ajudar até que Will volte. Ele não deve demorar muito mais. A água está muito fria?

Maeve fez que não e agradeceu. A mão parara de arder. Seus olhos ainda úmidos não conseguiam deixar de encarar um empadão de carne pela metade à sua frente.

— Está com fome?

Ela baixou os olhos.

— Desculpe. Eu...

— Tudo bem.

Ele serviu um pedaço a ela com um copo de leite. Maeve estava faminta e, com a mão direita, devorou boa parte da comida até se lembrar dos bons modos. Ela ergueu os olhos para o homem, sentado ali ao lado, e começou a tentar se explicar:

— No mês passado, o doutor Solace cuidou do bebê da Sra. Hall, que estava muito doente... Fui eu que vim buscá-lo na época. As pessoas diziam que ele não cobrava de quem não podia pagar... Ele... Ele foi muito gentil. Quando estava de saída, também deu balas de caramelo para mim e as outras crianças. Eu... lembrei dele quando estava na soleira da porta trancada com a mão machucada...

— Entendo.

Maeve percebia que apesar do jeito mais sério, esse homem também era uma boa pessoa.

— O doutor mora aqui com você?

— Sim.

— Vocês são parentes?

— Não. Ele é mais como um... eh... amigo.

— Esta é uma casa muito bonita. – Ela estava admirada, apesar de ser um tanto intimidante estar numa cozinha que era quase do tamanho do pequeno apartamento da família Hall.

— Obrigada. Ela pertence à minha família há muito tempo... Agora eu sou o último que restou por aqui...

— Que bom que tem a companhia do seu amigo, então.

Ele abriu um pequeno sorriso.

— É. Acho que você tem razão... Gostaria de um pedaço de bolo? – ele perguntou, percebendo que ela tinha acabado.

— Eu nunca comi bolo...

Maeve adorou bolo. Ela poderia passar o resto da vida comendo bolo.

Ele, então, quis saber seu nome, e depois ela ficou sabendo que ele se chamava Nico di Angelo.

— Você não é médico também, é?

— Não. Eu escrevo para o jornal.

— Você escreve notícias?

— Não. Eu escrevo histórias... Histórias de mistério.

— Com fantasmas?

— É. A maioria delas tem fantasmas...

— Legal!

— Você não tem medo de fantasmas?

— Não em histórias.

Ele voltou a sorrir com aquilo.

Eles ouviram a porta abrir lá embaixo.

— Espere um momento.

Nico di Angelo foi até lá e deve ter contado tudo sobre Maeve para seu amigo, porque quando o doutor Solace apareceu não lhe fez nenhuma das mesmas perguntas.

Enquanto ela comia outro pedaço de bolo, ele cuidou de sua mão.

— Então... você não é mesmo filha do Sr. e da Sra. Hall? – perguntou o doutor num tom cauteloso.

— Minha mãe morreu quando eu nasci... E ninguém sabe quem é meu pai. A Sra. Hall era vizinha da minha mãe.

— Ela... pôs você para fora?

— Eu bati e implorei, mas ela não abriu a porta.

Maeve estava se segurando para não voltar a chorar. O outro pedaço de bolo tinha acabado e sua mão agora estava enfaixada. Era hora de voltar...

— Será que ela não vai mesmo me querer de volta?

— Você ficaria muito triste se não pudesse mais voltar para lá?

— Bom... Ela sempre disse que eu tinha muita sorte de não estar num orfanato... Talvez fique ainda mais brava por eu não estar lá para ajudar na hora de colocar o bebê para dormir.

Maeve estremeceu com essa possibilidade. Ela se lembrou de quando a mulher puxou sua orelha a ponto de fazer sangrar. Era uma coisa que ela sempre ameaçava repetir.

— Não se preocupe – disse Nico di Angelo, como se adivinhasse seu pensamento. - Não vamos deixar que ela machuque você novamente.

— De verdade?

— Nós prometemos – o doutor Solace assegurou com um sorriso gentil.

Essa era a melhor coisa que Maeve já ouvira em todos os seus dez anos de vida. Ela não sabia como eles fariam isso, mas confiou no que diziam.

— O que acha de passar a noite aqui e amanhã resolvemos isso?

Maeve ficou feliz com a sugestão.

Eles não permitiram que ela lavasse a louça por causa da mão enfaixada, e o quarto ao qual foi conduzida era o lugar mais bonito em que já tinha estado. Gostou especialmente do armário com florzinhas pintadas e da penteadeira cheia de objetos pequenos e coloridos diante de um espelho com moldura branca.

— Uma garota morava aqui?

— Esse era o quarto de Bianca... Minha irmã – disse o Sr. di Angelo.

Pelo olhar dele, Maeve não precisou perguntar onde ela estava. Sentiu-se triste por ele.

— Eu... posso mesmo dormir aqui?

— É claro – ele garantiu.

Ainda assim, a garota estava tímida ao se sentar na beirada da cama.

— Eu peço para a faxineira cuidar muito bem daqui, mas como o lugar esteve sempre fechado no inverno, talvez o cheiro não esteja muito bom...

— Eu acho que o cheiro está ótimo.

Nico di Angelo foi até o armário e pegou uma caixa.

— Bianca mantinha aqui algumas coisas de quando era mais nova. Acho que deve ter alguma roupa de dormir que você possa usar.

— Obrigada.

Na caixa, ela encontrou uma foto que parecia ter sido tirada durante um picnic num jardim. Uma menina mais ou menos da sua idade, com vestido claro e cabelos escuros presos numa trança sorria e tinha os braços em torno de um garoto mais novo à sua frente. O garoto era, sem dúvidas, Nico di Angelo no meio de uma risada.

Maeve apoiou a foto no abajur da mesa de cabeceira e adormeceu observando-a. Sonhou que estava naquele jardim com Nico di Angelo e o doutor Solace, e Bianca dizia que ela podia ficar em seu quarto pelo tempo que quisesse.