Capítulo 13

─ Holmes? – Watson chamou do andar de baixo, enquanto dependurava seu casaco, mas não houve resposta.

Seu amigo havia dispensado sua companhia após terem decifrado o código de Anne, e apesar de estar mais do que satisfeito por ter visto Mary e a deixado a par da situação, não conseguia deixar de pensar que, talvez, a solidão não fosse a melhor opção para o detetive naquele momento. O doutor temia o que seu amigo seria capaz de fazer se ficasse sozinho e ainda assim fora incapaz de argumentar contra a sua partida na noite anterior. Agora, com a falta de resposta, suas suspeitas somente aumentavam e o deixavam mais preocupado à medida que subia as escadas em direção ao apartamento.

Ao abrir a porta, notou que sobre a mesa havia mais cigarros do que antes e seu amigo encontrava-se parado à frente de uma das janelas do quarto, analisando o movimento matinal em Baker Street. Deu duas batidinhas leves contra a madeira, na esperança de chamar a atenção de Holmes, no entanto, sem sucesso. Fosse o que fosse que estivesse acontecendo do lado de fora, ocupava completamente a atenção do pomposo detetive. Uma bandeja de café da manhã – insistentemente colocada ali pela senhora Hudson – estava abandonada e sem qualquer sinal de toque. Ao lado do cinzeiro, um anel de rubi que Watson já havia visto antes...

─ Esta não é a...? – indagou ele, apontando para o anel. Holmes virou-se para encará-lo assim que John começara a falar, voltando sua atenção, em seguida, para o ponto para o qual ele apontava. Engolindo em seco, o detetive apressou-se em direção a mesa e agarrou a joia, tornando a guarda-la no bolso interno de seu paletó sem proferir um som.

Watson considerou o reflexo de seu amigo irregular, no mínimo. Contudo, antes que tivesse qualquer chance de perguntar o que o impulsionara a tal, Holmes já começara a esfregar as mãos, gesto característico para momentos em que estava prestes a revelar seus próximos passos.

─ Você parece estar descansado, Watson. – observou ele, sorrindo para o doutor. – Excelente! Precisarei do seu vigor militar hoje. – disse sentando-se de frente para o outro.

─ Bem, não posso dizer que seja tão vigoroso. Como sabe, aquele meu ferimento na perna ainda...

─ Não me esqueci desse pequeno pormenor, meu caro. – interpôs Holmes, batendo as mãos nos joelhos. – Contudo, garanto que ele não irá interferir na minha ideia. Veja, precisamos apanhar um partícipe entre os homens de Lestrade e acredito ter encontrado a forma mais eficaz para isso. – disse ele unindo as pontas dos dedos sob o queixo.

─ Vá em frente. – incentivou Watson, ansioso.

─ Bem, como você e Anne deixaram claro, quanto menos Moriarty souber a respeito dos nossos movimentos, mais vantagem teremos. Então, eu creio que dessa vez será melhor deixarmos o nosso homem vir até nós. – propôs Sherlock, sorrindo pelo arquear de sobrancelhas de John, visivelmente incapaz de entender o ponto da questão. – Colocaremos uma pista falsa dentro da Yard e ela trará o espião até nós. – explicou por fim.

─ Mas, Holmes, acha mesmo que é um movimento sábio? – indagou Watson – E se esse homem suspeitar? – supôs alarmado, ao que Holmes riu.

─ Meu caro, admito que Moriarty não costuma trabalhar com imbecis. – assentiu ele. – Contudo, eles continuam tendo as mesmas mentes limitadas pela arrogância como a maioria dos criminosos em Londres. De fato, Watson, mesmo que trabalhem para ele, isso não faz com que se tornem tão perspicazes quanto. – ponderou Holmes, com frieza.

─ Pois bem, qual será essa pista? – perguntou John, mudando o tom da conversa. – Alguma informação relacionada à Anne, creio. – observou ao passo que seu amigo sorria de lado.

─ Naturalmente. – concordou. – Do contrário, não chamaríamos a atenção dele. De qualquer forma...

─ Chefe! – gritou Wiggins, empurrando a senhora Hudson para o lado ao abrir a porta com força.

─ Wiggins, o que faz aqui? – indagou Holmes, surpreso.

O garoto estava ofegante, como se tivesse corrido das docas até ali, e o rosto mais pálido do que de costume, observou Sherlock; não era comum encontra-lo naquela situação.

─ É o Ozzie, senhor. – disse Wiggins, com as mãos no peito para recuperar o fôlego. – Saiu para cumprir a tarefa que o senhor passou anteontem e desde então não o vimos mais. – explicou. – Pensei que o tivesse ouvido dele, chefe...

Watson, que até então estivera analisando a garoto, voltou sua atenção imediatamente para Holmes frente ao teor sombrio que aquele relato carregava. O detetive, porém, mirava Wiggins com um olhar impassível. Da mesma forma, constatou o bom médico, que o mirara segundos antes de tomar a aliança de Anne de cima da mesa. Seria aquele, ele se perguntava, o olhar de Sherlock Holmes quando tentava esconder o que realmente sentia? Por certo, até o presente momento, havia observado várias expressões tomando conta das feições do detetive, e sim, muitas dessas vezes o vira com olhares impassíveis. No entanto, a forma como seus lábios tremiam sutilmente... parecia tentar engolir uma reação...

─ O senhor também não sabe o que aconteceu? – insistiu Wiggins, nervoso.

─ Eu... Não, Wiggins, não sei. – respondeu Holmes por fim.

─ Os rapazes estão preocupados, chefe. – disse o garoto. – Nunca nenhum de nós se perdeu...

─ De fato. – assentiu Holmes, tornando a apoiar as pontas dos dedos sob o queixo. – Então, acho melhor você voltar para junto deles. Avisarei se souber de alguma coisa. Irei com o doutor Watson verificar isso imediatamente. – acrescentou depois de alguns minutos pensativo.

─ Obrigado, chefe. – agradeceu Wiggins, saindo em seguida.

Holmes fez sinal para que Watson fecha-se a porta depois que os passos do menino não podiam mais ser ouvidos no corredor. Ficaram em silêncio pelo que pareceram horas, até que por fim Sherlock saiu em direção ao quarto. Voltou com um paletó devidamente passado e a cartola. “Vamos, Watson” murmurou imperiosamente, sendo seguido pelo doutor, que apanhou e vestiu o próprio paletó às pressas enquanto Holmes fazia sinal para um cabriolé.

John não sabia para onde estavam indo, mas tinha uma forte hipótese. Quando pararam na calçada de frente para a universidade Durham, tal suposição provou-se verdadeira. Seria a segunda vez que Holmes procuraria Moriarty no meio daquele caso, contudo, ao contrário do que seu amigo lhe contara sobre os acontecimentos do jantar, John duvidava que haveria civilidade daquela vez. Muitos foram os olhares indagadores para a presença de dois homens no campus da universidade no meio do dia, mas ninguém seria capaz de parar Sherlock Holmes. O modo como mexia sua bengala num ritmo constante provava o quão agitado estava.

A sala do professor ficava no segundo andar, assim dissera um dos alunos, e o pomposo detetive subiu as escadas rapidamente, sempre dois passos à frente do médico. Na porta lia-se Professor J. Moriarty e Watson admirou muito seu amigo por ter conseguido conter-se o suficiente para bater antes de entrar na sala.

─ Senhor Holmes. – cumprimentou o professor, sentado em sua mesa analisando o que pareciam ser trabalhos de alunos. – Confesso que esperava uma visita sua mais cedo. Ah, vejo que trouxe seu cão fiel consigo. – observou.

Holmes abriu espaço para que Watson passasse e fechou a porta atrás dos dois. Nada disse durante um minuto inteiro, dando especial atenção ao cômodo em si. Vários livros dispostos pelas paredes, uma lareira quase se apagando e duas janelas grandes com vista para o pátio onde os alunos passavam para chegarem às salas de aula.

─ Uma excelente coleção. – comentou Holmes, quebrando o silêncio. – Não esperaria que um matemático tivesse interesse em botânica. – disse apontando para um livro azul que estava próximo da mesa de Moriarty.

─ Um matemático não, talvez. Contudo, um homem pode ser interessar por quantas coisas lhe aprouver, não concorda senhor Holmes? – provocou o professor, recebendo nada mais do que um breve erguer de lábios do detetive, o que o fez abrir um sorriso brilhante. – Veio por notícias da senhora Holmes? Ou não conseguiu encontrar um dos seus macaquinhos?

Watson fechou os olhos em nervosismo. O escárnio com que falara Moriarty ao pronunciar as palavras senhora Holmes e macaquinho, a seu ver, seriam suficientes para acabar com o autocontrole de seu amigo. No entanto, para sua surpresa, Holmes ainda estava anormalmente calmo.

─ Audacioso da sua parte, senhor Holmes. Fiquei muito surpreso ao avistá-lo me assistindo almoçar do outro lado da rua, mas, suponho que até mesmo alguém sensato pode se dar ao luxo de errar de vez em quando. – continuou Moriarty. – Todavia, o mais triste nisso tudo é a falta de conhecimento da senhora Holmes. Ela realmente chegou a acreditar que eu permitiria que essa afronta ficasse impune...

─ O que? – interpôs Watson, em choque. – Está dizendo que... que matou aquele menino? Na frente dela? Acaso ignora o que isso pode causar ao emocional de uma mulher nas condições dela?! – exclamou furioso. Já Moriarty permanecia com um sorriso escondido no canto dos lábios.

─ Pelo contrário, Watson. – interveio Holmes, apoiando a mão no ombro no companheiro. – De fato, posso culpa-la por tentar acreditar que existe um pouco de humanidade em você. – acrescentou friamente.

─ Ela conseguiu torna-lo mais humano, não é? Mais parecido com um homem comum. Tal realização deve ter feito-a acreditar que seria capaz de extrair isso de qualquer um. – ponderou Moriarty. – De fato, senhor Holmes, estou impressionado pela maneira com que tem se comportado até agora, e ao mesmo tempo ansioso para mostrar ao senhor como sucumbiu à “humanidade”. – disse apoiando os cotovelos na mesa. – O que o faria me atacar...? Se eu dissesse que deixei uma marca em seus pulsos depois que a impedi de correr até o corpo do menino e a puxei de volta para o quarto?

“Ou se dissesse que mandei um dos meus homens estapeá-la no rosto, não repetitivamente, mas o suficiente para que ardesse por um tempo, depois que a sua querida senhora Holmes cuspiu em mim? Aí me ataca...”

─ Holmes! – exclamou Watson enquanto seu amigo se preparava para dar outro soco no rosto de Moriarty. O primeiro atingira o nariz e o fizera sangrar, o próximo, o doutor suspeitava, o manteria desacordado por horas. – Contenha-se! – disse tentando fazê-lo enxergar o perigo que estava correndo ao atacar o professor daquela forma.

Lutando para interpor-se entre os dois, Watson finalmente conseguiu afastar Holmes de Moriarty. O professor sorria, sentindo-se triunfante ao conseguir provar sua teoria, enquanto Sherlock estava praticamente soltando fogo pela boca.

─ Por ter me dado o prazer de provar-lhe a verdade, senhor Holmes. – disse entregando uma cópia de um livro de Edgar Allan Poe ao detetive. – Nos veremos novamente.

─ Venha, Watson. – chamou Holmes, com o livro em mãos.

†††

─ E então você resolveu dar um soco no nariz dele. – completou Mycroft, servindo uma xícara de chá para ele e o amigo de seu irmão.

Assim que deixaram a Durham, Holmes saiu em disparada à frente de Watson em direção ao Clube Diógenes. Pareceu muito calorosa para ele a ideia de Sherlock correndo em busca de auxílio do irmão mais velho depois daquela cena. Às vezes, passava-se tanto tempo entre uma e outra visita que faziam a ambos, que o médico esquecia-se facilmente que aqueles dois eram irmãos e que deveriam ter dividido vários momentos fraternais ao longo da vida. Afinal, nunca lhe pareceu haver qualquer tipo de rancor ou ressentimento na relação deles.

─ Num primeiro momento, fiquei surpreso por ele ter usado as mesmas palavras que você para se dirigir a mim. – explicou o detetive, rejeitando a xícara que Mycroft lhe estendia com um gesto vívido de mão. – Chamou-me de homem comum. No entanto, a ofensa foi maior quando ele disse, mas, até aí tudo bem. Eu poderia tolerar qualquer tipo de ofensa a meu respeito partindo dele.

─ Contudo, bastou que mencionasse o nome de Anne que você perdeu as estribeiras. – tornou a concluir Mycroft, com um sorrisinho de escárnio. – Bem, o que posso dizer? Meus parabéns, meu irmão. Você se tornou oficialmente um marido inglês. – disse batendo palmas, ao que Sherlock suspirou em frustração.

─ Eu deveria ter me controlado, mas imaginei a cena... Anne é muito sensível quando se trata de morte, sempre foi. E assistir a um infanticídio em seu estado... – murmurava com pesar.

─ As marcas vermelhas e o tapa também não ajudaram muito para que mantivesse seus modos cavalheirescos. – comentou Mycroft terminando seu chá. – Dói ter que ser tão pragmático nesse momento, Sherlock. Mas, o que está feito está feito. Então, ao invés de ficar se lamentando por não ter estado lá para protegê-la contra a tirania do mundo, prepare-se para ficar ao seu lado quando esse acontecimento começar a mostrar sequelas. – disse com o ar mais empático que conseguira reunir.

Holmes apenas assentiu, voltando sua atenção para o livro que Moriarty lhe entregara. A capa estava gasta, mas não havia nenhum amassado nas pontas. Sherlock sabia a quem pertencia, sem nem ao menos precisar verificar o A. Bergerac na folha de rosto. Um dos antigos tesouros de Anne da época em que ainda não era mais do que a irritante ajudante da senhora Hudson que passava horas do seu dia lendo e relendo aqueles contos de terror...

─ O que vai fazer agora? – perguntou Mycroft, quebrando os devaneios do irmão. – Não há tempo a perder, Sherlock.

─ Descobrimos que há um espião entre os homens da Yard e estávamos prestes a plantar uma pista falsa para descobrir quem é. – explicou Watson, assistindo Holmes analisar a capa do livro com uma expressão ilegível.

─ E como ficaram sabendo? – quis saber o outro Holmes, curioso.

─ Digamos que Anne não é uma cativa muito passiva. – Sherlock respondeu levantando-se de um salto da mesa. – Vamos, Watson. Acho que Moriarty me deu uma ideia melhor. – falou apanhando a cartola e a bengala, abrindo a porta para o amigo sair. – Desculpe-me pela forma como chegamos. – acrescentou a Mycroft antes de sair.

─ Não se preocupe. – disse ele, dando de ombros. – De fato, é quase um conforto saber que você ainda precisa do seu irmão mais velho para recoloca-lo nos eixos de vez em quando.

─ E então, Holmes? Você não me disse que pista usaríamos. – comentou Watson quando já estavam no cabriolé a caminho da Yard.

─ Eu não a chamaria mais de pista, mas sim de um fato que iremos dividir com Lestrade e seus homens. – respondeu Holmes, mostrando o livro a Watson. – Por mais que Moriarty tenha ficado um tempo com ele, as impressões da Anne ainda são muito fortes nas páginas e eu conheço alguém que seria capaz de nos levar até ela apenas com elas. – explicou com um sorriso esperto.

─ Entendo onde está querendo chegar. – falou John risonho. – Mas, então iremos contar sobre esse “alguém” para Lestrade e seus homens. E o espião tentará impedi-lo de conseguir a ajuda dele.

─ E nós estaremos lá para impedi-lo e fazer as apresentações. – concluiu Holmes, sentindo-se triunfante.