Meu corpo rolou e atingiu o chão com força, fazendo todos meus ferimentos me lembrarem de sua dolorosa existência. Abri os olhos, confusa. Estava no piso sujo entre a minha beliche e a próxima e não na entrada da base segura, sendo recebida por mísseis. Meu coração ainda batia descontrolado. As luzes de emergência piscaram fracas no teto do transportador.


– Deidre? – a voz sonolenta de Armand me alcançou. Dirigi o olhar para a beliche ao lado da minha, mas só encontrei Aydee de bruços, o rosto enterrado no travesseiro e os pés escuros pendendo pra fora da cama como se houvesse desmaiado sobre o colchão. Como era de esperar, Armand havia se preocupado em tirar suas botas.


– Aqui em cima – ele sussurrou. Vi os cabelos bagunçados surgindo da cama superior enquanto ele estreitava os olhos na minha direção. – Você está bem?


– Sim – puxei o lençol áspero para mais perto do meu corpo - Foi só um... Um...


– Um pesadelo. – Armand completou, de forma gentil. Afastou as cobertas, desceu as escadas com cuidado e sentou-se na beirada de sua cama que Aydee ainda não ocupava. Houve um momento de silêncio enquanto tateava à procura de seus óculos. – Zo também os tem às vezes.


Ergui minhas sobrancelhas em resposta. Não imaginava Enzo como o tipo de pessoa que sofria de pesadelos... por outro lado, a vida dentro do Parlamento não parecia ter lhe rendido as lembranças mais agradáveis, se nossa conversa indicava algo.


– Damien ficou preso nos escombros da escola durante um bombardeio. – explicou baixinho - Estava tentando proteger as crianças. Não era uma área de risco, era uma das poucas escolas ainda funcionando. Nós quase o perdemos.


– Eu sinto muito. – comentei, entendendo a expressão no rosto de Enzo todas as vezes em que Damien e Armand se colocavam em risco. - Deve ter sido horrível.
Armand sorriu, me assegurando de que estava tudo bem.


– Mas esqueça isso... Você não quer falar sobre o seu sonho?


Olhei-o sem saber o que dizer. Será que ele sabia que alcançar o nosso destino não seria tão fácil quanto parecia? Talvez ele tivesse ouvido Enzo comentar alguma coisa. Ou talvez ele simplesmente imaginasse. Armand não era nenhum tolo e tinha crescido na Capital, diferente de mim que passara anos morando com uma tia que na verdade era um robô em uma vila de refugiados no meio do deserto. Mas a verdade é que eu me sentia sozinha e desamparada. Queria derramar meus problemas sobre Armand e esperar suas palavras de consolo. Queria que ele ou alguém me dissesse o que eu tinha que fazer, porque a minha própria voz já não soava convincente. Mas o quão responsável seria isso? Antes que eu precisasse responder a porta da cabine deslizou para o lado, dando passagem a 21-S. As luzes da cabine se acenderam e seu olhar caiu sobre mim, me lembrando que eu ainda estava ajoelhada no chão, envolta em lençóis. Me levantei desajeitadamente tentando pôr os fios de cabelo no lugar.


– Já é dia? – balbuciei, me esforçando o máximo para parecer uma comandante e não uma garotinha de 14 anos.


Aydee resmungou alguma coisa ao se virar na cama.


– Encontramos um lugar seguro para parar e fazer a troca dos transportadores – 21-S anunciou. Em seguida aproximou o braço dos lábios e sua voz pareceu ecoar por toda a cabine – Por favor, dirijam-se ao exterior para receber sua porção diária de ração. Por favor, dirijam-se ao exterior para receber sua porção diária de ração.
Sem olhar para mim, soltou uma esfera prateada flutuante perto da porta e saiu em silêncio. Me aproximei do visor brilhante no círculo da coisinha e um engradado azul se projetou sobre meu corpo, me fazendo dar um salto para trás. Após um bip a esfera falou “Escaneamento completo. Alvo liberado.” com a voz metálica mais adorável que eu já ouvira.


– Por que estão nos escaneando, Deidre? – a voz de Aydee me pegou de surpresa. Me virei para vê-la me olhando com um vinco entre as sobrancelhas e o queixo escorado no ombro de Armand. Ainda conseguia parecer curioso apesar do rubor em suas bochechas denunciar que estava muito mais consciente da proximidade física de Aydee do que do pequeno robô flutuante.


– Pra nossa segurança – respondi rápido demais ao perceber Cecile e Fadwa saindo de suas camas. Aquele não era o momento nem o lugar para essa conversa.


– Quer dizer que acham que existe um impostor entre nós? – seus olhos escuros se estreitaram.


Respirei fundo e deixei meus ombros caírem.


– É só um procedimento, Dee. Não há nada que eu possa fazer. Protocolos de conduta e tal. Você sabe como são os robôs, já teve que lidar com eles. – menti, tentando parecer o mais casual possível.


– Eu sei bem. – bocejou - Aquele 74-S é uma dor no rabo, garota.


Me concentrei em não parecer aliviada demais. Se Aydee e Armand desconfiavam de algo ao menos tinham tido o bom senso de guardar os comentários para quando ninguém mais pudesse ouvir. Melhor assim. Preferia que não tivessem que se preocupar com nada além de quando parariam com aquela enrolação e se declarariam um pro outro, mas eles saberiam lidar com aquilo.


“Por favor, dirijam-se ao exterior para receber sua porção diária de ração.” A voz de 21-S saiu das paredes.


Caminhei para fora do transportador para encontrar Robert e Ernest ajudando na distribuição das latas de comida. Alguém parecia ter convencido 43-S a liberar uma das caixas de frutas, porque um grupo de crianças passou com maçãs vermelhas nas mãos. Estavam tão vermelhas e bonitas como as maçãs que eu vira pela última vez na minha infância, em algum jantar depois de meu pai receber uma promoção. Conseguia me lembrar com clareza dele entrando na cozinha com um sorriso de ponta a ponta e a sacola transparente erguida como um troféu. Naquele dia tivemos torta de maçã e eu achava que ainda podia sentir seu gosto em minha boca.


– Deidre – a voz cristalina de Fadwa me tirou do meu devaneio. A pequena Salimah brincava com uma navezinha velha em seus braços.


– Quer uma maçã? – me estendeu a fruta – Não havia muitas e o 43-S não parecia feliz de nos deixar pegá-las de qualquer jeito. – um vinco surgiu entre suas sobrancelhas bem desenhadas, mas logo virou-se para mim e a expressão se desmanchou em um sorriso - Mas eu entendo seus motivos, não estamos em condição de esbanjar, não é? De qualquer modo, vi você olhando as crianças e pensei que quisesse uma.


Não pude deixar de sorrir.


– Obrigada, Fadwa, mas é sua. Eu posso viver com ervilhas por mais um dia.


– Não, não, eu insisto. – pôs a maçã em minhas mãos e fechou meus dedos em torno dela - Ao menos a divida comigo, sim?


Com relutância puxei a minha pequena faca de bolso e dividi a fruta em duas. A lâmina deslizou com facilidade e um pouco de sumo escorreu em meus dedos. Lhe entreguei uma metade e ela sorriu, satisfeita. Mordi minha metade com ansiedade: estava madura, doce. A textura e o sabor perfeito. Lembrei de Erwan naquela barraca velha me oferecendo uma maçã um bocado murcha. De Erwan deitado ao meu lado no teto do transportador em alguma noite fria. Achei que ele gostaria de comer uma maçã decente alguma vez. Mas isso dependia de encontrá-lo primeiro e nossos caminhos eram tão opostos nesse momento como o calor e o frio. Deus. O que eu menos precisava nesse momento era de devaneios adolescentes sobre um ruivo idiota e suas sardas igualmente idiotas. Um grupo de crianças passou novamente por nós, gritando e rindo em torno de um longo pedaço de tecido desbotado. Salimah esticou os bracinhos morenos em sua direção, rindo.


– É melhor eu ir. Tenha um bom dia, Deidre. – depositou um beijo no topo de minha cabeça antes de se afastar.


Terminei de comer e, percebendo que todos pareciam estar ali fora mas não havia sinal de Anselme, resolvi ir atrás do velhinho. No caminho para o interior do transporte passei por 21-S, mas ela respondeu ao meu olhar esperançoso com um meneio negativo. O traidor ainda permanecia bem escondido. Tentei não deixar a torrente de decepção me derrubar no caminho até a cabine que Anselme usava de estação para seus rádios e parafernálias eletrônicas. A porta deslizou pro lado com a minha aproximação, mas para minha surpresa o velho não estava lá. Em meio aos bipes e chiados dos aparelhos distribuídos por toda a superfície possível, uma pequena filmadora emitia um holograma. Os pixels que faltavam aqui e ali e o ligeiro tremor da imagem denunciavam sua idade. A imagem mostrava dois jovens: um rapaz e uma moça. Ambos loiros, de olhos azuis. Pareciam tentar descrever o avanço de um projeto, mas se interrompiam a todo tempo com alfinetadas e reclamações. O jovem era claramente Anselme. Não só seus olhos o denunciavam, mas principalmente a forma como repetia para a garota manusear as peças com cuidado. A moça era mais alta e tinha uma postura de líder. Uma trança caia sobre seus ombros e ela sorria observando Anselme quando ele não estava olhando.


– Podia esperar muitas coisas de você, Deidre, mas não enxerimento. – a voz do velhinho veio de trás de mim.


Me virei tão rápido que um aparelho de rádio balançou e escorregou de sobre a mesa, em direção a uma queda fatal. Anselme se moveu mais rápido do que eu julgava ser fisicamente possível para alguém daquela idade e aparou o aparelho com a delicadeza de uma mãe.


– Oh meu deus, tome cuidado, menina! – colocou o rádio cuidadosamente sobre a mesa e procedeu verificando cada centímetro de metal e plástico à procura de um mínino arranhão. – Você sabe onde eu poderia encontrar outro desses? Em lugar nenhum do mundo, eu lhe digo. Nenhum! E funciona tão perfeitamente quanto qualquer dessas latas modernas que se tem por aí... Não que eu as esteja desprezando, veja bem, mas um velho faz o que tem que fazer com o que tem em mãos e-


– Desculpe, Anselme. – me apressei, rezando para que aquilo não se tornasse um discurso sobre o que ele era forçado a fazer com a restrição de material e tecnologia que tínhamos – Você não estava lá fora, a porta estava aberta e eu achei que... Desculpe.


Finalmente interrompeu sua fala e quando seus olhos azuis me encararam sua expressão suavizou-se.


– Está tudo bem – voltou-se para o holograma sobre a mesa. Encarou a imagem em silêncio antes de me olhar. – É minha irmã mais velha. Delphine. Diria que é um gênio e você acharia que estou me gabando, mas ainda assim ela o é. Fez parte do Projeto Asimov, e se você prestou atenção nas suas aulas vai lembrar que foram os responsáveis pela criação dos primeiros R.E.S. – deslizou o dedo sobre a tela e a imagem sumiu.


– Onde ela está agora? – perguntei mesmo sabendo que não ia gostar da resposta. Seu sorriso conformado me partiu o coração.


– Provavelmente morta. Velhos não são feitos para a guerra, não é? – deu de ombros - Mesmo assim cá estou e a doce Delphine sempre foi mais resistente que eu. Talvez, se os deuses forem bons e eu sobreviver a esta bagunça, quando tudo terminar eu possa procurá-la.


– Eu sinto muito, Anselme. – segurei suas mãos enrugadas entre as minhas - Mas você já passou o pior. Nós já passamos. Vamos chegar logo à base segura e tudo vai se resolver. Pelo menos para nós.


Ele riu baixinho e fez um cafuné na minha cabeça.


– Você gostaria de ter ido com Berthe e os outros, não era?


Sorri, tentando manter minha postura de comandante.


– Primeiro tenho uma dívida com Rhes, com vocês. Depois vem minhas vontades.
Anselme me puxou para um abraço, suspirando fundo. Ergueu meu rosto para eu o olhasse.


– Lembre-se de uma coisa, menina: estamos em guerra. Faça o que tem que fazer para ser feliz. Há muito pouco tempo e não sabemos se vamos durar até a próxima hora.


– Mas-


Ele me interrompeu pondo o dedo sobre meus lábios.


– Eu sei. Só peço que se lembre disso.


Assenti e ele me liberou.


– Agora me conte, - afastou o tufo de cabelos brancos que insistiam em cair sobre sua testa - como seguiram os escaneamentos?


– Em nada – desviei o olhar para o amontoado de monitores na parede oposta – Vamos ter que dividir os passageiros, para garantir a segurança do pessoal de Arras. Quero que você vá com eles.


O silêncio de Anselme fez com que eu fosse obrigada a olhá-lo e o velho explodiu em uma gargalhada.


– Sua criança tola! E se eu for o traidor? Você acha que não sou capaz por causa dos meus cabelos brancos? – me desafiou pondo as mãos nos quadris.


– Não é isso – me apressei em dizer - É que seremos um alvo e...


– Eu vim até aqui, mocinha! – me interrompeu, o dedo em riste - A senhorita não ouse tentar me deixar de fora agora que as coisas estão perto de acabar. Me passe essa lata de ervilhas e dê o fora.


Antes que eu pudesse reagir ele havia arrancado a lata das minhas mãos e voltado a atenção pros seus monitores.


– Vá jogar xadrez com Armand antes que eu envie um vírus para aquele “Parabéns, você alcançou um novo recorde” dele. Quero que você vá com eles, ora essa...


Fiquei parada esperando que ele resolvesse me dar atenção, mas Anselme não ia voltar atrás e eu não poderia culpá-lo. Quando a fisgada na minha coxa decidiu me lembrar que eu ainda não podia ficar de pé por tanto tempo manquei para fora do veículo com a dignidade que me restava.

Do lado de fora a movimentação era intensa entre os transportadores. Uma parte dos mantimentos estava sendo levada para o transportador que seguiria viagem comigo e as famílias de Arras estavam sendo relocadas todas para o novo transportador que havíamos resgatado. Os robôs eram poucos e havia famílias demais para lidar, com crianças correndo e curiosos questionando porque um transportador inteiro ia seguir com tão poucas pessoas. 74-S estava exercendo sua simpatia, dizendo que tínhamos que partir logo e que não havia tempo para perguntas desimportantes. Eu realmente queria poder mandar Anselme, Armand e Aydee junto com os outros, mas que motivo eu daria pra isso? Colocaria a mão no fogo pelos três, mas não podia apontar meu dedo aos outros. Era difícil encarar aqueles rostos e pensar que entre eles havia um traidor. Que ali estava o rosto que eu poderia, de certa forma, culpar pela morte de Rhes. Fadwa, Ernest, Cecile, Enzo e Damien. Eu não sabia nem por onde começar. Algo no fundo do meu estômago me dizia que aquilo não ia terminar bem. 21-S se aproximou de mim silenciosamente, como sempre.


– Em alguns minutos estaremos prontos para partir. Preciso que informe a divisão da tripulação.


– Você e 63-S seguem com as famílias e os mantimentos. Direção manual. Ele sabe as coordenadas. Faça-os alcançar e entrar na base a qualquer custo. Anselme vai cortar as comunicações, não podemos correr o risco de delatar a posição de vocês se formos pegos.


– Entendido – assentiu e virou-se para partir, mas antes hesitou - Boa sorte, Deidre.


– Boa sorte...


– Dominique – ela prestou continência e partiu.


–-


Estava me esforçando para ler Rouen, uma História, um favorito da coleção de Damien, quando a força do impacto me fez ser jogada sobre a mesa de controles. Antes que conseguisse me levantar veio o estrondo e projeções do transportador começaram a piscar em vermelho da minha frente. O radar apitava na mesa ao lado, apontando triângulos vermelhos disparando em nossa direção. O traidor havia atacado. Me pus de pé, ignorando a maneira violenta com a qual minha perna latejava. A porta da cabine deslizou mostrando Anselme e 74-S tentando passar pelo vão ao mesmo tempo. O robô se esquivou com destreza, dirigindo-se aos monitores em passos rígidos, sem me direcionar um olhar.


– Deidre! – Anselme exclamou, gesticulando freneticamente – São três naves-tanque, eles...


– Abriram o último comboio com um explosivo guiado. – 74-S completou, movimentando os dedos no ar ao fazer aumentar ou diminuir novos esquemas do transportador. - Precisamos proteger a abertura e despistá-los. Os escudos do transportador podem agüentar alguma coisa, mas não vão resistir a três tanques se ficarmos parados.


– Anselme, você vai fazer isso. – decidi – Quero que os deixe pra trás, mas não se aproxime da base secreta.


O velhinho endireitou as costas, prestando continência e avançando para a cadeira diante dos controles. 74-S virou-se para mim, esperando sua ordem. Peguei o máximo de pistolas que podia enfiar no meu cinto.


– Nós vamos proteger a abertura.


Atravessei os comboios com 74-S no meu encalço. As luzes de emergência piscavam vermelhas sobre nossas cabeças e uma voz insistente nos avisava que o casco do último comboio havia sido danificado. Procurei Enzo entre os rostos apreensivos que se viraram em minha direção quando alcançamos o dormitório.


– Preciso de você na cabine de comando.


Ele assentiu em silêncio. Puxei as pistolas do meu cinto e as estendi diante de mim.


– Estamos sendo atacados. Se queremos chegar ao nosso destino, vou precisar de toda ajuda que puderem oferecer.


Damien, Armand e Aydee deram um passo à frente. Cecile pareceu hesitar, então deu um beijo na cabeça do filho e o entregou a Fadwa, se postando diante de mim.


– Não sejam descuidados – Enzo pediu, depositando um beijo na cabeça de Armand e em seguida nos lábios de seu marido.


74-S destravou a última porta e nos deparamos com o comboio atacado. Danificado era apelido. As paredes de metal na ponta extrema do transportados estavam abertas de cima abaixo, formando uma boca rodeada de dentes tortos e enegrecidos. Metade das caixas do depósito haviam voado pela abertura, e o resto eram pedaços semi-destruídos de metal. Havia comida e pílulas e matérias de reparos esparramados no piso. Flutuando a areia do deserto além da abertura eu podia ver uma nave-tanque voando em nossa direção. Aydee, Damien e 74-S dispararam para trás de três caixotes maiores enquanto eu, Armand e Cecille usamos uma pilha de metal comprimido como cobertura. O uivo do vento contra as farpas de metal era engolido pelo zumbido das naves se aproximando.


Uma delas chegou perto o suficiente e um robô soldado pulou para dentro do espaço, disparando tiros violentos contra nós. Senti as caixas sacolejarem contra meu corpo. Meus dedos estavam frios. O intervalo para recarga veio, mas enquanto eu ajustava a pistola nas minhas mãos suadas, Aydee deslizou para cima disparando cinco tiros antes que eu pudesse contar até dez. O robô tropeçou para trás e Damien aproveitou a chance para um tiro de projétil que o vez voar pela abertura. Os dois trocaram um high-five. Levantei a cabeça para enxergar o que acontecia do outro lado, mas disparos vieram em minha direção fazendo um tufo do meu cabelo voar. Mais dois soldados haviam desembarcado. 74-S e Cecille foram os primeiros a encontrar uma brecha entre seus disparos, mas um tiro certeiro veio na mão da mulher, fazendo sua arma voar longe. Aproveitei a chance e me ergui sobre as caixas, mirando no torso do robô mais próximo. Os disparos passaram longe. Mas Armand parecia estar indo melhor em suas aulas, pois um tiro seu fez um dos robôs cair sobre a própria perna. Fomos jogados todos para o lado em uma virada brusca que o transportador fez para o interior de uma fresta de um rochedo e uma das naves foi de encontro à parede, explodindo em uma chuva de faíscas e pedaços metálicos. A segunda perdeu um planador e saiu quicando para trás na areia.


– Respeitem meus cabelos brancos, seus montes de lata! – Anselme riu através do comunicador. Aydee não esperou se levantar para finalizar os dois robôs caídos, assoprando a fumaça que saía de suas pistolas de maneira dramática em seguida.


– Quatro a zero! É melhor vocês se apressarem, time Chewbacca!


Revirei os olhos rindo. Armand arrancava um pedaço de sua camisa para enfaixar a mão machucada de Cecille quando um solavanco violento nos empurrou para trás. O barulho de metal se rasgando fez meus ouvidos doerem. Quando abri os olhos, uma penumbra cobria o comboio: a última das naves-tanque havia se atirado contra o transportador, se encaixando na abertura feita pelo explosivo.


Um LOP saltou lá de dentro, disparando um tiro de projétil contra nós. O impactos fez um dos caixotes se deslocar para trás, jogando Aydee contra a parede.


– AYDEE! – Armand gritou ao meu lado.


74-S bloqueou o fogo do inimigo enquanto Damien puxava a garota para trás das caixas restantes. Quando a envolveu em um braço vi sangue manchar sua camisa branca. Prendi a respiração. Não conseguia ouvir o que diziam sob o som dos disparos e o ronco das turbinas da nave. Armand preparou um tiro de projétil e subiu no momento e o que o LOP abria fogo novamente contra 74-S. A bala acertou em cheio, fazendo a cabeça do robô se deformar e seu corpo cair no chão. A porta atrás de nós deslizou, deixando passar um Ernest atormentado.


– O que houve? Eu ouvi os –


– Saia daqui! – 74-S gritou o puxando pra baixo no momento em que mais dois LOPs disparava contra nós. O velho puxou a menina para o colo, mas Aydee permanecia desacordada.


– Por favor, Dee. – murmurei. Subi disparando mais uma vez, mas meus tiros estavam fazendo um estrago maior no teto do que em qualquer coisa. Aquilo não era pra mim. Puxei as esferas de curto do bolso. Damien disparou mais um projétil, o estrondo acompanhando o braço do LOP que voou para trás. Atirei a esfera, que acertou em cheio, deixando uma onda azul de faíscas percorrer o corpo da máquina. Ela estremeceu e caiu desacordada no chão. O LOP que restava aproveitou o descuido para fazer voar tiros em minha direção e a queimadura na minha bochecha me fez me encolher atrás do metal. Olhei pro lado e vi que Aydee havia acordado. De repente conseguia respirar melhor. Estava ofegante, mas parecia boa o suficiente para afastar as mãos do pai e preparar as pistolas para uma nova rodada. Mas o projétil de Damien foi mais rápido, jogando o LOP restante para trás, o fazendo colidir contra o vidro da nave-tanque e cair entre seus painéis. O dano o havia incapacitado, mas o robô ainda se movia. Apertei a esfera entre os dedos, imaginando se conseguiria acertar àquela distância, mas o LOP não estava mais focado em nós. Deslizou sua mão sobre o botões luminosos e a voz metálica feminina nos fez entender:
“Protocolo de auto-destruição iniciado. Tempo estimado: 60 segundos.”


O corpo do LOP cambaleou e caiu sem vida diante do painel de controle. Seus olhos vazios pareciam satisfeitos, afinal, explodiríamos todos juntos. Damien mandou um tiro de projétil contra as placas de ferro dobradas que prendiam, como garras, a nave-tanque ao nosso transportador, mas elas permaneceram inabaladas. Mais dois disparos, mas as placas sequer se moveram. Seus olhos encontraram os meus perguntando o que fazer. Me ergui com dificuldade, apoiando em uma das caixas que nos servira de abrigo. Olhei a nave em silêncio, sentindo toda a esperança deixar o meu corpo. Então esse era o fim? Sentiria paz, se não fossem as vidas sobre as minhas costas. Os robôs também iam para o céu? Pro mesmo céu dos humanos?


– NÃO! – Aydee gritou atrás de mim – Não, não! – uma caixa passou deslizando ao meu lado com a força de seu chute.


Armand segurou-a pelos ombros e ela relaxou sob seu toque. Quando seus olhos me encontraram, foi difícil disfarçar a contração dos meus lábios. Quis dizer que era o final, mas sabia que no momento em que abrisse a boca minhas lágrimas me trairiam.


– Eu me recuso! Deidre, eu me recuso! Deve haver algo que a gente possa fazer...


– O que está acontecendo? – Ernest perguntou, inquieto, os olhos alarmados.


– Dee... – Armand murmurou – A única esperança de soltar o tanque é manualmente e o transportador não pode parar... quem quer que fizesse isso, ficaria para trás.


– Deve haver uma maneira de cancelar o protocolo! – Aydee girou, agarrando a blusa do garoto com tanta força quanto suas esperanças. Armand encarou-a em silêncio pelo que pareceu a eternidade antes de abaixar o rosto em negação.


Olhei a nave chacoalhando ao fundo do comboio. Não havia tempo para reflexões. Complete a missão, Deidre. Ou faça o máximo para que ela chegue ao seu fim. Meu primeiro passo em direção à nave foi interrompido pelos dedos de Aydee se fechando sobre meu cotovelo.


– Eu vou.


– Não há tempo para isso, Aydee! – afastei sua mão com ferocidade.


– Parem! – a voz de Ernest se ergueu, nos silenciando. O sorriso que costumava tocar suas bochechas rosadas era uma lembrança distante. Seus dedos tremiam enquanto ele fechava e abria as mãos. – Eu... Eu devo ir.


– Está louco, pai?


– Me deixe falar, menina. Eu... Eu... – revirou o bolso e por fim atirou no chão uma peça metálica, onde uma antena piscava em vermelho.


– Um transmissor – Armand identificou, sua voz quase um murmúrio. As cores fugiram do rosto de Aydee.


– Eu só queria salvá-la, queria que tivesse uma vida boa, como uma menina da sua idade deveria ter. Eles me prometeram, prometeram que só os levariam presos e depois todos seriam perdoados... Não haveria mortes, não haveria... – a voz de Ernest partiu-se e o choro tomou o lugar de suas explicações.


– Você... VOCÊ É UM ASSASSINO! – Aydee rugiu, o rosto ferido.


O velho se encolheu como se as palavras fossem flechas afiadas entrando sua carne.


– Eu só queria o melhor para minha menina... – justificou em desespero. As palavras um misto de agonia e vergonha.


– UM TOLO, UM VELHO TOLO E ASSASSINO! – Aydee urrava enquanto as lágrimas desciam por suas bochechas – Tem idéia de quantas... quantas pessoas você matou?


Armand tentou segurá-la, mas a garota o afastou como se não fosse nada. Ernest encarou o chão, coberto de vergonha.


– Deidre poderia ter morrido... – um soluço cortou sua voz - TUDO POR SUA CAUSA!


“Tempo estimado: 20 segundos.”


– Eu não quis nada disso, minha menina. Nada disso, Deidre – o cozinheiro me olhou, o rosto coberto de dor, vergonha e arrependimento – Vou consertar meus erros. É o mínimo que posso fazer, não é? – uma risada quebrada escapou de seus lábios, enquanto caminhava em direção ao tanque.


Aydee soluçava no chão e Armand tentava limpar sua lágrimas em vão. Desviei o olhar. Ernest alcançava a porta do tanque, que pendia amassada para o lado. Entrou e afastou o corpo metálico do robô de sobre o painel. Alguns toques e os controles se iluminaram novamente. O motor do tanque voltou a rugir e a nave chacoalhou para os lados, tentando se mover. Quando as placas de metal cederam à força da nave, partindo-se, respirei aliviada.


“Tempo Estimado: 5 segundos.”


Ernest nos olhou uma última vez e forcei um sorriso, mas mal conseguia enxergá-lo. A nave foi jogada para trás assim que se viu livre das garras de metal. A vi girar duas vezes no ar antes de se transformar em uma bola laranja de chamas. Abaixei o rosto. O vento forte uivava contra as farpas de metal que a colisão fizera nas paredes do comboio, mas não era o suficiente para abafar os soluços de Aydee.