Capítulo 11

Watson esperou que Holmes voltasse no tempo combinado, mas seu amigo não o fez. Sequer mandou qualquer nota pedindo que o doutor se encaminhasse para Baker Street como era de costume. Em vários casos nos quais acompanhara o pomposo detetive, esse o deixava sempre a par de quando precisava impreterivelmente de sua presença. “Venha logo se conveniente. Se inconveniente venha assim mesmo.” John mantinha essa nota bem viva em sua memória. Uma demonstração do humor negro de Sherlock Holmes.

Entendendo aquele esquecimento como consequência da visível preocupação de seu amigo com Anne, acabou tomando o caminho para Baker Street mesmo sem convite. As ruas de Londres estavam abarrotadas e choveria a qualquer instante, mas o tempo não impediria Holmes de descobrir alguma coisa – por menor que fosse – ainda naquele final de manhã. Watson tinha tanta consciência disso que não se surpreendeu ao avistar uma turma de irregulares correndo em direção ao 221B. Aproximadamente dez meninos cruzavam a porta, empurrando a pobre senhora Hudson para o lado – ignorando seus protestos.

Sabendo que só havia um apartamento para o qual eles poderiam estar subindo, tratou de apressar seu passo, a fim de apanhar a senhoria no fim de seu bom humor. Ela ficou bastante contente ao ver o doutor ali tão cedo, “como sinto sua falta, doutor Watson.” Martha Hudson sempre dizia ao encontra-lo. Porém, antes que aquela conversa se aprofundasse demais, John pediu licença para o apartamento dos Holmes. Batendo na porta, foi recebido por um dos meninos. Pobremente vestido e com o rosto todo sujo de carvão. Seu amigo estava no meio deles, passando instruções e ao notar a presença dele, bateu com a mão direita na cabeça.

─ Meu caro! Mil perdões, eu me esqueci de voltar para apanhá-lo. – desculpou-se Sherlock, fazendo com que todos os jovens rostos se voltassem para o médico.

─ Não se preocupe. Posso ver que sua mente estava ocupada tramando uma estratégia. – observou Watson.

─ De fato. – concordou Holmes, voltando sua atenção imediatamente para o mais velho do grupo. – Wiggins, você e o resto dos meninos certamente se lembram da senhora Holmes.

─ Por certo que sim, chefe. – assentiu o menino, os outros o seguiram em fazer um sinal positivo com a cabeça.

─ Pois muito bem, tenho uma tarefa muito importante para os senhores, cavalheiros. Dessa vez, valendo dois guinéus para quem me trouxer a informação de que preciso. – disse Holmes, fazendo os olhos dos pobres meninos brilharem de excitação. – Quero que se dividam pelos limites da cidade e fiquem atentos para a presença da senhora Holmes por lá. Aquele que me trouxer a localização dela ganhará o dinheiro.

─ Sim, chefe! – exclamou Wiggins animado, atiçando os outros para fora.

─ Ozzie! – chamou Sherlock Holmes, gravemente. Um menino usando uma velha boina de lado virou-se para encará-lo. – Você terá um trabalho diferenciado, mas que exigirá ainda mais cautela do que o de seus companheiros.

─ O que é, senhor Holmes? – perguntou o menino.

─ Quero que se mantenha perto da universidade Durham e tente descobrir os horários do professor James Moriarty. – respondeu Holmes. – Mas lembre-se Ozzie, seja cauteloso. – advertiu gravemente.

─ Sim, chefe. – assentiu o menino, saindo atrás de seus companheiros. Holmes se sentou em sua poltrona quando a porta bateu, acendendo seu cachimbo em seguida. Watson permaneceu fitando a porta por alguns minutos até se juntar ao seu amigo, sentando-se de frente a ele.

─ Pensei que já tivesse pedido a Lestrade para que vasculhasse os limites da cidade. – comentou o bom doutor, confuso.

─ Eu jamais confiaria no julgamento dele numa questão tão importante, meu caro. – disse Holmes, soltando uma baforada antes de responder. – Meus meninos serão mais eficientes do que todos os homens do inspetor, eu lhe asseguro. Até que retornem, porém, eu receio que não haja muito que eu possa fazer. Moriarty planejou tudo muito bem, não há pontos soltos. Ele conseguiu removê-la de casa sem levantar a menor suspeita.

─ E quanto ao outro homem? O que o ajudou a leva-la? – indagou Watson. – Não consegue adivinhar nada sobre ele?

A expressão de Holmes fechou-se de súbito. Entre todos os comentários que seu amigo fazia, a insinuação de que suas deduções eram, na verdade, adivinhas, era o que mais irritava o detetive. O que seria necessário para que entendesse a sutileza precisa de seu método? É claro que poderia ter uma ou duas teorias sobre o caráter e aspecto do acompanhante de Moriarty, mas não faria diferença, pois eram apenas suposições genéricas que poderiam ser aplicadas a mais de um rufião de Londres. Afinal, no fundo, eram todos iguais. Holmes precisaria de um objeto, de alguma impressão do sujeito para começar a trabalhar em detalhes. Contudo, ele não lhe deixara nada disso. Apenas o vazio pela falta de sua esposa.

Watson calou-se frente à sombra que assolou o rosto de seu amigo, guardando seus pensamentos para si. Após finalmente perceber o poder de seu comentário sobre ele, apressou-se em se desculpar.

─ O fato é que não posso me arriscar muito, Watson. – disse Holmes por fim. – Moriarty deve estar acompanhando meus movimentos e cada passo que eu der para perto da resolução, serão metros que ele colocará entre Anne e eu. Compreende? Ele deve pensar que estou fazendo as perguntas erradas. E é exatamente por isso que devemos esperar pelo retorno dos rapazes antes de ousarmos realizar qualquer trabalho de campo. – concluiu ele estirando-se em sua cadeira, soltando outra baforada de fumaça.

†††

Anne estava trancada em seu quarto, pensando em como faria para se comunicar com Sherlock sem que Moriarty descobrisse. Enquanto isso, analisava o arco do violino que encontrara entre os escombros do outro quarto da casa. Alguns fios estavam gastos demais para sortirem algum efeito nas cordas que, apesar de um pouco gastas, ainda seriam capazes de produzir um som harmônico. Parou então para observar a espessura do fio do arco. Sabia que eles eram de crina de cavalo e voltou sua atenção para uma mecha de seu próprio cabelo.

─ Anne Holmes, se seu marido pudesse adivinhar seus pensamentos agora, ele provavelmente diria o quanto é louca. – murmurou ela fazendo força para arrancar um dos fios pela raiz. A dor fora suficiente para fazê-la repensar aquilo, no entanto, não conseguia afastar a ideia de que nas mãos de um musicista habilidoso, um violino poderia ser usado como arma...

Com isso em mente, ela continuou a puxar os fios necessários para preencher as falhas do arco. Tomando muito cuidado para não deixar que seus gemidos de dor atingissem um tom agudo demais, o que chamaria a atenção de seus carcereiros. Aliás, fazia um bom tempo desde a visita do espião da Scotland Yard que não ouvia nenhum som de seus captores. Não era tola o suficiente para achar que eles a deixariam sozinha para ir correndo relatar os passos de Holmes a Moriarty. Sendo assim, só poderia supor que estavam retirando o atraso de seu sono. Pelo que ela constatara, as olheiras sob seus olhos eram maiores do que as de seu marido quando ficava apenas duas noites seguidas sem dormir.

Quando as falhas estavam finalmente cobertas, ela voltou sua atenção para as cravelhas. Precisava ter certeza de que não iria acordar seus captores com um som desafinado – como às vezes acontecia quando tocava seu violino sem afiná-lo para irritar Holmes – para sua sorte, as cravelhas só precisaram ser giradas algumas vezes e as cordas ainda estavam fortes. Provavelmente o dono daquele violino não era dado à prática. Tanto melhor. Tocou um lá e saiu melhor do que ela esperava por um instrumento daquela idade. Continuou por mais alguns minutos, até não ouvir mais nenhum som vindo da casa além da música.

Todavia, o súbito som de risadas vindas do lado de fora da janela chamou a sua atenção. Um pequeno grupo de crianças maltrapilhas caminhava pela estrada, o que surpreendeu a senhora Holmes. O que um grupo como aquele estaria fazendo tão longe da cidade? Foi então que avistou um menino usando um lenço vermelho no pescoço...

─ Wiggins? – murmurou Anne, encantada. Um milagre. Mais que depressa, ela tornou a tocar, chamando a atenção do grupo de meninos para si.

─ Achei! – exclamou um dos rapazes, saindo em disparada.

─ Não! Oliver! – ralhou Wiggins ao ver Anne acenar compulsivamente para que eles parassem o garoto.

A senhora Holmes tornou a prestar atenção nos sons vindos do andar de baixo. Tudo ainda estava muito silencioso. Ela precisava pensar numa maneira de entregar uma mensagem para Wiggins para que ele a transmitisse a Sherlock. Se eles fossem apenas com o endereço, ele chamaria a polícia e seria uma questão de minutos para Moriarty movê-la dali enquanto seu espião os distraía pelo caminho mais longo até aquele pedaço. Mais do que a sua localização, o que Holmes precisava agora era saber que seus passos estavam sendo vigiados de perto.

Mais uma vez em direção a janela, ela fez sinal para que os meninos se escondessem. No entanto, Wiggins os impediu antes que corressem para dentro do capim alto. Anne o observou enquanto passava instruções aos outros, desejando de todo o coração que pudesse ouvir o que estavam combinando. Momentos depois, os outros irregulares partiram e apenas Wiggins ficou para trás, escondido entre a vegetação alta das laterais da propriedade que ficava de frente a dela. Anne fez outro sinal para que ele esperasse, dando a entender que realmente esperara que ele ficasse um pouco mais ali, depois fechou a janela e jogou-se contra a cama, pensativa.

Não havia papel por ali, muito menos uma caneta ou qualquer outro tipo de objeto com que pudesse escrever. “Você vai ter que improvisar, Anne”, uma voz fina sussurrou em sua mente. Ergueu-se por um momento, analisando o quarto. O que ali poderia ser utilizado como superfície para escrever? O lençol que cobria o colchão! É claro! Por St.George, nem mesmo Sherlock teria sido tão rápido! Com um pouco de força, ela conseguiu arrancar um pedaço do tecido. Mesmo assim, ainda existia o problema de como iria escrever... Porém, como um lampejo, seus olhos se voltaram para a lareira no canto direito de seu quarto.

Uma casa antiga como aquela deveria possuir uma fornalha a base de carvão para manter os criados aquecidos na cozinha, nos tempos em que realmente funcionara como uma residência. No entanto, o medo tomou conta da senhora Holmes assim que ela se aproximou da porta. E se eles acordassem? E se perguntassem o motivo dela ter descido... Por outro lado, aquela poderia ser a sua única chance de falar com Sherlock. Não poderia deixar que o medo lhe impedisse de tentar. Abriu a porta, analisando o corredor e partiu pela escada buscando ser tão cautelosa quanto seu marido para se movimentar.

Os dois gigantes dormiam profundamente nos sofás da sala de visitas e ela aproveitou a oportunidade para apressar o passo. Já na cozinha, pode constatar que realmente havia uma fornalha, mas não havia restos de carvão nela. Procurou nos armários, até encontrar um saco meio usado. Ao puxá-lo, acabou derrubando uma caçarola no chão, causando um estrondo enorme.

─ Droga... – murmurou apressando-se para esconder duas pedras de carvão nos bolsos do vestido, ao mesmo tempo em que tentava tornar o saco para o lugar certo.

─ O que está fazendo aqui? – indagou um dos homens, violentamente. Aquela altura ela tinha conseguido arrumar a bagunça e mantinha-se ao lado de uma bandeja com uma xícara, a chaleira em outra das mãos.

─ Um súbito desejo por uma xícara de chá. – disse friamente, mantendo a respiração compassada.

─ Suba. O professor deixou claro o horário em que deveríamos servi-la. – retrucou ele, pronto para arrastá-la pelo braço.

─ Ele também teve a consideração de explicar aos dois como funciona o organismo de uma mulher nas minhas condições? – desdenhou ela, desviando dele. – Eu preciso do chá agora e se não se importa, gostaria de fazê-lo eu mesma, porque se tiver que beber aquela coisa asquerosa que me serviram esta manhã novamente...

─ Basta! – urrou ele batendo o punho na mesa. – Dê o fora daqui!

Fingindo contra gosto, ela obedeceu e voltou para o quarto, esperando um pouco antes de dar seguimento ao seu plano. Então, um detalhe lhe ocorreu. E se Wiggins fosse interceptado? E se Moriarty já soubesse dos irregulares? Provavelmente já teria alguém esperando por um menino batendo em Baker Street com uma arma pronta para ser usada. Ela precisava pensar numa maneira de escrever aquela carta de modo que somente Sherlock fosse entender... um código... Bem, estava sem criatividade para pensar em algo elegante, mas ocorreu-lhe uma ideia de plágio de um dos primeiros casos que lera dos diários de Watson. “Os Dançarinos”.

Nele o criminoso se comunicara com a sua vítima através de mensagens codificadas por pequenos bonequinhos realizando passos de dança. Se ao menos soubesse o alfabeto todo daqueles desenhos... mas Holmes havia registrado as letras mais importantes para a frase que ela tinha em mente. Algo simples. “Tem um espião na Yard.” Estaria escrito por trás de desenhos que qualquer criança faria. Passos vinham do corredor e ela tratou de esconder o pedaço de carvão com o desenho em bolsos distintos. O homem que a abordara havia retornado com o chá. Não olhou em seus olhos e tão pouco ela ansiava por isso. Agora precisava pensar numa maneira de passar a mensagem a Wiggins.

Seus captores a mantiveram sob extensa vigília durante o resto da tarde na sala em que falara com Moriarty no dia anterior. A senhora Holmes tentava ao máximo não olhar pela janela para se assegurar de que Wiggins ainda estaria lá. O garoto era mesmo muito determinado. Permanecia imóvel e indetectável, a não ser por olhos mais atentos a nuances de mudança de cor entre as folhagens. As mãos de Anne coçavam, ela precisava passar aquilo adiante se não morreria, mas seus carcereiros pareciam duas estátuas. Ao cair da noite, no entanto, eles saíram para continuar a patrulha do lado de fora.

Ela esperou que estivessem em um ponto no qual nenhum dos dois veria o que se passava na janela da sala de visitas e chamou Wiggins com um assovio longo. O garoto se moveu nas sombras até o parapeito, mantendo-se sempre ajoelhado.

─ Entregue ao senhor Holmes, Wiggins. – disse entregando o papel a ele. – Somente a ele, entendeu? – frisou com ansiedade.

─ Sim, senhora. – respondeu ele saindo dali antes que os outros dois voltassem.

Anne observou-o saindo, fechando as duas janelas quando já não conseguia vê-lo mais. Suspirou aliviada e se apressou para o quarto, escondendo as duas pedras de carvão sob o estrado da cama, rezando para que Sherlock recebesse a mensagem e a decifrasse rapidamente.