Sobre Metal e Sangue

Cantamos canções debaixo da lua


- Precisa de alguma ajuda? - a voz veio de cima. Levantei a caixa com alguma dificuldade até alcançar o chão do transportador e a empurrei para dentro, soprando uma mecha de cabelo para longe dos meus olhos ao encarar o robô elefante.

- Não, esta foi a última. – nem se fosse chumbo puro na caixa no lugar de mais latas de ervilha aceitaria sua ajuda. O robô parecia quase desapontado. Fazia três dias que eu não falava com Rhes, três dias em que o humor do robô elefante melhorava gradativamente até o ponto de oferecer ajuda para mim, como se quisesse se certificar de como aquilo me afetava. A verdade é que agradecia por ter tantas caixas e tonéis para serem transferidos para os transportadores porque enquanto ajudava Edda e os outros tinha uma desculpa para não procurar Rhes e pedir desculpas, coisa que havia decidido não fazer. Pelo menos por enquanto. Olhei para o subordinado do meu amigo e pela primeira vez notei a quantidade de insígnias que decoravam seu uniforme, tantas quanto Rhes tinha presas em seu uniforme cinza. Estreitei os olhos quando notei que a única condecoração que faltava era o característico emblema de comandante que adornava a porção superior esquerda do uniforme de Rhes.

- Aposto que um robô com a sua importância têm coisas mais importantes a fazer do que ajudar pequenas garotas com caixas de mantimentos. – falei e lhe virei as costas, sem esperar que respondesse. No lugar disso avançou e segurou meu braço, forçando-me a virar e olhá-lo.

- Nisso você pode apostar a sua vida, humana. – me desvencilhei de seu aperto energicamente tentando manter o rosto impassível e lutando contra o ímpeto de cuspir em sua direção. Finalmente com um último olhar ameaçador ele se afastou a passos largos, deixando-me sozinha com o coração batendo descontrolado. Não sabia o que aquela cena inteira tinha significado e estava pronta para procurar Rhes e contar-lhe tudo quando uma mão fechou-se sobre meu ombro. O sobressalto veio acompanhado pelo riso de Edda.

- Nossa, Deidre, mas você está carregando caixas demais debaixo desse sol de rachar. – não era a sua mão que se apoiava em mim, Zahra estava ao lado da pequena garota e sorriu ao ver meu rosto assustado.

- Se acalme, viemos te liberar. Onde está Danton? – franziu o cenho ao dar pela falta do meu companheiro de turno.

- Estava se sentindo indisposto e foi descansar um pouco.

- Aquele preguiçoso. – atestou Edda, cruzando o braço sadio em frente ao engessado. Mordi a língua para não perguntar como ela carregaria grandes caixas, embora Zahra fosse forte o suficiente para carregar duas empilhadas sem grande esforço. – Quando encontrá-lo pode dizer que o esperamos para que termine o seu turno. Agora vá descansar um pouco também, Deidre, você passou a manhã inteira carregando coisas pra lá e pra cá. Já almoçou?

Assenti ao mesmo tempo em que meu estômago se manifestou em protesto.

- Então o que está esperando? Vá procurar Erwan e peça para que dê um pouco dos mantimentos reservados para a festa de hoje. – Edda sorriu ao ver o meu rosto vermelho.

A festa, por mais que Edda quisesse denominá-la como tal, se tratava de algo bem menos pomposo do que a palavra sugeria e consistia basicamente na idéia de que todo o acampamento iria se reunir para aproveitar o único momento de calmaria durante muito tempo. Por incrível que pareça fora sugerida por Rhes a Berthe como última tentativa de acalmar os ânimos entre os dois grupos que nos últimos dias se agravavam consideravelmente. No meio das discussões estava um pequeno grupo do acampamento que decidira que partiria com o grupo de Rhes para a base segura que buscávamos no lugar de continuar viagem de Auch até o acampamento rebelde que resistia contra o novo governo. Berthe ficara lívida quando soubera e Edda contou que passara a noite inteira praguejando e chamando-os de covardes. Eu achava que não havia covardia alguma numa mãe que preferia manter os filhos em segurança ao invés de criá-los em um acampamento rebelde recheado de armas e sentimentos hostis, mas mantive o pensamento em silêncio. Rhes, no entanto, não se limitou a defender a posição destas pessoas, ainda as encorajava a optar pela segurança e em menos de dois dias a quantidade de famílias que o apoiava havia aumentado e agora eram cerca de um terço do acampamento de Berthe. A tia de Edda poderia xingar e reclamar quanto quisesse, mas até ela sabia que era uma causa perdida e depois de muitas reuniões com Rhes concordou que os dois grupos viajariam juntos até Auch e de lá tomariam caminhos diferentes como havia sido combinado. Mesmo que estivéssemos distanciados notei que Rhes se comportava como se uma enorme carga tivesse sido retirada de suas costas, afinal, havia cumprido sua tarefa: oferecer salvamento para o maior número de pessoas possíveis e, se este número consistia em apenas quinze pessoas do acampamento de Berthe e mais dez que restaram dos nossos transportadores depois dos ataques, que assim fosse.

Com um último ronco do meu estômago deixei Zahra e Edda para trás, sem invejá-las pelo trabalho que teriam pela frente. Debaixo do sol de meio dia atravessei o acampamento que parecia a cada dia menos com o acampamento que conhecia: todos que podiam estavam envolvidos no trabalho de empacotar tudo para viagem e transferir as cargas para os três transportadores e os seis veículos menores que se tornavam a cada dia mais pesados. Mesmo que não tivesse falado a ele, Rhes e seu grupo foram essenciais na restauração e conserto dos veículos velhos do acampamento, que deixaram de ser sucatas velhas para se tornarem sucatas velhas que funcionavam suspeitosamente. O que importava é que agora tínhamos três transportadores que carregariam grande parte dos mantimentos e equipamentos, além de que serviriam de transporte para a maioria das pessoas do acampamento. As brigas internas poderiam até ter criado mal estar entre algumas famílias, mas o sentimento que imperava era a ansiedade por deixar um lugar conhecido para trás e encarar o novo. Alguns, principalmente as crianças, viam esse novo sob a luz da esperança e já sonhavam com lugares em que poderiam ter uma refeição decente e dormir em uma cama confortável. Por mais que quisesse mostrar que tinha amadurecido, era também esse desejo que me movia. Acho que no fundo o Novo Governo parecia tão distante agora que os sonhos de ter uma casa aconchegante com um jardim ao redor pareciam quase reais. Rhes poderia se aposentar da carreira militar e então moraríamos juntos e cuidaríamos do nosso jardim que seria o mais bonito da vizinhança. Um pequeno sorriso escapou dos meus lábios rachados pelo calor: de alguma forma era cômico imaginar Rhes assando panquecas ou contando histórias ao me pôr para dormir. Pensamento que contrastava com a imagem típica que poderia ver quando imaginava o primeiro dia em uma nova escola: sem dúvidas Rhes iria checar milhões de vezes se eu estava com tudo que precisava e se minhas roupas condiziam com o clima que estava fazendo lá fora. Alguma coisa me dizia que seria do tipo que colocaria frutas para sobremesa e verduras escondias dentro do sanduíche. Suspirei, amarrando os cabelos num rabo de cavalo minúsculo para afastá-los do rosto e deixar que a brisa leve tocasse minha nuca. Teria que afastar aqueles pensamentos enquanto as coisas ainda se desenvolviam, sabia já agora que o afastamento de Rhes deixava um gosto amargo na boca e apressei o passo, fechando os punhos. Talvez, apenas talvez, seria uma boa idéia pedir desculpas pelo meu comportamento.

Quando entrei na tenda que chamávamos de pequeno quartel general tropecei por cima de Erwan e estendi os braços para amparar minha queda, o que não me impediu de cair ruidosamente no chão batido. O ouvi resmungar qualquer coisa antes de levantar-se. Meu punho esquerdo latejava e o segurei com minha mão direita, praguejando.

- Seria bom se usasse estes olhos sabe. – falou o garoto, estendendo a mão para mim.

- E desde quando decidiu que sentar-se bem em frente à entrada seria uma idéia genial? - sibilei com raiva sentindo os olhos arderem. Erwan me puxou para cima sem grande esforço pela mão sadia e indicou uma das poucas caixas que ainda continuavam dentro da tenda. Quando me sentei estendeu suas mãos em direção ao meu pulso esquerdo e eu involuntariamente o contrai para longe de seu toque, uma dor aguda estendeu-se do pulso braço acima. Mordi os lábios para não gritar.

- Vamos Deidre, quando nos conhecemos você estava em uma situação muito pior. – falou Erwan, sentando-se à minha frente na areia e cruzando as pernas. Hesitante, deixei que tocasse meu pulso e me surpreendi com a suavidade de seu toque. As mãos de Erwan envolveram meu pulso, que parecia ridiculamente fino em comparação, e começaram a pressioná-lo com cuidado em alguns pontos.

- Você é médico ou algo do tipo? - perguntei com suspeita.

- Não. – respondeu Erwan sem levantar os olhos – Mas até eu consigo dizer se está quebrado ou torcido ou...

Seus dedos pressionaram uma região e fizeram a dor aguda explodir em meu pulso, o empurrei para longe e levantei da caixa segurando o pulso com a mão sadia, desta vez não escondendo minha frustração.

- Um mau jeito. – declarou Erwan do chão, o sarcasmo brilhando em seus olhos – Não precisa reagir assim, Deidre, está mais do que exagerando.

- Se encostar em mim de novo juro que quebro seus dois pulsos e então veremos quem está exagerando. – resmunguei, estendendo a mão para levantá-lo. Erwan sorriu e a aceitou.

Depois de se certificar que tinha amarrado um trapo velho de modo que não incomodasse quando eu quisesse segurar algo com minha mão esquerda me ofereceu um pouco de maçã (era isso que estivera comendo antes que eu caísse sobre ele). Segurei a fruta como se fosse de ouro entre minhas mãos: não lembrava a última vez que havia comido maçã e me assustei quando a lembrança de uma torta de maçã que minha mãe costumava fazer surgiu em minha mente. Erwan franziu o cenho.

- Está um pouco murcha, é verdade. – desculpou-se.

- Está perfeita. – respondi com rapidez, sorrindo em sua direção. Erwan baixou seus olhos por alguns segundos e depois se ofereceu para cortá-la ao meio com seu canivete. Estendi a maçã para ele e quando quis me devolver as duas partes aceitei apenas uma e insisti para que ficasse com a outra. Depois de reclamar um pouco como de costume a aceitou, sem antes deixar de fazer uma imitação bastante convincente da minha queda, fazendo lágrimas escorrerem pelo meu rosto poeirento e o som de risadas encherem o ar.

-

Antes mesmo que o sol desaparecesse por completo atrás dos montes rochosos foi como se o acampamento ganhasse vida. Pessoas se envolviam na preparação das comidas (que consistia em abrir diferentes latas e ordenar o que seria janta e o que iria para o grupo das sobremesas), outras carregavam material que não seria levado para a viagem e o depositavam numa pilha que crescia a cada minuto no centro do acampamento. As crianças corriam de um lugar para o outro, animadas como nunca as vira antes. Os robôs sobre o comando de Rhes ajudavam no que podiam e no que os humanos permitiam. Até eles estavam num humor melhor que o usual, o robô elefante reclamava que iríamos sentir falta da comida que desperdiçaríamos numa comemoração sem sentido e foi rapidamente calado por Rhes que assegurou a todos que os últimos grupos de busca foram muito eficientes e que tínhamos mais comida que poderíamos carregar (entendi isso como um sinal vermelho para as pílulas nutritivas, o que me encheu de alegria). Mesmo que estivesse visivelmente melhor Rhes ainda não me procurara, o que me desencorajava a interromper uma das suas tarefas para falar com ele. Bastava um olhar brando para que fosse ao seu encontro, mas ao longo do dia estivera focado nas últimas preparações para a partida na manhã seguinte e depois na organização da festa, o que me frustrou tanto que depois do almoço passei a tarde inteira em minha tenda e mesmo que dissesse que estava bem, assim que me deitara meus olhos fecharam e só acordei quando já estava anoitecendo.

- O que você está tentando fazer? – Edda curvou sua cabeça para o lado enquanto me observava. A ignorei e continuei escovando o cabelo com a escova quebrada, os fios mostravam grande resistência e com um suspiro de frustração joguei a escova num canto. Edda foi buscá-la em silêncio e pediu para que me ajoelhasse.

- Por que não o corta como eu fiz? É prático e eu mesma corto quando é necessário. - desistiu da escova e começou a passar seus dedos finos pelo meu cabelo castanho. Neguei com a cabeça. Duvidava que meu cabelo ficasse bom num corte masculino como o de Edda, principalmente porque tinha tendência a não permanecer no lugar e revoltar-se com facilidade. O cabelo de Edda, no entanto, brilhava como o próprio sol quando a luz o tocava e até hoje não entendo como conseguia aquele efeito quando não dispúnhamos de xampu ou qualquer outro tipo de produto cosmético.

- Pronto. – anunciou a garota teatralmente – Está domada a fera.

Levei minhas mãos à cabeça, tateando. Edda havia trançado as primeiras mechas próximo ao rosto de cada lado e as prendera atrás da cabeça. Sorri em agradecimento e estava pronta para sair da tenda quando ela me segurou pelo braço.

- Tem mais uma coisa. – falou, sem conseguir parecer muito séria, e indicou uma pequena bacia que estava encostada no canto da tenda. Quando me aproximei vi que estava cheia de água.

- Edda! - exclamei, levando as mãos à boca e a encarando com os olhos arregalados – Não podemos!

- Nah – ela deu de ombros, levantando a aba da tenda – Que tipo de acampamento é este em que os líderes podem usar água que é proibida aos restantes?

Com estas palavras me deixou. Encarei a bacia como se nunca tivesse visto algo parecido antes. Era relativamente pequena e não tinha mais de dois palmos de altura, mas para alguém que não tinha tomado um banho apropriado há meses iria servir como uma banheira de mármore. Com um último olhar de surpresa em direção a saída da tenda andei apressadamente para fechá-la e cinco segundos depois tinha me livrado de todas as roupas. Arranjei uma caneca enferrujada e amassada com pressa, já sentia o coração batendo mais forte quando a afundei no líquido cristalino. Minha mão tremia enquanto erguia a caneca sobre minha cabeça e fechei os olhos quando senti o toque frio da água sobre meu rosto. Tive que reprimir uma risada, mas a verdade era que aquilo me enchia de felicidade de uma forma completamente estranha para mim.

Cinco minutos depois já estava seca e, mesmo que a idéia me deixasse indignada, vestida com as mesmas roupas empoeiradas de antes. Escondi a bacia atrás de algumas tranqueiras e deixei a tenda, parando assim que o vento tocou minha pele. Fechei os olhos experimentando uma sensação de liberdade que encheu meus pulmões e corri em direção à fogueira cujas labaredas já lambiam o céu noturno. Diminuí o passo quando cheguei mais perto e percebi que a festa já estava em seu ápice. As pessoas do acampamento estavam sentadas ao redor da fogueira em grupos menores, cada grupo tinha muita comida em seu centro e algumas até pequenas jarras de água que eram passadas adiante a cada momento. Os robôs de Rhes estavam em seu próprio círculo, mas ele estava sentado ao lado de Berthe e de outros líderes do acampamento e com uma surpresa agradável percebi que pareciam estar se divertindo imensamente. Danton estava sentado com a sua família e acenou para mim enquanto pegava um pêssego em calda para sua irmã mais nova, Sylvie. Finalmente avistei meu grupo e sentei entre Zahra e Edda, esta última parecia estar contando uma história particularmente entusiasmada e sorriu de orelha a orelha.

- Não está mais fedendo, Deidre.

- Espero que não. – falei aceitando alguns doces da tigela que Zahra me estendia – Não se reprima, Edda, pode continuar contando a história.

- Não estava contando uma história, estava cantando. – disse, fingindo estar ofendida. Meus olhos foram de Zahra para Erwan e nenhum dos dois parecia se opor a idéia.

- Então continue cantando.

Edda tomou ar algumas vezes e fechou os olhos, quando abriu a boca o som que partiu dela fez um calafrio percorrer minha espinha.

Quando a noite se levanta sobre as dunas

Seu lenço cobre em silêncio terra e água

Água na qual estrelas se erguem como no céu

Quem pensa que pode andar sozinho vai ver muito pouco deste mundo

E o velho homem estende as três esferas brilhantes

Alguns dizem que elas são o sol, a Terra e a lua

Outros acreditam que sejam o fogo, o medo e a morte

Quem pensa que pode andar sozinho vai ver muito pouco deste mundo

Sorriu e desapareceu na neblina distante

As esferas somos eu e você e a coragem

Lá fora o vento frio sopra, mas aqui as fogueiras ainda queimam

Quem pensa que pode andar sozinho vai ver muito pouco deste mundo

Quem pensa que pode andar sozinho vai ver muito pouco deste mundo

Era uma melodia lenta, quase triste, que pesava no coração. Como um aviso dado para aqueles que partem e que podem nunca mais voltar. Zahra abraçava as próprias pernas, o reflexo do fogo se espelhava em seus olhos e a faziam parecer anos mais velha do que realmente era. E durante aqueles poucos momentos a entendi de uma forma que nunca mais se repetiria: não era apenas rude e de poucas palavras, carregava dentro de si lembranças que não quisera partilhar com ninguém, lembranças que se mostravam cada vez mais difíceis de carregar. Erwan colocou o braço ao redor de seus ombros ao que Zahra agradecidamente respondeu ao se apoiar em seu corpo. Ele próprio estava com uma expressão séria que tentou quebrar com um sorriso frouxo quando viu o quanto eu estava tomada pela atmosfera melancólica e ainda assim, completamente bela da voz de Edda. A garota colocou o braço atrás da cabeça e ficou vermelha.

- Ah, me desculpem. Não era para ser uma música triste. – desculpou-se, seus olhos percorrendo os rostos dos amigos – Desculpem, desculpem, não queria estragar tudo.

- Vejo que cantou de novo, Edda. – a voz de Danton ergueu-se sobre nós e segundos depois o próprio deixava seu corpo cair do outro lado de Erwan, bagunçando os cabelos loiros da garota – Bonito, mas não muito festivo.

A realidade então me atingiu de uma forma que fez meu coração apertar-se. Aqui estava eu, cercada pelos amigos que talvez não conhecesse por muito tempo, mas aqueles que tinham feito com que me sentisse em casa de uma forma que ninguém antes havia feito. E em breve estaríamos separados, talvez para sempre. Enquanto seu caminho era para a base rebelde, o meu era aonde Rhes nos levasse. Senti as lágrimas surgirem em meus olhos e os fechei para contê-las.

- Só não queria que tivéssemos que nos separar tão cedo. Não era para ser uma canção de adeus. – falou Edda com a voz embargada e quando abri os olhos vi que ela olhava para o chão e que pequenas gotas molhavam a areia do deserto. Num impulso a segurei em meus braços e passei a mão pelos seus cabelos enquanto seus finos ombros tremiam em meu abraço.

- Temos que concordar, Deidre, não vai ser tão divertido sem você conosco. – admitiu Danton, sorrindo para mim.

- Ou explosivo. – acrescentou Erwan com seriedade.

- E não vou ter ninguém que jogue cilindros de metal sobre mim. – Zahra falou, como se fosse realmente sentir falta disso no futuro. Olhei para cada um durante tempo suficiente para gravar suas feições em minha memória e quando cheguei a Erwan desviei o olhar rapidamente para a fogueira. Esperei que entendessem o rubor em minhas bochechas como efeito colateral do calor das chamas. Nesse momento Edda levantou a cabeça do meu colo e fungou duas ou três vezes.

- Você deveria vir conosco. – choramingou, me encarando com os olhos vermelhos. Acariciei sua cabeça.

- Não posso. – falei calmamente – E vocês sabem.

Ela ainda fez menção de contestar, depois se afastou de mim e limpou o rosto com as mangas do casaco. Foi nesse momento que notei o afastamento de uma figura do grupo à nossa frente e como um raio me pus sobre os pés. Meus amigos me encararam com um olhar interrogativo, mas lhes virei as costas.

- Deidre! - a voz de Erwan me seguiu.

- Desculpe, tenho que ir. – gritei sobre o ombro correndo na direção em que Rhes se retirava.

- Você volta para comer batatas na brasa?- perguntou Danton gritando, mas já estava longe demais para ouvir minha resposta.

O robô estava levantando a aba de sua tenda quando o alcancei.

- Rhes! – chamei, perdendo todo o medo que me acompanhara durante três dias. Ele mal se virou a tempo de me segurar quando me joguei em sua direção.

- Deidre? – perguntou, me afastando de si para poder me observar – Algum problema?

- Sim! – exclamei, me sentindo patética por não poder conter as lágrimas – Sinto muito, Rhes, quando discutimos eu fui tão egoísta, não consegui entender que você tem uma missão que deve ser cumprida independentemente do fato de ter uma pequena garota para proteger que não facilita seu trabalho nem um pouco.

- Realmente não facilita. – falou, seu rosto se abrandando – Receio que não sou muito bom em relações sociais, Deidre. Não fui criado para ser educado ou compreender os sentimentos humanos e acho que falhei nas duas coisas com você. O pior é que não sei como fazê-la se sentir melhor.

- Peça desculpas. – retruquei com um sorriso.

- É isso que os humanos fazem quando não se entendem e querem fazer o outro sentir-se melhor?

- É.

- E funciona?

- Se for sincero acho que sim.

Rhes se abaixou sobre os dois joelhos para ficar na minha altura e seus olhos se fixaram nos meus.

- Me desculpe Deidre.

Olhou para mim buscando algum sinal de aceitação por tanto tempo que tive que colocar a mão em frente aos meus lábios para que minha risada soasse mais baixa. O abracei, rindo com as cócegas que seu cabelo ruivo fazia contra as minhas bochechas. Quando seus braços envolveram o meu corpo tive a coragem que me faltava para perguntar.

- Rhes, quando chegarmos a essa base segura, você vai embora? – sussurrei contra sua orelha, a ansiedade me consumindo. Demorou alguns segundos para responder e quando o fez veio acompanhado por um aperto mais forte de seus braços ao redor do meu corpo.

- Não.

Escondi o rosto em seus ombros e deixei que as lágrimas lavassem minhas bochechas, mas dessa vez não eram lágrimas de dúvida e enchiam meu coração de alegria.

- Você não vai voltar para a festa? – perguntou Rhes, me afastando novamente para limpar minhas lágrimas com suas luvas.

- Não.

- E por quê?

- Porque é uma festa de despedida. – respondi com a voz pesada – E estou tão farta delas.