— Emma, não se esqueça do jantar de hoje à noite — diz minha chefe.

— E como eu poderia esquecer, Adele? — Não depois dela ter me lembrado desse fato a cada meio segundo, literalmente.

— Vamos ter uma entrevista exclusiva com Mark Dameron! — Ela praticamente canta. Ninguém pode dizer que minha chefe não é uma mulher entusiasmada.

Mark Dameron... não posso lembrar desse nome sem associar a outra pessoa...

— Ele é um dos pianistas contemporâneos mais importantes. O homem é um gênio, pena que se recusa a dar entrevistas. Foi uma grande sorte ele ter lido aquele artigo que você escreveu sobre a música e a literatura e gostado.

— Mas, agora tenho que ir, Victor Hugo não me perdoaria se eu o deixasse esperando — digo, pegando minhas coisas.

— Claro, claro. Só não se esqueça do jantar!

— Não esquecerei — prometo, apertando o botão do elevador.

O sol agradável da tarde de Vancouver me saúda assim que saio do pequeno prédio em que está localizado a sede da revista em que trabalho. Escrevo uma coluna sobre literatura semanal e vez ou outra, algum artigo mais longo. A revista é pequena, mas é muito boa e tem um público fiel.

Meu apartamento não fica muito longe do trabalho, basta uma pequena caminhada de uns vinte minutos para chegar até lá. Prefiro fazer o percurso a pé. Principalmente, quando estamos nos dias quentes, como o de hoje.

As ruas estão cheias de pessoas, em sua grande maioria muito animadas com o início do verão. A cidade parece estar envolta em uma grande bolha de felicidade, que também me contagia.

Chego em meu apartamento cansada do trabalho, mas de um cansaço bom. Daqueles gostosos de se ter.

Recolho minha correspondência, alguns panfletos e um cartão postal. Sei quem é o remetente sem precisar olhar. Jogo minhas coisas em cima do sofá mais próximo e caminho pelo meu pequeno lar enquanto leio o cartão:

“Emma, dessa vez vou ser rápida, estou atrasada para uma daquelas reuniões... Sinto muito a sua falta por aqui. Ultimamente não tenho tido muita diversão. Apenas reuniões chatas. Mas, já me acostumei com elas. Tenho novidades! Porém, vou deixar você curiosa porque sou uma garota má! De qualquer forma, você logo as saberá... E como você está? Victor Hugo tem te dado muito trabalho? Você já terminou o livro? Mal posso esperar para ter uma cópia. Quero uma cópia autografada!

P.S: Bash manda lembranças.

Tenho que ir mesmo, Bash já está praticamente me arrastando para aquela reunião.

Beijinhos, Charlie.”

A princesa caçula ainda continua quebrando regras. Teoricamente qualquer contato com os membros da realeza deveria ser cortado após meu divórcio. Nada de visitas, telefonemas, nem mesmo um mísero e-mail, nadinha. Porém, Charlie deu seu jeito. Vez ou outra recebo notícias suas. Ela conseguiu burlar as regras mandando a correspondência por meio de meus pais.

Meu divórcio, mesmo após seis anos, é ainda difícil acreditar que tudo aquilo aconteceu. Às vezes, fecho meus olhos e penso em minha história como um romance que li muito tempo atrás. No entanto, há lembranças tão vividas em minha mente que jamais poderei negar a autenticidade da coisa toda. Mesmo após seis anos, há noites em que acordo sentindo um suave aroma, como se ele ainda estivesse ao meu lado.

— Victor Hugo! — chamo.

Mas, ele não me responde.

Vou até o armário e o abro um sachê de carne.

— Ah, você apareceu, seu danado! — falo, olhando para meu gato que me observa interessado na porta da cozinha. — Você quer é comida, é? — Coloco o sachê no pote.

Acaricio a macia pelagem negra de Victor Hugo. Ele ronrona e depois dirige-se a comida.

Pego o celular. Talvez, eu deva ligar para meus pais, já faz alguns dias que não falo com eles. Meus pais continuam vivendo em nosso país. Eu precisei ir morar em outro país. Provavelmente, eu não nunca mais poderei morar lá...

No Canadá, posso ter uma vida normal, sem o lance de ser uma ex-princesa e a coisa toda. Nem uma única vez alguém me reconheceu nas ruas até agora. Mas, também acho que ninguém acreditaria que a garota de calça jeans, camiseta e all star, foi um dia a princesa herdeira de uma nação.

Após meu divórcio, vim para uma pequena e gelada cidade do Canadá, terminei os estudos, depois me mudei para Vancouver, onde trabalhei em alguns lugares até encontrar meu atual emprego. Nada de muito grandioso e excepcional aconteceu durante esses anos. E depois de tantos acontecimentos grandiosos e excepcionais em minha vida, me alegro em ter uma vida calma, em que a maior adrenalina do meu dia é acordar atrasada e correr para o trabalho.

Tomo um banho rápido, Adele realmente não me perdoará se não me apressar para o jantar.

Antes de sair, checo meus e-mails. Há um novo, abro imediatamente:

“Emma, segue em anexo o seu livro com algumas observações. Assim que lê-lo, entre em contato conosco. Talvez, já possamos mandá-lo para a última revisão em breve.”

Meu primeiro livro será lançando ainda esse ano! Mal posso acreditar que terei um livro publicado. Aliás, mal posso acreditar que agora consigo escrever novamente. Levou uns bons anos até eu finalmente voltar para a escrita. Foi um processo lento, nada fácil, diria que até doloroso muito vezes, doía não escrever, mas também doía quando eu enfrentava as teclas frias do computador. Quando finalmente, escrevi meu primeiro conto, chorei tanto que achei que ficaria desidratada.

Pego minhas coisas e vou caminhando até o pequeno restaurante coreano em que vamos nos encontrar com Mark Dameron. Não fica muito longe, além disso, é bom caminhar.

Avisto Adele em uma das mesas, com seu inseparável bloquinho de anotações. Ela acena para mim assim que me vê.

— Mark Dameron já está chegando, acabou de me enviar uma mensagem. Ah, ele disse que irá trazer seu novo aluno.

— Novo aluno? Pensei que ele não tinha alunos... Bem, não muitos. — Lembro-me de algo que Leon me contou a respeito. — Ele deve ser realmente muito bom para ser aceito por Mark Dameron, dizem que ele só aceita os melhores...

Olho para a porta, ansiosa para conhecer pessoalmente o herói de Leon. O que ele pensaria se eu contasse que estive cara a cara com o famoso Mark Dameron?

Espanto esses pensamentos com uma leve sacudida de cabeça.

Um senhor trajando um suéter marrom que lembra um daqueles professores de colégio, com um ar distinto, adentra. Adele acena para ele com muito entusiasmo. Ele sorri afavelmente e aproxima-se de nós.

— Somos da revista “Um lugar na arte”. Sou a Adele Turner.

— Ah, a jovem com quem eu andei falando esses dias. É um prazer conhecê-la, minha cara. — Ele aperta a mão de Adele.

— Esta é Emma Jones.

— Já ouvi falar muito de você. — Sorri, estendendo a mão para mim.

— Já? — falo, intrigada.

Ele assente e sorri.

Sentamos à mesa.

— Podemos fazer os pedidos? — indaga Adele, pegando o cardápio. — Ou devemos esperar por seu aluno?

— Ele já está vindo, só foi estacionar o carro. Ele é fantástico no piano. Em breve o vejo se tornando um grande pianista e compositor. Ah, lá está ele!

Me volto para a porta. Meus olhos se depararam com aqueles fascinantes olhos verdes. Por um segundo esqueço até mesmo de como se respira, nem mesmo sei se meu coração está batendo.

Ele realmente está aqui? Essa não é uma ilusão? Certamente é uma obra da minha imaginação.

Ele aproxima-se com passos firmes e decididos da mesa em que estamos.

Não. Ele não é uma ilusão.

— Estávamos falando de você — diz Mark.

— Ah, estavam? — Seus olhos voltam-se rapidamente para mim.

Não consigo acreditar que ele está realmente aqui.

— Leon, essas simpáticas jovens são da revista que quer fazer uma matéria sobre mim.

Leon sorri para nós.

Desvio meus olhos para o guardanapo, preciso de um tempo para processar a situação. Certo. Respiro. Tudo está bem. Bebo um grande gole de água.

— Emma?

— Sim? — Volto-me para Adele que me chama com certa insistência.

— Estava explicando para o senhor Dameron como funciona nossa revista.

— Ah, sim... — Olho para Mark, tentando me focar em outra coisa que não seja aquele belo par de olhos verdes. Lentamente, de um modo totalmente desajeitado começo a falar um pouco sobre a revista.

Agradeço por Adele ser uma tagarela e monopolizar boa parte da conversa. Também evito o máximo que posso olhar em certa direção. Fui atirada em um turbilhão de sentimentos, emoções e pensamentos. Não é todo dia que se encontra com seu ex-marido, não é mesmo?

Quando o jantar termina ainda não consegui sair do meu turbilhão. Depois de todos esses anos, pensei que as coisas seriam mais fáceis. Porém, ao vê-lo é como se eu regredisse no tempo e voltasse a ter dezoito anos.

Adele se oferece para servir de guia turística pelo bairro, já que Mark Dameron não o conhece. Ela me arrasta consigo, mas tenho pensamentos demais para ser uma boa companhia nesse instante, por isso me vejo afastada do grupo e os perco de vista.

— Então, não irá falar comigo? — A voz de Leon me pega totalmente desprevenida.

— O que você...

Leon sorri e se aproxima ainda mais de mim, invadindo meu espaço pessoal.

— Acompanho meu professor — diz com o jeito mais inocente do mundo, como se fosse algo completamente natural.

— Aluno de Mark Dameron? Você... em Vancouver... por favor, me dê uma explicação sobre tudo isso! E uma boa explicação. Sério, eu não estou entendo completamente nada.

Ele me lança um olhar divertido. Algumas coisas nunca irão mudar.

— Certo. Fui aceito como aluno de piano de Mark...

— Mas, sei lá, você é um príncipe, não há algo errado aí, não? Príncipes não podem ter uma carreira na música... ou qualquer carreira. E cadê seus guarda-costas? — falo, olhando ao redor.

— Você está certa. Realmente, um príncipe não pode ter uma carreira.

— E como você conseguiu isso? Andou subornando alguém? — digo, desconfiada.

Ele sorri suavemente.

— Eu não sou um príncipe.

— O quê? — Meu queixo quase se deslocada.

— Eu não sou um príncipe — repete calmamente.

Olho para ele, tentando processar suas palavras. Leon me retribui o olhar com uma expressão entre divertida e provocativa.

— Como assim?

— Renunciei a meu título, agora sou apenas um simples plebeu.

— E como eles permitiram que o príncipe herdeiro jogasse fora a coroa?

— Minha irmãzinha será uma ótima rainha.

Certo, é muita informação para um único dia. Meu cérebro trabalha tentando organizar a montanha de informações que me foi atirada.

— Vamos recapitular: você abdicou de seu título, agora, Charlie é a princesa herdeira, e você veio para Vancouver para estudar?

Leon assente.

— Sou literalmente um plebeu, com meu título se foi também minha fortuna. Agora sou apenas um cara comum, com um belo cabelo, bonito demais...

Acabo sorrindo sem querer de suas bobagens. Mas, ainda não consigo lidar direito com todas essas informações.

— Me mudei há poucos dias, meu apartamento fica a uma meia hora daqui... talvez, possamos ir até lá — sugere ele, sem desviar os olhos de mim.

— Ei, apressadinho, espera aí. Você me deve várias explicações e lembra do que combinamos? Se nos encontrássemos novamente, as coisas iriam ser diferentes...

Ele faz uma expressão engraçada, fingindo revolta.

— E tudo isso é muito súbito para mim! Você nem me avisou que estava em Vancouver... preciso de um tempo para assimilar tudo, sabe?

— Tudo bem. — Sorri, um sorriso completamente doce. — Primeiro, eu não te avisei porque não sabia seu endereço. Sei que Charlie envia cartões postais para você por meio de seus pais... a única coisa que sabia era que você estava em Vancouver. Foi muita sorte, meu professor ter lido aquele artigo e gostado, quando soube quem era a autora fiz de tudo para convencer meu professor que uma entrevista para sua revista seria algo realmente bom.

— E se você não tivesse me encontrado?

— Eu daria um jeito de encontrar você. Eu sempre irei encontrar você. — Sorri de um modo significativo. — Agora que essa parte está esclarecida, que tal irmos até meu apartamento para conversarmos melhor...

— Conversar melhor? — Lanço um olhar duvidoso.

— Claro. Lá estaremos mais confortáveis, sabe? Temos muitas coisas para falar... questões para serem esclarecidas... — Há um leve tom sugestivo em sua voz.

— Bem... — Olho no fundo de seus olhos verdes hipnotizantes. Sorrio. — Não costumo ir para apartamentos de estranhos...

— Estranhos, é? — diz ele, divertido.

— Lembra do nosso trato, se nos encontrássemos novamente seriamos como completos desconhecidos... um novo começo?

— Ok, ok. — Faz sinal de rendição.

Ele estende a mão para mim.

— Prazer, meu nome é Leon, sou um pianista iniciante.

— Emma Jones, uma escritora iniciante. — Aperto a mão dele, que é tão quente e segura quanto a mão das minhas recordações.

Sorriamos.

Como essa história vai acabar? Não sei. Às vezes, é bom não saber o que irá acontecer em seguida.

Sou uma escritora e entre tantas histórias que crio também escrevo a minha. Às vezes, erro, às vezes, desvio meu percurso, mas continuarei tentando escrevê-la. E a melhor parte de escrever minha história é poder recomeçar todos os dias.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.