— Então, se você tem um sangramento a partir de um corte fundo e não possui atadura ou esparadrapo por perto, o que você faz? – Jordan perguntou para os cinco jovens na sua frente. Todos eles levantaram a mão, mas Kay foi mais rápida.

— Você usa o pano mais limpo que tiver, pressiona com força até que o sangue pare de sair e tenha certeza de que nada entre em contato com o ferimento para piorá-lo, como um caco de vidro ou sujeira. – ela respondeu quase num fôlego só.

— Isso aí. É o fim, pessoal, até amanhã.

As três crianças que faziam parte da turma de Primeiros Socorros saíram em disparada da tenda para a próxima aula que teriam, deixando cair o banco de madeira que dividiam juntas. O garoto da idade de Kay usando grossos óculos de grau tentava juntar suas coisas o mais rápido possível com apenas uma mão, enquanto a outra estava ocupada com seu kit de emergência.

— Vá logo, antes que Caçarola te faça de almoço, esquisitinho. – Kay zombou.

Ele saiu de lá se despedindo timidamente de Jordan e a menina revirou os olhos, até olhar para a professora e ficar séria.

— Que foi?

— Seria bom se você desse mais chances aos Novatos... e parasse de intimidá-los. – Jordan comentou enquanto abria sua garrafa de água. Era a terceira daquele dia.

— Estou ensinando esses Fedelhos a serem proativos. Afinal, quem melhor para te dar uma ajudinha com eles? – seu olhar para a mais velha era mais que significativo.

Jordan riu.

— Sei que você está desesperada para ser promovida, mas tudo tem seu tempo.

— Não estou desesperada. Só acho que um dia você vai morrer e alguém precisará te substituir rápido.

— Não se preocupe, já coloquei no meu testemunho que você é a herdeira.

— Ótimo. Preciso ir, Minho não tem conseguido lidar com os novos Nadadores sozinho.

Dizendo isso, Kay saiu da tenda carregando sua bolsa e uma postura de superioridade que apenas ela conseguia ter.

Apesar da insistência em querer ser a Encarregada de cada trabalho na Ilha, até dos Costureiros, Jordan sentia orgulho por Kay. A menina passou a ser praticamente seu braço direito quando o assunto era a Cura e Primeiros Socorros, e, após alguma experiência adquirida, sua próxima meta passou a ser ensinar toda Medicina que houvesse no mundo para quem quer que aparecesse na sua frente. Ainda que gostasse de ensinar, a Clareana reconhecia que Kay possuía muito mais talento para isso e estava realmente em seus planos que ela ocupasse seu lugar futuramente.

Com a chegada de novas pessoas à Ilha, os primeiros habitantes perceberam que nem todo mundo possuía alguma habilidade que se encaixasse nas necessidades do lugar. Por exemplo, eles receberam uma família de Imunes em que todos os membros conheciam a mais avançada tecnologia, mas isso não tinha tanta utilidade. O Berg, o item mais próximo da modernidade que possuíam, ainda era usado e requisitava grande conhecimento; contudo, quase ninguém sabia cartografia ou cuidar do açougue. Então, foi decidido num Conclave que uma fração do dia seria dedicado a aulas, dadas pelos Encarregados.

Jordan, Encarregada dos Socorristas elegida por unanimidade, ensinava o que sabia com a ajuda de livros médicos trazidos de cidades.

Gally, Caçarola e Dante eram os Encarregados das áreas que costumavam dominar na Clareira, mas trabalhavam com Dina, Hiro e Courtney, respectivamente. A última chegara à Ilha com sua irmã por acaso e foi a primeira ajuda que Dante teve no Sangradouro, pois ninguém até então tinha se voluntariado. Louis assistia com um favor ou outro, mas costumava estar ocupado como Ajudante de Minho ou dos Desbastadores.

Minho fora transferido de Encarregado dos Corredores para dos Atletas, e também servia de Salva-Vidas da Ilha. A princípio, ninguém no Conclave apoiou tê-lo como professor, mas não se podia negar que ele era o melhor da sua área. Thomas era mais conhecido pela habilidade em estratégia e negava-se a dar aulas, e não se comparava ao amigo quando se tratava do mar. Os alunos do antigo Corredor não eram os mais empolgados com a aula, mas possuíam uma disciplina inigualável. Aprenderam a ficar sempre preparados para o mau humor de seu professor, principalmente porque a turbulência de seu relacionamento com Harriet era conhecida por todos.

Harriet, ou Tourlin, seu nome verdadeiro pelo qual preferia ser chamada, era a Encarregada da Segurança e uma das melhores em lidar com armas e luta. Frequentemente, ela e Jordan se juntavam numa noite de fogueira para estrearem o círculo de lutas. Enquanto Minho descarregava a frustração das brigas nos alunos, ela o fazia com as armas. Os dois se amavam como ninguém poderia, isso era fato, e também servia como um dos principais elementos para discussões. A garota não gostava de quando ele ia se aventurar no perigo do alto-mar com os barcos da Ilha, e ele cismava com todos os garotos que tinham aula com ela, às vezes até algumas garotas. Já não surpreendia ninguém que fossem vistos brigando e se beijando no mesmo dia.

Poucos eram os casais fixos na Ilha, especialmente pelo fato de que não havia tantos habitantes. Além disso, muitos que chegavam vinham com cicatrizes profundas e de coração fechado, mais interessados na Cura ou no estado curioso em que Newt se encontrava. Era mais importante saber se a humanidade possuía uma salvação, porque nem todos eram Imunes.

Para alguns, era graças a um milagre que o antigo Segundo em Comando ainda estava vivo; para outros, era graças a um tiro, um dedo mindinho, horas de terror, um cheiro inesquecível de queijo. Os primeiros habitantes da Ilha defendiam o Inibidor com unhas e dentes e no Estatuto Mallory, como foi denominado o conjunto de regras do local, havia a norma de não danificá-lo, movê-lo, trocá-lo, abastecê-lo ou manipula-lo sem a autorização do Encarregado da Cura, que era Jordan desde o início. As esperanças naquela grande máquina e em Newt nunca morreram. Por mais que já tivessem a constatação de que a Cura não poderia salvar um infectado tomado inteiramente pela Insanidade, havia uma fé cega para com Newt. Andrômeda não podia afirmar o nível em que o Fulgor se encontrava no organismo dele.

Jordan se retirou da tenda em que lecionava para que Elizabeth, como Sonya escolhera ser chamada, Encarregada dos Desbastadores, desse sua aula de Sobrevivência à turma de seis alunos. Não fazia muito tempo que haviam estreado essa matéria, porque os próprios Grupos A e B precisaram passar por poucas e boas para reconhecerem que não estavam tão preparados para a vida na Ilha quanto pensavam.

— Me encontre lá assim que terminar aqui, tudo bem? – Jordan murmurou com ansiedade para a melhor amiga, que assentiu.

Não foi difícil a reconstrução da amizade das duas ao longo daquele tempo. Passavam bastante tempo juntas planejando as aulas de Elizabeth, faziam parte da liderança da Ilha, tinham a experiência que tanto as conectava e, mais importante, amavam Newt. Era mais fácil vê-las se unindo para brigar com os outros do que entre si.

A Clareana entrou na tenda da Cura, prendendo o cabelo num coque pelo clima abafado daquele dia. Viu uma figura em pé atrás da capa de plástico onde ficava Newt e o Inibidor e puxou-a para o lado, rindo.

— Eu não disse que te chamaria quando fosse a hora? – ela indagou.

— Mas já está na hora. – Vitor respondeu.

— Vim fazer um último teste em você antes. – Jordan seguiu para um armário, da onde tirou uma caixa amarela de tamanho médio. Ela estava mal pintada de vermelho e possuía um desenho feito de tinta de uma cruz, obra de Albner, filho de Agatha.

Vitor se sentou numa cadeira de frente para Jordan, recebendo uma maçã nas mãos.

— Feche os olhos e dê uma mordida. – ela instruiu.

— Estava mesmo com fome.

Assim que ele obedeceu, a Encarregada espetou-lhe com um alfinete.

— Ai.

— De que sente gosto? – ela perguntou.

— Casca de mamão.

— Ótimo.

Ele abriu os olhos e Jordan pegou a maçã para si, dando uma mordida generosa enquanto ia se sentar numa mesa e anotava a resposta numa prancheta.

— Achei que isso fosse meu! – Vitor reclamou.

— Só durante o experimento. – ela zombou. — Além disso, você não gosta de casca de mamão.

— Mas não estou sendo espetado por nada agora.

— Aé? – ela pegou o maior alfinete que tinha no estoque e investiu falsamente na direção dele.

Muita coisa havia mudado depois do primeiro ano na Ilha, especialmente com Vitor. Ele se desculpou com Jordan sobre o ocorrido na tenda, dizendo que não havia se dado conta de que estava indo contra a vontade dela até ela ser específica. A garota passara semanas sem vontade de estar na presença dele, principalmente após ter tido uma conversa com Kay na qual a menina revelava ter sofrido abuso sexual quando mais nova. Uma norma entrou para o Estatuto a partir disso e só então Jordan se sentiu segura para ficar sozinha com ele. Mas Vitor nunca mais chegou perto de cometer tal engano outra vez. As meninas, com o suporte de Agatha, e posteriormente de boa parte dos rapazes, haviam chegado ao acordo de que era necessário implantar uma Educação Sexual, mas apenas muitos meses mais tarde esta foi colocada em prática, porque sabiam que as aulas não poderiam ser dadas por qualquer um.

Com tanto tempo tendo contato com o assunto através da especialista que encontraram, Vitor imaginava sua própria turma, onde poderia passar adiante as valiosas lições. A relação que construiu com a educadora influenciou muito na mudança de perspectiva dele.

Jordan frequentou as aulas com Vitor e eventualmente se tornaram parceiros nas atividades, até que um dia, de certa forma, foi como se o mal entendido nunca tivesse acontecido.

— Está pronta para isso? – ele perguntou após longos minutos de silêncio da parte deles.

— Estou mais que pronta. – Jordan respondeu com firmeza, mas logo em seguida duvidou de suas palavras.

— Tudo bem se não estiver.

Ela soltou um longo suspiro e pressionou suas lacrimais para tentar acalmar o próprio coração.

— Estou com medo. Todo mundo está apostando tudo nessa tentativa. Quantos infectados nós trouxemos para cá para testar as outras versões, afinal? Não tem ninguém que não saiba o nível de desespero em que já estamos. – choramingou.

— Ei. – ele abriu um sorriso imenso da onde estava. — Lembra do grito que você deu quando testamos essa versão no último infectado? Eu definitivamente lembro. – Vitor pôs o dedo no ouvido como quem testa a própria audição. — Ela foi a primeira que passou dos 50% de eficiência. Tudo aponta que essa é a Cura que estamos procurando.

— Se o vírus não tivesse sofrido mais modificações durante esse tempo todo...

— Mas você conseguiu resolver esse problema. Quer saber de uma coisa?

Vitor se levantou, pegou uma caneta e uma etiqueta, escreveu algo em letras bem redondas e colou-a no tubo de ensaio em que estava a última tentativa do estudo de Guilterson. Jordan viu que o rapaz acabara de nomeá-la como Guilterson-Lacerda.

— É assim que o mundo todo vai conhecer a Cura. – ele declarou, fazendo-a rir. — Não zombe de uma coisa dessas. Queria que muita gente estivesse aqui para ouvir isso, e tenho certeza de que você também.

Jordan sorriu em resposta, mas as lágrimas por todos aqueles que não estavam ali para ver o que os Clareanos conquistaram ainda vinham às vezes, e vieram outra vez agora. Ela ainda pensava em Newt quando havia discussões nos Conclaves; pensava em Winston quando via Dante trabalhando; pensava em Alby quando via alguém muito mal humorado; pensava em Chuck sempre que olhava para as crianças que tinham se juntado a eles. Era impossível não pensar em cada um dos Indivíduos do Experimento quando se olhava para a rocha em que gravaram seus nomes e de muitos outros numa homenagem.

— Vai funcionar, porque nenhuma outra pessoa conseguiria ter a coragem para tentar uma coisa dessas. – Vitor afirmou.

De repente, uma dezena de pessoas rompeu da entrada da tenda. Elizabeth, Tourlin, Andrômeda, Jorge, Brenda e os Clareanos olhavam ansiosos para Jordan. A Socorrista engoliu em seco, sentindo as próprias mãos tremerem. O momento tinha chegado.

Ela seguiu para uma mesa, onde calçou luvas e extraiu uma dose já pré-determinada do experimento por uma seringa. O Inibidor estava desligado há um tempo para que o corpo de Newt começasse a se estabilizar, mas Jordan estava preparada psicologicamente para liga-lo de volta caso algo desse errado. Ela relanceou para o grupo, captando a ansiedade de Thomas e a preocupação de Gally. De repente, aquelas horas horríveis a partir da rodovia em Denver voltaram a espremer o coração dela.

Todos deixaram que ela ficasse sozinha ao lado da cama dele, mas quando Elizabeth percebeu o quanto a mão ocupada dela tremia, ela pôs a sua por cima, e juntas injetaram a dose no pescoço de Newt. Olharam para o monitor que mostrava os sinais vitais dele, a eficiência do Inibidor, o estado em que se encontrava o Fulgor. Cada elemento era meticulosamente analisado.

Andrômeda se aproximou mais do visor, informando em voz alta que seu coração, seus pulmões, tudo estava do mesmo jeito. O único responsável por informar o resultado total era Newt. Se aquela fosse a Cura, ele agiria bem diferente da última vez em que estava acordado.

Esperaram em completo silêncio por dois, três, quatro minutos inteiros que passavam muito rápido. Jordan já precisava fazer esforço para engolir o bolo em sua garganta. Elizabeth segurou sua mão como um lembrete de que podiam esperar mais um pouco. Mas o sentido disso já tinha se perdido. As marcas das veias ainda estavam ali, o Fulgor ainda era o mesmo.

A Clareana recuou, soltando-se da amiga.

— Jordan...

— Calado, Thomas. – ela interrompeu pacientemente, ainda que sua voz estivesse carregada de mágoa enquanto encarava um Newt imóvel.

Elizabeth continuava ali, enrolando o cabelo do irmão nos dedos. Minho se largou numa cadeira, derrotado.

— Talvez ele não vá reagir imediatamente. – Brenda sugeriu.

— Todos os infectados reagiram no instante seguinte à aplicação, trolha. – Jordan murmurou amargurada.

— Sim, mas aquela não era a Cura...

— É mesmo?! Deus... – ela parou e respirou fundo para baixar o tom. — O resultado está na cara de vocês. – disse, controlada.

Ela respirava descompassadamente ao olhar para Elizabeth, que já tinha dado as costas ao rapaz com os olhos marejados. Os olhos da Socorrista se encheram também.

— Lamento, Lizzy.

O olhar da loira tinha raiva. Às vezes era como se ela fosse a única que acreditava que Newt podia ser salvo.

Jordan encarou-o, sentindo a tristeza abatê-la finalmente. Estava acabado. Quem garantiria ser possível criar outra versão? O abismo que tão facilmente se abria em seu peito parecia agora capaz de engoli-la. Ela cobriu o rosto com a mão para deixar as lágrimas descerem e sentiu o abraço de Thomas envolve-la por completo. Ficaram um tempo assim, até que o único desejo dela foi se martirizar sozinha.

— Podem sair. Melhor irem cuidar do que ainda restou de bom aqui. – ela disse, olhando diretamente para a saída.

— Nelly.

Jordan já não sabia mais há quanto tempo não ouvia esse nome, porque todos a chamavam pelo seu nome verdadeiro. Só uma pessoa em toda aquela Ilha a conhecia apenas como Perenelle. Quase tinha se esquecido como era a cor amarela também. Mas ela voltou, brilhando no espaço.

Elizabeth começou a rir de repente. Jordan olhou para Newt, vendo que a linha eterna em que seus olhos ficavam estava desfeita e eles giravam meio abertos por todo canto do laboratório. As veias de seu pescoço haviam recuado para o peito e não havia nele nenhum sinal da raiva animalesca dos Cranks. A Clareana riu e cobriu a boca, e seus olhos foram inundados por pura felicidade de uma só vez.

— Isso é real? – ela perguntou a Thomas, agarrando-o pelo ombro. Mas ele não tinha a menor ideia do que dizer; sua visão também estava embaçada.

— Newt... – ele se aproximou hesitante.

Jordan se precipitou e depositou um beijo na bochecha de Newt, acariciando-a e se ajoelhando ao lado da cama.

— Meu Deus... – ela riu outra vez, apoiando a testa na beirada.

— Que mértila... – Newt tentou falar, mas saiu num sussurro muito seco; a sede o fez tossir. Em dois tempos, Andrômeda se aproximava com um pote de vidro com água que foi levado a boca dele com cuidado. Ele bebeu tudo e tossiu de novo, descansando a cabeça de volta, os olhos ainda meio fechados.

— Está tudo certo. – Andrômeda disse, olhando o monitor.

A cabeça de Newt não conseguia processar nem metade do que se passava ao redor dele. Por que Nelly parecia tão diferente da última vez que a vira? Por que Thomas de repente tinha a marca de uma barba feita? Por que se sentia tão cansado? Os três começaram a falar com ele e entre si, mas nada era processado. Newt teve certeza de que se encontrava num péssimo estado quando viu um dedo a menos na mão de Nelly.

Sua consciência se esvaiu quando seu corpo todo ficou rijo num espasmo e seus olhos se reviraram de repente, assustando a todos. A cama rangia com os movimentos bruscos de seu corpo. Elizabeth e Thomas se afastaram enquanto Jordan virava o corpo dele de lado para que a convulsão não o machucasse.

— O que é isso? – Elizabeth perguntou alarmada.

— Sequela. – a Clareana admitiu com pesar, sinalizando para que Thomas a ajudasse a manter Newt sobre a cama.

— Explique.

Jordan suspirou para reunir paciência.

— Lembra quando conversei com você sobre a cirurgia dele? Ataques epiléticos são uma das sequelas.

— Uma das?

— Podemos falar sobre isso depois?

O corpo de Newt se acalmou e ele continuava inconsciente. Todos olharam para os monitores para ter certeza de que estava tudo bem, mas temeram que aquela não fosse toda a realidade.

Uma hora mais tarde, Jordan, Thomas, Minho e Andrômeda estavam sozinhos dentro da tenda. Elizabeth preferiu esperar do lado de fora até que Newt acordasse e os outros acharam a ideia tentadora; respirar ali dentro parecia impossível com a presença do resultado da batalha mais longa que já enfrentaram.

— Vai ter valido a pena, pelo menos? Quero dizer... fazê-lo passar por tudo isso. – Thomas perguntou para o nada, mas olhou para Jordan quando esta não respondeu de imediato.

— Ele ia se transformar em um canibal se não tivéssemos feito alguma coisa a respeito. Deve ter valido a pena. – ela tinha o tom indiferente. Levou sua garrafa de água à boca, desejando que a espera se encerrasse logo. Apenas Newt possuía esse tipo de resposta e, francamente, ela não queria pensar na culpa que tinha por ele sofrer sequelas.

— E você, Criadora, o que acha? – Minho perguntou a Andrômeda, que até então tinha os olhos perdidos no nada.

Ela já não se incomodava com o apelido que o antigo Corredor dera a ela. É claro que os novos habitantes da Ilha não sabiam da ligação dela com o CRUEL e pensavam que ela fizera parte do Grupo B; conflitos foram evitados com essa omissão; mas sabiam sobre seu tio Hans e por isso não questionavam muito o apelido.

Porém, além de Jordan, ninguém tinha conhecimento dos detalhes de sua história dentro da organização. Ela não conseguira se aproximar de alguém o suficiente para isso e tanto Andrômeda quanto a Socorrista sabiam que sua amizade se baseava muito na aliança que firmaram quando ainda estavam dentro do complexo. A Criadora contara sobre sua vida apenas por conveniência, formalidade e, claro, pressão. Jordan sabia que era seu pescoço na guilhotina se Andrômeda se revelasse uma ameaça. Contudo, após o relato, ela tendeu a confiar.

Depois que Mallory teve a ajuda da antiga inspetora-mirim para remover o dispositivo da cabeça de Jordan, Andrômeda se ofereceu veementemente para ajudar a Clareana de maneira direta na Cura, apesar de saber que Mallory, até então, era o suficiente. A garota tinha razões pessoais para fazer isso e a familiaridade que Jordan sentiu com estas foi o bastante para convencê-la de que as duas eram, no mínimo, igualmente marcadas pela influência do CRUEL, num aspecto que nenhum Indivíduo ali se comparava. O filho de Ava, Nico, assim como acontecera com Gally e Jordan, fora tirado da vida de Andrômeda de modo brutal, e isso nunca foi superado.

Assim como Thomas, Nico era uma exceção entre todas as crianças no CRUEL; era diferente, um prodígio, inteligente como ninguém. Participava de reuniões importantes, perto das quais os casais que montavam os Labirintos jamais chegaram. Seu parentesco com Ava Paige não poderia lhe dar outro status, a Chanceler sempre o incentivou a ser o melhor que podia; mas nunca o idealizou como seu sucessor, e do motivo disso nem ela mesma sabia direito. Por mais difícil de acreditar que fosse, Ava amava o filho, protegeu-o dos ataques que todos fizeram à descoberta de seu nascimento e não-Imunidade. No entanto, ele cresceu até os dez anos ao lado do pai, cuja moral ia muito na direção contrária a de Ava. Em consequência, Nico não apoiava o Experimento, os Labirintos, os testes cruéis a que as crianças sequestradas eram submetidas, e disso quem melhor sabia era Andrômeda. Ela não participava das grandes reuniões tanto quanto ele, mas isso não impedia que fossem os maiores confidentes um do outro; e, nesse caso, os segredos eram bem maiores que os de Gally e Jordan. Nico tinha medo da própria mãe e do que ela poderia fazer se descobrisse que ele sonhava com uma fuga para seu próprio método de achar uma cura para o Fulgor. Andrômeda lhe fizera a promessa de que o ajudaria. Pouco depois, Ava decidiu que Nico era a criança mais preparada para um teste que precisavam fazer com um não-Imune. Nem o melhor Indivíduo-controle que tinham serviria; era necessário alguém que conhecesse a origem, os detalhes e o objetivo do processo. O conhecimento, contudo, não serviu para salvá-lo. Ava confiou cegamente na capacidade do garoto, ultrapassando os limites. Ela esperou até que obtivessem resultados relevantes, ignorando os gritos do filho, que imploravam para que interrompessem as alucinações porque começavam a parecer realistas demais. Mas esse era um objetivo que tinham omitido: enganá-lo e submetê-lo a uma realidade tão poderosa que o faria questionar absolutamente tudo. A mentira foi maior do que ele pôde suportar, e ele acreditou que estava sendo infectado e sucumbindo ao vírus em questão de horas à medida que seu desespero crescia. Ava determinou que esse era o ápice do teste, mas de nada adiantou terem desligado as máquinas. As células de Nico se encontravam frágeis e os médicos constataram que o vírus enfraquecido que injetaram em seu organismo conseguiu se reativar durante o processo. A Chanceler não viu outra opção senão acabar com o sofrimento dele de uma vez.

Andrômeda precisou vestir uma casca muito mais dura do que qualquer pessoa seria capaz diante da notícia. Já havia sido deixada por seu tio para crescer no meio daquelas pessoas e agora era obrigada a enfrenta-las sem o único com o qual se importava em sua vida. Ela sabia que nada deixaria Nico mais feliz, onde quer que estivesse, do que realizar o sonho dele. Andrômeda, a partir de então, jamais duvidou da possibilidade de haver uma cura, e trabalhou o máximo que pôde para crescer como cientista. Acreditava ter que aguardar ainda anos para poder fugir quando Jordan lhe sugeriu ser a primeira esperança em muito tempo.

Ela acreditava com certeza que valera a pena apostar no trabalho de Guilterson por todo aquele tempo, e apostaria por muito mais se fosse preciso.

— Sim. – Andrômeda respondeu Minho com muito mais convicção que Jordan, e esta a invejou. — Newt nos trouxe até aqui, ele foi o maior responsável para o mundo ter uma cura agora. Tudo valeu a pena.

No momento em que ela encarou cada um dos três, eles pensaram sobre as fases pelas quais passaram, a guerra na fábrica de queijo, as mortes que presenciaram. Nada disso um dia poderia ser totalmente superado, mas tinha sua recompensa ali, em mãos.

— Vou pegar mais uma amostra do sangue dele. Melhor acompanhar de perto como as coisas vão se desenrolar. – Andrômeda se levantou e foi pegar uma seringa.

— O que isso significa? – Minho perguntou a Jordan, que apenas lhe lançou um olhar sério. Estava procurando as palavras certas quando a Criadora voltou a falar.

— Bom dia, dorminhoco.

Newt se movimentou bruscamente com a aproximação de Andrômeda e uma agulha e bateu a cabeça nos braços do Inibidor. Jordan se adiantou imediatamente.

— Oi! – ela disse com um sorriso imenso para ele, pegando em sua mão para acalmá-lo. — Ela só vai tirar um pouco do seu sangue, está tudo certo.

Sob o olhar desconfiado e alerta de Newt, Andrômeda inseriu e retirou a seringa, foi chamar Elizabeth e decidiu deixa-los a sós. Jordan e Thomas ajudaram o antigo Segundo em Comando a se sentar e ela logo tomou lugar ao lado dele, enquanto os outros três puxavam cadeiras.

— Como se sente? – Jordan perguntou, incapaz de soltar a mão dele. Há tanto tempo não a sentia tão quente.

— Hum... Confuso. – seus olhos se perderam no chão enquanto tentava colocar as coisas em ordem em sua cabeça. Ele olhou para Thomas assim que pôde ter uma ideia da última coisa de que se lembrava. — Tommy... – mas não conseguiu formar uma frase coerente. O quanto Minho e Nelly sabiam?

Thomas baixou o olhar, conseguindo sentir, lá no fundo, a angústia, o desespero, o horror que aquela rodovia lhe causara. Ele olhou para o amigo, que agora não possuía nada daquele olhar animalesco; era outra pessoa. Por isso, desprendeu-se desses sentimentos o mais rápido que pôde.

— Já faz um tempo... – ele disse, mas foi interrompido.

— Jura? Não sou idiota, sua cara feia de mértila está peluda. Quanto tempo? – Newt olhou para cada um e por fim para Jordan.

— Quatro anos. – ela respondeu com a voz singela.

O loiro sustentou o olhar dela por longos segundos, digerindo aquilo, e à medida que a ficha lhe caía, a tristeza crescia. Havia perdido quatro anos.

Ele olhou ao redor, concluindo que não fazia ideia de onde estava. Por que sentia cheiro de mar? O que era aquela coisa enorme atrás de sua cama? Por que havia um esparadrapo em sua barriga e seu cabelo não estava horroroso como se lembrava?

Os quatro contaram tudo, desde a rodovia até a fábrica de queijo, quando resolveram omitir alguns detalhes para que não parecesse tão horrível quanto fora. Não contaram muito sobre a Ilha, pois já era o suficiente de informação para processar. Newt encarou de longe a mão de Jordan, em especial o dedo que faltava, e o peso que sentiu não podia ser descrito. Olhou para Elizabeth, uma loira bonita, de lábios vermelhos e brilhantes, da qual não se lembrava e que até então havia apenas contribuído com algumas partes do relato.

— Quem é você? – ele perguntou.

O brilho nos olhos dela se enfraqueceu e ela deu um sorriso triste.

— Você me viu no Deserto. Eu estava com as meninas que cercaram seu Grupo e levaram Thomas num saco.

A ruga se formou entre as sobrancelhas de Newt, ainda que tivesse reparado no sotaque idêntico ao seu que ela possuía.

— Um saco? – repetiu.

— Newt, não se lembra? Levei uma flechada na perna naquele dia. – Jordan detalhou.

Newt mergulhou em longos segundos de reflexão silenciosa.

— Não me lembro. – disse.

— Não se lembra... de nada? – Elizabeth indagou com preocupação.

— É claro que lembro do plong todo que passamos.

— Tem problema com alguns detalhes... certo? – Jordan perguntou, esperançosa.

— É.

Thomas e a Socorrista suspiraram de alívio. Minho pigarreou para falar firmemente.

— Bom, não importa. A vida é outra agora. Quanto menos lembrarmos daquele inferno, melhor. – disse.

Newt não gostou de ouvir isso. O quanto ele estava atrasado em relação aos amigos?

Vendo sua expressão pensativa e desolada, Jordan olhou para Lizzy e lhe deu um olhar encorajador.

— Meu nome é Elizabeth. – ela disse a Newt.

— Olha só, também não entendemos metade do que ela diz. É um baita consolo. – Minho zombou risonho.

— Minho. – Thomas murmurou em repreensão. O Clareano supunha que a palavra “consolo” não era a que Newt gostaria de ouvir agora.

Newt olhou timidamente para a loira, que lhe deu um sorriso triste e se levantou calmamente. Ela sabia que ele precisava que as coisas fossem mais devagar.

— Vou dar as boas notícias e começar a preparar a festa. – Lizzy olhou para Minho e Thomas significativamente. Os dois se levantaram para sair.

— Tommy, você poderia ficar? – Newt pediu e o rapaz prontamente voltou a sentar.

Elizabeth e Minho se retiraram. Newt se esticou para pegar o pote de vidro cheio de água ao lado da cama, fazendo perceptível a tremedeira de sua mão. Os minutos passaram, ele bebeu sem pressa, sabendo que os dois entendiam o silêncio.

— Contem de novo o que aconteceu na rodovia. – pediu, encarando o copo.

— Newt, já passou, cara... – Thomas começou.

— Para mim não. – Newt o interrompeu rispidamente. – Para mim... foi ontem. Ainda posso sentir aquela angústia toda. Por que não me matou, Thomas? O que é que eu estou fazendo aqui?

Jordan sentiu a temperatura despencar. Seu coração falhou uma batida.

— Foi como nós contamos. Errei a mira. Jordan apareceu pouco depois e teve ajuda para fazer a cirurgia.

Newt piscou algumas vezes para associar o nome Jordan à Nelly que conhecia, mas até isso o frustrou. Jordan e Perenelle eram pessoas diferentes àquela altura, ao que parecia.

— Errou a mira? – ele repetiu, apertando o copo em suas mãos. Newt saiu da cama e caminhou para o outro lado da tenda, sentindo a adrenalina tomar conta de seu sangue. Os outros dois se entreolharam quando as veias dos braços de Newt se mostraram. — Até quando vão me fazer de idiota?

Ambos se levantaram, alertas e temerosos.

— Eu estava em cima de você, Tommy. A arma estava bem aqui! – cutucou a testa com força. Foi possível ver a clareza passar por trás de seus olhos, ainda que a raiva estivesse ali. — O que aconteceu?

— Newt, eu juro...

Newt voou para cima dele de uma só vez, agarrando-o pela blusa e prendendo-o contra a cama.

— Não minta para mim! – ele gritou, seu rosto tingido de vermelho. — Não! Minta! Para mim!

Jordan se aproximou sem medo, contando todo o ocorrido de ponta-a-ponta, e, à medida que ela falava, Newt soltava Thomas e recuava, encarando-a. Ela contou do dispositivo de localização, de como pulou por cima dele na hora do tiro, da tristeza, do luto, da própria tentativa de se matar, da participação de Gally e Mallory. Ela desistiu de poupar detalhes. Newt perdeu quatro anos da vida das pessoas com que mais se importava. O pior a se fazer era esconder algo dele.

— Essa é a verdade, Newt. Vamos contar tudo que quiser saber. Agora... seja sincero... Como se sente?

Ele olhou nos olhos dela, lembrando-se de que ela era uma Socorrista.

— Estou com raiva. – ele disse.

— Certo. Tudo bem. – Jordan afagou os braços dele como um modo de acalmar a ele e a si mesma. — É apenas o que restou do Fulgor. Ele vai morrer gradativamente. Um dia, isso vai ser apenas uma lembrança, eu prometo.

Newt continuava a encará-la, sentindo a adrenalina passar; sentindo a saudade, a carência, a paixão, tudo voltar ao mesmo tempo. Ele a abraçou bruscamente, agarrando-se ao corpo dela e sem querer lhe arranhando o ombro. Jordan finalmente apertou-o o mais forte que pôde, rindo e chorando por cima de seu ombro, quase sem conseguir acreditar que podia sentir os braços dele ao seu redor outra vez.

Perderam a noção de quanto tempo ficaram assim. Foram os passos de Thomas saindo que fizeram Newt voltar à realidade.

— Tommy. – ele chamou, desfazendo-se do abraço e dando dois passos hesitantes na direção do amigo. — Desculpe.

Thomas balançou a cabeça, desviando o olhar para o chão enquanto ia abraça-lo. Bateram nas costas um do outro, um gesto que indicava perdão, amizade, saudade, gratidão e amor. Thomas os deixou sozinhos, avisando a uma Andrômeda preocupada na entrada da tenda que estava tudo bem.

Assim que Newt se virou de volta para Jordan, ela trouxe-o para perto com as mãos em seu rosto e beijou seus lábios. Ele cercou sua cintura com os braços, depois a apertou com os dedos usando mais força do que pretendia, invadindo por baixo da blusa dela. Ela o empurrou na direção da cama e riu quando ouviu as pernas dele baterem.

— Suba. – ela murmurou.

— Nelly...

— Suba. – repetiu, sorrindo.

Newt obedeceu, arrastando-se para o meio da cama. Ela ficou por cima de seu colo, prendendo firmemente suas coxas de cada lado dos quadris dele; puxou a camisa dele pela barra e a tirou rapidamente. Sentiu a pele por baixo de suas mãos e a apertou com vontade, explorando o pescoço, o peito, o abdômen, as costas, tudo sem interromper o beijo nem um segundo. Era uma pele frágil, um corpo mais frágil ainda. Por mais que tenham alimentado-o durante esse tempo, não se podia dizer que ele estava saudável como os outros. Newt ainda não conseguia liberdade para tirar suas mãos da posição dura na cintura dela, principalmente porque não tinha ideia do que pensar naquele momento. Ela havia esperado quatro anos? Ou teve vários relacionamentos ao longo daquele tempo, com várias das pessoas diferentes na Ilha? Ela o via ainda da mesma forma?

Como se lesse os pensamentos dele, ela disse:

— Eu te amo. Eu te amo. Eu te amo... – seus olhos estavam fechados, ela sussurrava, mas era possível sentir a intensidade em sua voz. — Sei que devia ter dito isso há muito tempo, eu disse várias vezes enquanto você estava em coma... Mas eu te amo. – Jordan olhou nos olhos dele, afastando um pouco o rosto. — Não sei como se sente em relação a mim, Newt, acho que nós dois vamos descobrir. Mas sou a mesma pessoa que você conheceu.

Ela o beijou outra vez para compensar todo o tempo que ficou sem fazê-lo.

— Talvez um pouco mais saudável, impaciente e maluca, mas sou a mesma pessoa. Ainda sou a Nelly.

Newt sentiu seu peito se aquecer. Ainda que estivesse confuso sobre muito do que sentia, sabia que aquilo era o sentimento por ela desde o momento em que tiveram no Campo-Santo. Ele a puxou para um beijo e foi como se a temperatura subisse quarenta graus de uma só vez. Jordan tirou a própria blusa e o fez deitar. Ambos retomaram o beijo, Newt pousando sua mão no pescoço dela e depois a usando para afastá-la e admirá-la. Seu corpo estava muito mais gracioso do que se lembrava. A cintura estava menos delineada, mas porque estava mais saudável do que quando foi submetida à Fase 2. Os cabelos continuavam da mesma altura, mas bem hidratados e faziam Newt não querer soltá-los. Os seios eriçados e medianos o hipnotizavam. Tinha mesmo acordado no Paraíso.

— Não babe. – Jordan disse para trazê-lo à realidade.

— Nelly... – ele sentiu a própria boca seca. — Não quero que pense que não confio em você. Mas foram quatro malditos anos. Vou entender se tiver ficado com outra pessoa... Você está linda. Eu só quero saber...

Ele não terminou a fala. Esperava que ela o cortasse e encerrasse esse assunto logo. Não precisava de nenhuma prova ou testemunhas, só queria a palavra dela.

— Não fiquei. – ela respondeu, sorrindo pelo elogio. — Acredite, tem alguns de nós já pensando em casar. Encontraram o dono do coração deles, e eu já tinha o do meu. Eu nem tentei, Newt. Só conseguia pensar em você, aqui, esperando, dependendo de cada gota de suor de todos os dias.

Ambos olharam para o tubo de ensaio da mesa, onde o líquido azul com a Cura repousava, inocente, como se não tivesse lhes custado um valor muito alto. Ela olhou nos olhos dele com firmeza. Newt engoliu para falar alguma coisa, mas apenas assentiu com a cabeça. Ainda tinha muito que processar, era bom ter pelo menos isso como uma certeza.

Ficaram deitados na cama por bastante tempo, conversando sobre a Ilha e como as coisas funcionavam. Jordan não cansava de dizer o quanto ele era responsável pela organização do lugar, pela produção da Cura, pelo esforço dela.

— Encontramos dois macacos na Floresta uma vez e decidimos chama-lo de Isaac e Newt. Eles aparecem aqui na praia às vezes, você com certeza vai conhecê-los.

— Mal posso esperar. – ele disse com uma nota de sinceridade.

— Não zombe deles, eles puxam seu cabelo e jogam caquis em você. Ah, também temos um leopardo, mas ele não é muito amigável, não. Elizabeth quase teve a perna comida por ele quando foram caçar.

Jordan se calou, esperando que ele comentasse sobre a garota.

— Ela não se parece nada comigo, não é? – ele disse após longos minutos de silêncio.

— Vocês têm dois anos de diferença. Tenho certeza de que vão se dar muito bem, ela é minha melhor amiga. E já éramos próximas antes dos Labirintos. Newt.

Ele, que tinha a cabeça apoiada no peito dela, olhou para cima.

— Ela te ama. E passou os últimos anos maluca com você. Ela acha que o retorno das lembranças fez mais mal do que bem, mas agora vocês vão poder começar do zero.

Newt ponderou a respeito, mas não quis mais falar, e voltou a deitar.

— Senti falta da sua cor. – Jordan disse, enrolando uma mecha do cabelo loiro em seus dedos.

— Ainda é a mesma?

Ela olhou para a linha amarela subir até o teto, rodopiar e sumir com uma nota musical viva.

— Sim. – respondeu com satisfação. — As cores nunca mudaram. Nem disso aqui. Olhe.

Jordan mostrou a tatuagem de identificação no pescoço, escrita em preto do começo ao fim tanto aos olhos dela quanto aos de Newt.

Propriedade: CRUEL. Grupo A, Indivíduo A14. A Reparadora.

— Raramente falamos do CRUEL, porque todos ainda têm isso. Tentamos fazer com que seja a única lembrança.

Newt puxou sua própria gola, tentando ver a sua.

Propriedade: CRUEL. Grupo A, Indivíduo A5. O Grude.

Os dois enfim saíram da tenda e já estava escuro. A fogueira estava acesa bem no meio da praia e todos estavam espalhados pelo local, este repleto de tendas brancas, redes, bancos, cestas, barris, camas montadas ao ar livre.

— É muito maior do que parece. Eu mesma desenhei a disposição de tudo, fiquei muito boa nisso. – Jordan disse sob a surpresa de Newt. Ela tirou um papel amassado do bolso e mostrou a ele o desenho perfeito e detalhado do busto do rapaz. — Acho que vai ser a minha vez de fazer o Passeio com você, trolho.

Newt foi recebido com dezenas de aplausos, abraços e gritos de comemoração, até de quem não o conhecia oficialmente. Gally lhe entregou o copo com sua receita secreta e Andrômeda correu para dizer que ele não podia tomar aquilo tão cedo. Caçarola começou a tagarelar sobre como era a comida agora. Minho o mandava calar a boca e Harriet aparecia para tomar a atenção dele e deixar Newt se atualizar. O antigo Segundo em Comando não estava preparado para ver o amigo quase deitar por cima da garota ao beijá-la, e muito menos ver Teresa abraçada ao pescoço de Thomas. Kenan ficou empolgado em conhecer Newt finalmente e os dois ali deixaram claro que a amizade forte que se seguiria começara cedo. Louis (ou Angelo), Dante e os outros Clareanos não tardaram a começar uma conversa longa com Newt sobre o novo Sangradouro, a Floresta, a Rocha, os navios e Bergs que trouxeram os novos habitantes. Jorge e Brenda se juntaram ao círculo com outros conhecidos antigos que reencontraram. Vitor também se deu bem com Newt, mas Jordan não podia negar que ficava ansiosa com a perspectiva do segundo saber o que houvera entre os dois antigamente. Ela fez uma lista mental de todas as coisas que precisava contar a ele, sem excluir nada.

— Vai poder finalmente ser feliz, hein? – Kay cutucou Jordan com o cotovelo, sorrindo de orelha a orelha.

— Eu já era feliz. – ela olhou para o lado e viu Newt rindo com alguma bobagem que Roman dizia. — Agora estou completa.

A garota colocou o dedo indicador dentro da boca e se curvou para o chão como quem vai vomitar. As duas riram, e a Socorrista nunca se sentiu tão bem fazendo isso.

— Ela já começou a ter ciúme? – Andrômeda brincou ao se sentar com elas.

— Não vejo a hora de ela sair do meu pé. – Jordan disse com a mão ao lado da boca como se contasse um segredo.

— Assim que você me tornar professora. – Kay disse.

— Acho que não tão cedo mais. A função de Encarregada da Cura vai ficar desocupada agora. – a Criadora disse com um sorriso satisfeito para Jordan. — O que pretende fazer?

— Quer dizer como vamos curar o mundo? Não faço ideia. – Jordan admitiu.

— Vamos ter que ficar preparados. Vai ser uma loucura. Somos valiosos agora. – Kay afirmou.

— Vai ser ótimo. – Andrômeda disse.

— Vai, sim. – Jordan tinha certeza disso. Ela só sentia o cheiro de mar; cheiro de esperança.

Newt mal via o tempo passar na festa, apesar de se sentir extremamente exausto. Seu coração se enchia de uma alegria que não se lembrava de ter conhecido alguma vez. Ele se esqueceu do tempo que perdera, esqueceu do sofrimento que vivera, das assombrações que teria dali em diante. Durante aquela noite, pelo menos, ele sentia que as coisas estavam sendo colocadas em seu devido lugar, como todos eles mereciam.

Foi com esse pensamento que ele viu a figura de Elizabeth afastada do grupo na fogueira. Havia algumas pessoas longe, mas ela era a única sozinha. Esquivando-se da conversa entre os Clareanos, Newt caminhou até ela com seu passo manco. A garota estava imersa demais em seus devaneios para percebê-lo antes que ele a cumprimentasse. Ela conseguiu corresponder apenas com um sorriso alegre, seu estômago revirando-se em nervosismo. Newt se sentou ao seu lado e se ocupou em coçar o tornozelo com o fantasma de seu ferimento enquanto o observava. O desespero daquele momento no Labirinto o visitou, e o rapaz começou a se perguntar se ainda era o mesmo; como seria agora que não havia mais por que odiar tanto a vida, e achar que ela não vale a pena?

— Me surpreende que tenha conseguido fugir deles. Não vão sair do seu pé por umas semanas. – Elizabeth cortou o silêncio, incerta das palavras que usava para tentar começar um assunto.

Newt olhou para o grupo ao redor da fogueira.

— Eles estão diferentes. – comentou.

Elizabeth concordou com um aceno de cabeça.

— Somos livres agora. Podemos ser o que quiser, sem medo de... tudo aquilo. – ela emendou. — É quase como se nunca tivesse acontecido.

Newt relanceou para ela seriamente, deixando claro que estava longe de se sentir dessa forma. Lizzy não se abalou ao perceber e continuou a olhá-lo para dar-lhe convicção de cada palavra que dizia em tom tranquilizador.

— Jordan acha que somos o que somos hoje por causa daquelas pessoas. Minho vive dizendo o completo oposto. A Criadora acredita que o seu sangue fez a cura dar certo por causa das Variáveis. Cada um lida com isso do seu jeito e no seu tempo, e isso é problema deles. Alguns mantiveram os nomes que receberam, outros não. – ela deu de ombros, enfim conseguindo que ele olhasse em seus olhos.

— E o que você acha? – Newt sentiu seu coração mais leve ao ouvir suas palavras, mas sabia que podia se sentir melhor.

— Não teríamos sobrevivido no mundo sozinhos se o CRUEL não tivesse nos raptado, anos atrás. – ela estava familiarizada com essas palavras, ainda que ele não estivesse, e ficou feliz ao ver em seu rosto que ele se sentia mais confortado. Elizabeth teve esperança de que as coisas entre os dois pudessem voltar a ser como antes.

Ambos ficaram em silêncio, ruminando as próprias ideias. Newt tentava se lembrar de tê-la visto alguma vez na vida, repassando sua voz com o que ela dissera. Não funcionava.

— Elizabeth, não é? – ele disse, tomando uma decisão ao encará-la.

— Sim. – ela sabia que teriam que conhecer um ao outro de novo.

O antigo Segundo em Comando pigarreou e estendeu a mão. Elizabeth sorriu e a apertou, tão disposta a recomeçar quanto ele estava.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.