Sobre Lobos e Presas

Capítulo Único


Eu sou mau.

Ao menos é assim que me chamam. Não reconheço essa palavra, porém. Não reconheço o conceito. No meu mundo, as coisas funcionam de forma diferente.

Mato para que possa viver. Não é realmente uma questão quando se trata de garantir mais um dia. É instintivo. Nada além. A necessidade me dirige e me define.

Agora, há um misto de terra e sangue sob minhas unhas. O cheiro é familiar. Então não é realmente estranho quando ele fica mais intenso, escorrendo quente da garganta que dilacerei. Exceto que uso outro instrumento desta vez. Diferente, mas eficiente. E um segundo antes de perfurar a artéria de forma eficaz, vejo a lua refletida na lâmina.

Vejo através dos olhos dela.

Não há utilidade nisso, o homem já está morto, mas ela continua a morder sua carne com a faca. Depois estamos exaustos, mas ela precisa se limpar, livrar-se do sangue lavando-se no rio. Sei disso do mesmo jeito que soube o que fazer para atrair a vítima. Também sei que ela não o perseguiria se ele tivesse ido embora. Mas ele ficou. E quando ela tirou a roupa que veste agora, os olhos dele é que enxergaram a presa.

Foi fácil perceber. Conheço um predador quando vejo um. Mas eles, os homens que ela atrai, são mais primitivos do que eu e não reconhecem os mesmos instintos sob os olhos da garota. Instinto e algo mais. Ela gosta de matar. Isso a torna mais forte do que eles. E as leis da natureza são claras quanto a isso.

A fraqueza os torna presas.

Quando vai embora, ela não olha para o corpo. Ela nunca olha para o corpo. Sei agora que é porque o que lhe importa é a caçada. Quando eles não podem mais lutar e a vida se esvai de suas carcaças, o interesse que ela tinha por eles se esvai também, depois de saciada sua fúria. O som alto de seu próprio coração batendo em seus ouvidos silencia e eles se tornam nada para ela. Então ela os deixa do meu lado da floresta, onde eles sabiam que nunca deveriam ter vindo. São seus presentes para mim.

E eu aprecio muito.

Caminhamos juntos para dentro da casa dela. Se a velha mãe me visse, certamente gritaria e num instante haveria muitos homens em meu encalço. Eles não gostam de mim aqui, por isso não entro, mesmo quando ela me convida. Esta noite, porém, a mulher não me vê. Permanece sentada à mesa, cosendo roupas sob a luz de velas.

Ela não pode me ver, porque aquele que sou deve jazer escondido no lugar onde adormeci sob as carícias da moça cujo corpo agora habito.

— Onde esteve? — a mulher pergunta à filha.

Não gosto de como a voz dela faz o corpo da garota reagir.

— No rio — ela se limita a responder.

— Sabe que não pode correr por aí ao cair da noite. É perigoso.

— É sempre perigoso.

A mãe se conforma com essas palavras. Na verdade, não se interessa muito, ao que parece.

— Preciso que leve uma encomenda amanhã.

— Não, mãe. Não me faça voltar à casa daquela mulher outra vez esta semana. Já temos o suficiente.

Não farei mais isso, não permitirei mais.

Ouço a voz dela em nossa cabeça e entendo que a encomenda é só um disfarce. Um outro nome que as mais velhas usam para a barbaridade a que a obrigam. A encomenda é ela mesma.

— “Aquela mulher”? Não chame assim a tua avó. E faça o que eu te mando. É sua obrigação trazer o dinheiro que te dão para casa.

O dinheiro que me dão...

Meu corpo se revolta. Repulsa e medo.

E fúria.

Vejo sangue. A lembrança do chão sob meus pés e de dor, muita dor, me invade. O sangue escorre sobre meus olhos e por entre minhas pernas enquanto corro. É uma memória dela.

Há rostos e punhos. Corpos que ofendem meu corpo e palavras que sangram meus ouvidos. E sempre a dor. Em toda parte. Mesmo quando não a machucam.

Não é fácil entender, sou todo vontade de matar.

Sinto-me ligado a ela. Desde que comecei a observá-la. Desde que ela notou que eu o fazia e gostou. Eu a sigo. E agora entendo que a amo.

Vou defendê-la.

Ela não discute com a mãe, não hoje. Sabe que não adianta. Apenas terminaria com alguma briga em que ela ficaria ferida e a mãe mais furiosa. Somente acabaria com ela recuando para dentro de seu próprio medo como em tantas outras noites, como em tantos outros dias.

Só há uma coisa que adiantaria. E finalmente percebo o que ela queria todas as vezes em que me convidou a entrar. Queria que eu fizesse por ela. Por isso pagou a velha bruxa por um feitiço. Porque queria que eu visse o quanto ela se sente fraca diante das outras duas. Das feras que fizeram dela uma presa para quem pudesse pagar.

Ouço-a sussurrar as palavras enquanto nos deitamos em sua cama. São quase iguais à de ontem à noite, cantadas numa língua que nunca ouvi da boca de pessoa alguma. E enquanto as escuto, sinto que fazem algo comigo, que me transportam e nos separam. Adormeço antes dela. Sob suas pálpebras, são meus olhos que se fecham. E de alguma forma, sei que estou voltando para casa.

***

Quando a luz do sol me desperta, estou de volta ao meu próprio corpo, mas não gosto da sensação. Meu entendimento parece nublado, meus pensamentos mais difíceis. Não é como quando estava com ela, mas esta lembrança — de estarmos juntos — me traz clareza suficiente.

Impulso.

Objetivo.

O dia não é meu território, mas sei o que devo fazer. Esgueiro-me pela noite que trago dentro de mim e eles não me veem. Não me esperam. E isso é o suficiente para que eu alcance a casa sem ser visto.

A porta está entreaberta porque ela a deixou assim para mim. Pude ver em seus pensamentos ontem, posso sentir no cheiro que desvanece da fechadura aberta há pouco. O cheiro dela, aliás, está em toda parte, na casa e fora dela, guiando-me para onde devo seguir quando terminar o que preciso. Atrás dela.

A mãe está dormindo. Posso sentir o cheiro forte de álcool que emana até mesmo de seu sangue quando rasgo sua garganta. Antes que seus olhos se abram e ela possa gritar. Quando a dor a desperta, do fundo de seu desespero mudo, ela olha para mim. Apavorada. Espero que ela saiba por quê. Espero que ela veja a filha em meus olhos.

Quando o som de seu coração já está muito além de onde qualquer um possa buscá-la, me afasto tão sorrateiramente quanto entrei. Há um claro senso de propósito que me dirige. Preciso impedir a encomenda.

Corro o máximo que posso e, em minha corrida, ignoro tudo que não sejam sinais dela. À distância, ouço os sons. Eles estão do lado de fora da casa, ela e ele, por isso acaba sendo fácil para ele me ouvir também. Fácil, mas não rápido o suficiente. Apesar de sua mão, que se volta para mim num soco que me atordoa, ele não consegue se levantar a tempo de fugir e consigo agarrar uma de suas pernas, rasgando-lhe a carne com força.

Ela encontra sua arma luminosa, sua faca perdida em meio às roupas no chão, e me defende. Salva minha vida enquanto nosso oponente luta agarrando minha garganta, ameaçando quebrá-la. Desta vez, porém, ela não entra no frenesi inútil de continuar dilacerando o homem já morto. Apenas arrasta-o para um canto escondido quando ouve a voz da avó que, meio cega, não percebe o que estamos fazendo até que seja tarde demais.

A velha tenta correr de volta para a segurança de sua casa. Tenta fechar a porta, mesmo quando a neta grita, fingindo que precisa de socorro. Parece fácil e instintivo para ela ignorar os apelos e pensar apenas em si mesma. Esperta. Mas não ágil ou forte o bastante para bloquear minha entrada quando lanço meu peso sobre seu corpo frágil e impotente por causa do medo.

Já vivi isso antes. O instante de paralisia. A caça petrificada pelo pavor. Quaisquer que fossem os olhos, o que eu via era sempre o mesmo. Todos eram iguais diante da morte iminente que eu representava. Mas esta é a única vez em que gosto disso.

Ouço a porta se fechando e os passos da garota atrás de nós. A expectativa cresce em meu peito e as batidas de meu próprio coração se tornam audíveis. Então percebo. Eu quero que ela veja. Por sua causa, minhas presas se transformaram em vítimas. Não é mais necessidade. O prazer que ela sente com as mortes agora também é meu.

Por isso não mato a avó imediatamente, não como faria se as coisas fossem apenas como eram antes. Dispenso ao prazer de saborear seu pânico uns parcos segundos que a mulher, erroneamente, interpreta como hesitação, uma chance para reagir, para se debater sob meu peso e tentar se livrar. Então começo a machucá-la. Minha natureza original urge que eu termine com aquilo, mas há outra coisa dentro de mim também. Há um pouco dela.

Quando a velha está fraca demais, desfiro o golpe de misericórdia. Em poucos segundos, ela está morta. Abandono o corpo da caça, como a garota faria, mas então é ela quem se aproxima. Encarando o rosto ferido da outra. E sorrindo.

Terminou. Para a moça, uma parte da vida chegou ao fim ali, naquele instante. E é bom.

Para mim, entretanto, o segundo seguinte se aproxima célere. Meus sentidos estão todos em alerta novamente com a aproximação de um estranho. Senti sua presença na floresta, longe o bastante daqui, mas calculo agora, tarde demais, que ele estava perto o bastante para ouvir os gritos. Em minha ânsia em executar a velha de uma maneira que não era a minha, em minha urgência por salvar e satisfazer minha dona, desconsiderei os sinais até que ele estivesse perto demais da entrada que, naquela casa tão pequena, era também a única saída.

Nosso encontro se dá justamente na porta, quando ele a escancara num único impulso e, tão rápido quanto se eu fosse uma de suas árvores, a lâmina de seu machado desce sobre meus ombros.

Ouço a garota gritar, mas é tarde. A dor do golpe roubou meus movimentos e não tenho como reagir. O sangue se esvai de mim aos borbotões e meu único pensamento é que ela agora está indefesa sem sua faca, provavelmente abandonada lá fora. Preciso me levantar, preciso impedir que o lenhador a toque, que se vingue por causa da velha. Que se encante com seu corpo semiexposto.

Mas quando ela corre para perto de mim, quando se abaixa em minha direção e me toca, a fraqueza que ela demonstra atiça nele algum instinto diferente.

— Ele não pode mais te fazer mal — diz o homem, movimentando-se com cuidado, mantendo baixo o tom de voz. Minhas últimas respirações são aceleradas enquanto ele a observa. — Sinto muito por sua avó. É sua avó, não é?

Não sei se ela confirma. Estou flutuando agora em algum lugar entre este mundo e outra coisa. Mas ainda vejo quando ele pega a capa pendurada no encosto de uma cadeira e se aproxima dela, envolvendo-a com cuidado no tecido cor de sangue.

— Você está segura agora. O lobo não pode te fazer mal — sussurra o lenhador, ajoelhando-se respeitosamente ao lado de nós dois.

A última coisa que vejo antes de meus olhos se fecharem são as lágrimas nos dela. E os murmúrios de um cântico antigo e poderoso que, entoados em alguma língua perdida, flutuam pelo ar.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.