Sobre Metal e Sangue

Sou promovida a criadora de saídas,sem merecimento


Não vi Rhes no dia seguinte. Talvez tivesse mesmo passado dos limites e ele me odiasse profundamente. Tentei afastar aquele pensamento quando olhei para Adele, como me ordenava chamá-la agora. A senhora já se mostrava melhor, ainda que seu braço ainda incomodasse. Elinor parecia fazer um trabalho bom. A pobre enfermeira passava todo o tempo zanzando entre os leitos da cabine, tentando manter todos no melhor humor possível.

– Como se todos já não tentassem ver algo de bom nessa situação – falou Adele enquanto a observava – É uma boa moça e se esforça bastante. Lembra-se daquele homem que perdeu a filha? Aquele que falou com você nos primeiros dias. – acrescentou rapidamente.

– Sim. – falei com sinceridade. Aquele olhar desesperado ainda se fincaria em minha mente por muito tempo.

– Pois bem. Elinor o leva para a cabine das crianças todos os dias – olhei e seu leito estava realmente desocupado, os lençóis cuidadosamente dobrados - Imaginei que talvez isso piorasse sua situação, por fazê-lo lembrar da filha – acrescentou Adele – mas aparentemente é a única coisa que o mantém são e o distrai um pouco.

– Você já sabe o que vai fazer quando chegarmos? – falei, porque queria deixar o assunto e a resposta de Adele me interessava muito. A velha senhora me encarou como se fosse uma completa estranha.

– O que vamos fazer? Ora, minha criança, novos jardins podem ser feitos em qualquer lugar, não é mesmo?

Não pude deixar de sorrir e prendi seus cabelos brancos atrás das orelhas.

– Isso se uma velha como eu ainda serve para alguma coisa.

Antes que pudesse responder um solavanco percorreu todo o transportador e me segurei na cama de Adele para não ser jogada no chão com força. A senhora exclamou alguma coisa, mas não pude ouvir porque todas as crianças da cabine seguinte gritavam descontroladas. Um novo tremor passou pelas paredes e segundos depois Rhes entrou correndo, seu rosto grave como nunca antes vira. Todos os outros robôs que vira na cabine de comando passaram em direção à última cabine e até meu amigo robô elefante não me lançou nenhum olhar de escárnio. Aquilo me perturbou mais que os solavancos em si. De alguma forma consegui entender algumas partes do que Rhes falou, tentando se sobressair sobre o caos:

– Estamos sendo atacados, fiquem aqui enquanto... Não se – e olhando para mim, acrescentou – Deidre fique aqui, é sério.

Balancei a cabeça de forma positiva e sua expressão suavizou. Deu as costas e disparou para o aposento seguinte. Tentei acalmar Adele e os outros, mas a verdade era que queria saber o que estava acontecendo e me perguntei se não havia um dispositivo ali que tornasse as paredes transparentes também. Não havia. Algo imenso pareceu colidir contra o transportador e amassou a parede de ferro. As crianças entraram correndo e se esconderam embaixo dos leitos, todas chorando desesperadamente. Os adultos não pareciam muito melhores. Disse a Adele que voltaria já e corri para a última cabine. Foi então que vi pela primeira vez o imenso fundo do transportador aberto, os raios solares iluminavam a luta que se seguia em minha frente. Via apenas vultos de saltadores colidindo, o que era bastante estranho já que os únicos que havia visto até aquele dia eram os que estavam sob o comando de Rhes e fazia pouco sentido que lutassem entre si. Bastou contá-los para ver que a realidade era bem diferente. Pelo menos seis saltadores a mais estavam desferindo golpes contra os robôs do nosso transportador e com um aperto no coração identifiquei Rhes entre eles. Mas ele não enfrentava um dos robôs gigantes cujo aço negro brilhava de encontro à luz do sol, não, Rhes parecia estar seriamente enfrentando uma mulher.

Era uma mulher bonita. Seu corpo forte estava coberto por um uniforme parecido com o de Rhes, mas não era cinzento como o dele, não, a dela era de um púrpuro tão escuro que se aproximava do preto, adornado com detalhes brancos. Em seu peito brilhavam o que pareciam ser diversas insígnias cravadas, que devido ao seu movimento ágil não pude identificar. A única coisa que pude ver claramente era a faixa branca que cobria seu braço esquerdo, e nela estavam bordadas as letras L.O.P. em dourado que para mim significavam tanto quanto as insígnias. A única coisa que sabia era que aquela mulher definitivamente não era humana, porque nenhum humano conseguiria desviar dos ataques de Rhes, ainda mais sem arma alguma a vista. De fato, seus lábios se curvavam em um sorriso a cada golpe de seu oponente.

– Vejo que lutas bem, soldado, quase bem demais. Por que não voltas para a capital? Receberemos-lhe de braços abertos, não como esses que você tenta proteger de forma patética. – Rhes a ignorava e fazia com que as lâminas cortassem o ar cada vez mais rápido. – Claro que antes você vai ser rebaixado ao seu devido lugar. O que dizes?

Rhes nada disse, no lugar disso cravou uma das lâminas em seu peito e antes que o sorriso da mulher desaparecesse acertou a lâmina com seu pé com toda sua força. O robô cambaleou alguns metros para trás, seu rosto já não mostrando uma expressão de divertimento. Puxou a lâmina de Rhes para fora de si e a empunhou, seu braço esquerdo se transformara em uma arma que num piscar de olhos disparou três vezes contra Rhes, não esperando o resultado e avançando contra ele de uma forma que fazia os movimentos do meu amigo parecer golpes desajeitados de uma criança. E isso foi tudo que vi de sua luta porque naquele momento um dos saltadores inimigos se aproximou do transportador e investiu contra ele. Seria partida em duas se o meu amigo robô elefante não entrasse na frente saído de algum lugar à minha direita e desviado momentaneamente a atenção da máquina. Sobre o ombro, gritou:

– O que você está esperando, humana estúpida? Saia daí, tire as outras pessoas e diga para que se espalhem o máximo que puderem, tentaremos cobrir sua fuga.

– Mas Rhes disse que era para-

– Eles mudaram os alvos! – rugiu, bloqueando um ataque do saltador com dificuldade. – O primeiro transportador está sendo atacado e este será o próximo! Vá!

Não precisava de nenhum estímulo a mais. Desapareci no transportador e tentei fazer com que as pessoas o deixassem sem passarem por cima uma das outras, o que não era nada fácil. As pessoas machucadas tinham que ser amparadas, as crianças tinham que ficar juntas para não se perderem no tumulto. O transportador estava a poucos metros de um declive acentuado, deixando apenas um lado para onde as pessoas poderiam correr. E era justamente nesse lado que saltadores colidiam uns contra os outros e armas eram disparadas a cada momento. Pensei que não teríamos a mínima chance, mas assim que as pessoas surgiram do lado de fora, os robôs do transportador formaram um círculo protetor ao redor delas que parecia se segurar. Estava a vinte passos do transportador quando me dei conta que algo faltava, alguém. Adele não estava entre as pessoas que deixaram o transportador correndo e me virei para ter a visão de um saltador inimigo que tentava tombá-lo monte abaixo. Tentei localizá-la no meio do tumulto, em vão. Olhei para a figura enorme que se chocava contra o transportador e corri em sua direção.

– Deidre! – ouvi Rhes em algum ponto nas minhas costas, sua voz saia abafada pelos sons de aço colidindo. – Deidre, não!

O saltador pareceu não notar minha aproximação até que eu estivesse dentro da cabine. Com um som metálico projetou seu braço para dentro, me errando por menos de um palmo. Identifiquei o dispositivo que deveria selar o fundo do transportador e o acionei, com um estalo as paredes mostraram tudo que se passava lá fora. Praguejei identificando o dispositivo correto quase no final da cabine, enquanto o saltador tentava mais uma vez me acertar. Avancei em sua direção imaginando como seria a experiência de ser desmembrado por uma máquina, mas de algum modo o saltador parecia ocupado do lado de fora e alcancei o dispositivo, meu punho o acionando com força. As portas se fecharam quase esmagando um dos braços do saltador. Certo, preciso dizer aqui que muitas vezes não faço coisas lá muito sábias. Mas fechar a única saída de um transportador prestes a ser despejado morro abaixo foi a pior delas. Não parei para mensurar o tamanho da dificuldade que havia criado, no lugar disso entrei na cabine seguinte procurando por Adele.

A encontrei rapidamente e logo soube porque não havia saído. Um armário de alumínio recheado de remédios e outros equipamentos tombara, prendendo-a da cintura para baixo contra a parede. Quando a vi estava de cabeça abaixada e meu estômago revirou.

– Adele?

– Mas que menina teimosa você é, Deidre – respondeu baixinho, tentando levantar a cabeça um pouco. – Pra você ver como são as coisas: simplesmente jogaram isso em cima de mim e nenhum deles me ajudou a retirá-lo.

– Oh, Adele – falei, os olhos queimando ao me aproximar e ver sua situação. Nunca conseguiria tirar aquilo de cima dela e mesmo assim falhar em fazê-lo não passava pela minha cabeça.

– Primeiro vou achar um jeito de criar uma saída e depois vou chamar Rhes para ajudar a tirá-la daqui.

– Criar uma saída?- afirmei com a cabeça, imaginando o tamanho do estrago da idéia que tive.

Corri até a cabine de comando, e lá revirei um baú que antes do ataque estava lacrado, os robôs deviam ter levado tudo que podiam carregar de lá e mesmo assim o que procurava ainda estava no fundo. Já o observara nas outras vezes, o enorme baú que deveria conter equipamentos necessários em uma missão deste tipo. As armas que continha tinham sido retiradas e muitos dispositivos explosivos também. Mas no fundo, uma pequena bomba ainda jazia entre outros equipamentos dispensados e ela era tudo que precisava. A segurei na mão direita e a encarei, imaginando se a pequena esfera negra poderia causar o estrago que precisava.

Foi então que o mundo virou e meu corpo foi jogado contra a parede. Agradecendo pelo baú não ter caído sobre minha cabeça, tentei me levantar e o consegui, olhando pelas janelas da cabine que agora mostravam o céu azul logo acima da minha cabeça. O saltador havia conseguido parte de seu plano e agora o transportador havia tombado de lado e pela janela que se situava em frente aos assentos pude ver que apenas uma grande pedra impedia nossa descida nada agradável morro abaixo. Suspirei e logo depois Adele me trouxe de volta a realidade. Seus gemidos de dor chegaram aos meus ouvidos ao mesmo tempo em que outro solavanco percorreu o transportador, me jogando nos joelhos. Levantei e corri até ela o mais rápido que pude, o que era difícil porque todas as camas agora jaziam umas sobre as outras, tornando minha inicial corrida uma escalada até a cabine onde Adele estava. O esforço do saltador a havia livrado do armário, a parte ruim é que parecia ter sido atingida por uma cama e um corte profundo em sua cabeça empapava seu cabelo de sangue e seus braços estavam cobertos de manchas roxas. Quando me viu tentou sorrir e imagino até hoje como ela conseguiu sorrir sabendo que seu corpo se quebrava lentamente. Quando viu a pequena bomba em minhas mãos nada disse, o que talvez fosse mais um indicativo de seu estado precário. Passei por ela e disse que me esperasse e de jeito nenhum entrasse na última cabine. Lá coloquei a bomba encostada em uma das paredes já amassadas pelos contínuos esforços do saltador e a acionei esperando ser pulverizada a qualquer momento: no lugar disso a bomba negra começou a brilhar, mostrando um contador que decrescia rapidamente. Com um alívio descobri que poderia recorrer ao plano B e corri até a cabine de Adele, rezando para que o manual de Rhes estivesse certo. Fechei a porta com toda minha força e depois joguei todo meu peso contra ela. Adele abria a boca para perguntar por que raios estava agindo desse jeito, mas antes que pudesse toda a cabine atrás de nós foi sacudida e uma pressão enorme jogou meu corpo para frente. No lugar de uma luz branca vi a porta da última cabine chamuscada e escancarada, mas aparentemente seus danos não iam além disso. Adele me olhava como se fosse uma suicida em potencial e foi minha vez de sorrir amarelo. O “Manual dos transportadores WS-35: conhecimentos sobre funcionamento e reparos” se gabava pelos WS-35 serem os únicos transportadores cujas portas eram revestidas de um material capaz de suportar danos imensos e mesmo que uma cabine fosse perdida o restante se manteria razoavelmente em segurança, não excedendo o potencial máximo de resistência. Avancei para saber se o potencial máximo de resistência não tornava minha tentativa inútil, mas com um alívio vi que a parede mais próxima da explosão ostentava uma passagem pouco maior que dois metros rodeados de metal retorcido. Adele se arrastou até o meu lado e sorriu.

– Você é a melhor criadora de saídas que já vi.

– Obrigada - falei sorrido – Vamos ter que nos agachar para passar, tudo bem para você?

Adele olhou para seu braço quebrado, mas afirmou que sim. Agachei-me para passar, achando que poderia puxar Adele para fora. Foi então que tudo deu errado. Primeiro o saltador jogou todo o peso de seu corpo contra o transportador, fazendo que com que uma parte dele (a nossa) deslizasse sobre a pedra. Minhas mãos se fecharam sobre o metal retorcido e fiquei pendurada, Adele por sua vez caiu no fundo do transportador, assim como todos os objetos que estavam na cabine.

– Não! - gritei, tentando olhar sobre os ombros e ver algum sinal dela – Adele! Adele!

Um murmúrio ecoou do fundo do transportador, metros abaixo de mim. Segurei o choro para tentar me manter presa, mas um caroço tapava minha garganta.

– Jardins podem ser feitos em todo lugar, Deidre, nunca esqueça. – ecoou sua voz da escuridão – Maldito armário, maldita cama... Ah, como sou velha para isso tudo.

Escondi o rosto no meu braço e tentei superar o ímpeto de me soltar, o metal retorcido cortava profundamente minha pele. Mas então um estampido fez-se ouvir e forçando meu peso para cima pude ver que o saltador que tentava nos jogar no declive tombava no chão, um buraco se estendia por seu tórax e ainda fumegava. Outros barulhos semelhantes explodiram ao redor e os saltadores inimigos pareciam levar fins semelhantes, pude ver também que figuras de outras pessoas surgiam no meio da batalha. Mas adiante disso não fui porque a mulher robô ainda estava ativa e Rhes de alguma forma havia conseguido danificá-la seriamente, mas quando nossos olhares se cruzaram ela sorriu como da primeira vez em que a vira.

– Então é você? – tremi quando vi que falava comigo. Já ela, num movimento rápido para alguém tão lesionado, fincou uma lâmina na perna de Rhes, que parecia completamente atônito por me ver viva. Mas a mulher parecia decidida a promover uma mudança neste fato e correu em minha direção. Tentei puxar meu corpo para fora do transportador, mas com uma pontada de dor fui lembrada que não passara intacta pelos processos explosivos anteriores. A mulher, em vez de vir direto a mim, saltou sobre o transportador e segundos depois com um rangido metálico este começou a se mover: de alguma forma soltara a pedra que o sustentava. De relance vi o rosto de Rhes completamente desesperado: ele tentou correr e me alcançar, mas sua perna direita falhou e o fez cair de forma pesada no chão. Um grito abafado saiu pela minha garganta enquanto o transportador começava a ganhar velocidade. Fechei os olhos e me preparava para ser arremessada para o interior da cabine quando duas mãos seguraram meu braço firmemente e me puxaram para cima.