Há mais perigo em seus olhos do que em vinte espadas.

William Shakeaspeare

A notícia de que Kaya Askook era uma Ofidioglota havia se espalhado muito mais rápido em Ilvermorny do que se esperava, diferente de todos os outros boatos que voavam em um meio interessante, semelhante a uma revista, chamado "O Berrador". Tudo ocorreu de forma tão abrupta, que ela não teve chances de impedir que esse suposto boato, chegasse aos ouvidos errados.

— Quer dizer ela fala com cobras? Que coisa mais estranha. — Ouviu um garoto do segundo ano comentar com alguém.

— Isso explica porque ela é tão esquisita. — Uma quintanista sussurrou em seu pequeno grupo de amizade.

— Dizem por aí, que a família dela mora em uma ilha cheia dos mais variados tipos de ofídios. — Especulava forma maldosa, a capitã do time de quadribol.

— Deve ser verdade, afinal o avô dela escreve livros sobre a magia nativo-americana. — Reforçava uma das artilheiras, em conformidade com o que sua capitã dizia.

E em meio aquela loucura de palavras sendo levadas aos quatro ventos com as mais absurdas invenções mescladas com a realidade, Kaya tentava buscar um refúgio onde ninguém pudesse julga-la.

O salão Sayer, no final daquele andar, parecia uma boa opção. Era sempre quieto, assemelhava-se a uma biblioteca em tamanho menor e com poltronas muito mais confortáveis. Poderia ter sido seu esconderijo perfeito, se já não houvesse um pequeno trio tagarelando sobre o mesmo assunto que a escola inteira disseminava.

— Você está falando sério? — Foi a primeira frase que ouviu, ainda que fosse um sussurro, quando entrou na pequena sala aconchegante como o escritório de seu pai costumava ser no passado. Ainda que fosse um sussurro, não era fácil manter as coisas em completo sigilo quando se estava em uma sala vazia. Mas, tratando-se da realidade, ninguém ali parecia fazer questão de usar um mero abaffiato. Afinal, quem se importava em ser ouvido? Ou pior, quem se importava em magoar alguém. — Kaya Askook é ofidioglota?

— Disseram que ela estava discutindo com uma das gêmeas... — Um rapaz respondeu para o primeiro. — Acho que era Nevaeh. É ela quem tem olhos azuis, não é?

— O que isso tem a ver com o fato dela falar com cobras? — Uma garota perguntou, parecendo um tanto entediada.

— Eu não sei muito bem, mas pelo que me contaram Kaya perdeu o controle com a prima.

— Elas saíram as unhadas e puxadas de cabelo? — O primeiro parecia interessado em saber mais detalhes.

Ouvindo o comentário, Kaya quase sorriu com a idiotice do rapaz e logo procurou um lugar para sentar. Talvez assim, com sua presença, a conversa acabasse. Sua poltrona não era tão distante de onde o grupo estava, mas eles estavam tão entretidos com as notícias do dia que nem mesmo se deram conta de que o grande assunto estava a pouquíssimos metros deles.

— Kaya puxou a varinha e começou a falar palavras esquisitas...

— E como vocês sabem o que era realmente a língua das cobras se ninguém mais no mundo sabe falar?

— Harry Potter era ofidioglota. — Um dos rapazes protestou. — E ele ainda está vivo.

— Isso é apenas um boato. — A menina rolou os olhos.

— E quanto a Câmara Secreta?

— Ele nunca falou sobre isso nas poucas entrevistas que deu. Deve ser apenas uma história para assustar as crianças britânicas.

— Alright, guys. — O garoto que contava a história chamou a atenção dos dois que discutiam para voltarem ao ponto principal da história. — Vocês acham mesmo que Kaya...

De repente o garoto parou, não completando sua pergunta. Alguém havia o cutucado para que ele visse algo que havia deixado passar. O trio estava a encarando e a garota ainda mantinha a mesma posição que havia usado para cutucar o menino. Kaya percebendo que já havia ficado tempo suficiente e constrangida pelos olhares, levantou-se. Poderia encontrar um lugar ainda melhor para ir.

Saiu com grande velocidade, abaixando a cabeça para que ninguém visse seu rosto. Sem ideias de um lugar vazio, sua mente vasculhou Ilvermorny em todos os cantos que conhecia e enquanto a ideia não chegava, seus pés a guiavam para o lado de fora. O ar puro talvez ajudasse a voltar a manter os pés no chão e esquecer dos problemas.

Deveria ter ouvido o conselho do irmão quando havia descoberto a Ofidioglossia e deixado todos saberem. Teria sido uma ótima escolha, exceto pelo número crescente de bruxos puritanos – também chamados por seu pai de bruxos das trevas – com a entrada do novo Presidente da MACUSA. Seria arriscado, mas provavelmente não seria pior do que o exato momento.

Não estava se sentindo tão mal por ter pessoas falando dela, mas o maior peso eram as palavras que havia ouvido da prima sobre sua mãe ser uma louca que iria entrega-la para os puritanos. No entanto, eram problemas demais se empoleirando em sua cabeça.

Finalmente do lado de fora, Kaya levantou a cabeça para olhar o céu acima de si. Até mesmo o vento revelava o que iria vir por aí. Isso a fez sorrir de verdade, pela primeira vez naquele dia fatídico. Não havia nada melhor do que a purificação do céu.

— K., eu sinto muito... — Ouviu a voz de uma das primas se aproximar. Era Heaven, irmã gêmea de Nevaeh, cujo os olhos eram verdes e o cabelo mais castanho e controlado que a outra. — Nevaeh me contou o que aconteceu...

— Heaven eu não quero falar sobre isso... Ou melhor, eu não quero falar com ninguém, ok? — Kaya começou a se afastar, sem olhar para prima.

— Calma aí, K. — E Heaven segurou a prima pelo pulso, impedindo-a de fugir.

Ligeiramente irritada, Kaya puxou o braço com força e olhou com fúria nos olhos da prima. — Me deixe sozinha, ok?

A garota não teve outra escolha a não ser deixa-la ir. E dessa vez Kaya tinha um destino certo.

Caminhou pelo gramado bem aparado sem olhar para trás. Não queria e nem mesmo precisava continuar presenciando a atitude das pessoas que dedicavam seu tempo livre para fazerem fofoca. Agora finalmente entendia o que os no-maj queriam dizer com "o ensino médio é um inferno". Estava em um ano correspondente a um dos terríveis anos escolares das pessoas comuns e talvez isso explicasse toda aquela situação ridícula.

Kaya permaneceu caminhando até que por fim parou em frente a um portão enferrujado. Trepadeiras se enroscavam ao ferro e algumas até mesmo ocultavam a placa que pedia para os alunos se manterem longe. Mesmo sabendo da existência deste item informativo, preferiu ignora-lo e empurrou o portão apenas o suficiente para passar por entre ele.

O caminho a sua frente não estava muito diferente da entrada. Tinha aquele clima sombrio típico de filme de suspense. Aos poucos seus pés desapareciam de sua vista, graças a neblina que via do Lago Nebuloso não muito distante dali. E no fim daquele caminho desnivelado estava uma enorme estrutura: a décima terceira torre.

Diziam as lendas que a Décima Terceira Torre havia sido criada para ser a Torre de Astronomia. Seu nome era originalmente Torre Polaris, em homenagem a estrela guia dos navegantes. Teria sido o lugar perfeito para se admirar o céu durante as noites mais claras, no entanto algo terrível aconteceu. Ninguém nunca soube exatamente o que aconteceu, mas havia uma única testemunha no local que foi encontrada apenas depois que as chamas da torre incendiada se aparam. Essa testemunha era um jovem com dezessete anos e ele havia sido morto naquele incêndio. Ele nunca contou a ninguém o que aconteceu naquela noite, há cerca de cento e cinquenta anos. Também não gostava de ter pessoas invadindo o local de confinação do seu espirito.

— A lua cheia é apenas em duas semanas, por quê me incomodam? — Disse o fantasma, surgindo de cabeça para baixo no teto da entrada da Torre.

— Eu não vou te incomodar, se não me incomodar. — Kaya se defendeu, colocando depressa o pé no primeiro andar. — Só preciso ficar sozinha.

— Não gritando como seu irmão, não me importo. — Resmungou e desapareceu.

Ignorando, ela permaneceu subindo. No último andar ninguém a escutaria. Estaria em paz consigo mesma, observando a noite cair sobre o castelo de Ilvermorny. Poderia até mesmo chorar, Caleb, o fantasma que ninguém além dos irmãos Askook conheciam o nome, não se importaria.

Porém, Kaya estava errada.

— Você parece triste. — Ele comentou aparecendo repentinamente na escada.

— De onde você veio? — Berrou, ligeiramente assustada. — Quase me fez cair da escada.

— Eu sou um maldito fantasma, pequena humana, posso fazer o que bem entender contanto que não saia dessa torre podre.

— Parece emocionante. — Rolou os olhos e prosseguiu a subida, passando por ele.

Seu corpo estremeceu. Passar por dentro de um fantasma não era a coisa mais divertida de se fazer, embora muitas crianças achassem isso incrível. Era frio e úmido, além de ter um estranho aroma de morte.

— Você pode pedir licença a próxima vez, senhorita Askook. — Resmungou.

— Você pode me deixar sozinha, por favor?

— Certo, broto, eu vou fazer esse favor para você. — Ele parecia irritado. — Afinal é super cavalheiro deixar uma garota de péssima aparência e humor invadir sua "casa" e fingir que está tudo bem.

— Primeiro, meu amado Caleb Corvinus, espero que um dia descanse em paz. — Parou no meio da escada para encarar o rapaz pálido e translúcido. — Segundo, ninguém fala "broto" há muito tempo.

— Oh, me desculpe se meu único contato com o mundo exterior é seu irmão e ele fala broto.

— Ele gosta de zombar da sua cara. — Confessou.

— É por isso que meu pai sempre mandava matar os lobisomens. — Bufou. — Eles nunca foram confiáveis.

— Antes de falar mal sobre um lobisomem, verifique se não está falando com a irmã dele, seu otário.

E determinada a deixar o fantasma solitário para trás, Kaya prosseguiu sua subida.

— Vamos deixar as diferenças de lado, certo? — Ele continuou falando e seguindo a garota.

— Que seja. — Disse indiferente. — Você é apenas um fantasma.

— E você costumava ser apenas uma garotinha quando veio aqui pela primeira vez.

— Eu tinha treze anos.

— E agora você já é uma bela donzela.

— Me sinto como um cavalo com você falando assim. — Resmungou. — E eu sei que faz muito tempo que não venho aqui. Não tinha motivos para isto.

— É por isso que quero saber o por quê de sua vinda.

— Nada pessoal, Corvinus, mas a minha vida está uma merda.

— Quer conversar?

— Você não vai mesmo me deixar em paz?

Naquele momento já estava óbvio que ele não iria dar a ela a paz que desejava, mas ao menos ele não era tão idiota quanto o restante da escola. Para ela, Caleb era um cara morto com bastante experiencia em ficar trancado num local onde ele apenas via pessoas normais no início no ano. Pessoas que contavam histórias ridículas sobre ele.

Talvez uma conversa amigável com ele a ajudaria a não se sentir tão mal.

— Você pode se sentar naquela poltrona ali no canto. — Ele sugeriu quando chegaram finalmente ao último andar. — É a única coisa que seu irmão não destruiu ainda.

— Eu prefiro me sentar no chão, tudo bem?

— Garotas desta geração. — Balançou a cabeça com um sorriso.

— Você sempre foi assim estúpido?

— Você é uma pessoa engraçada. — Ele riu.

— Obrigado. — Resmungou, sentando-se em um canto próximo a borda da torre onde deveriam ficar os telescópios. — Você pode me emprestar seu ombro?

— Isso foi um tipo de piada?

— Não, é sério. — Suspirou. — Eu quero me sentir um pouco mais confortável e geralmente quando estou me sentindo mal, meu irmão se senta do meu lado e eu me apoio nele.

— Não tem como você se apoiar em mim.

— Tem razão. — E dito isso, fez uma careta descontente. — Bom, eu posso fingir que estou encostada. Talvez só acabe com um torcicolo.

O fantasma suspirou e colocou-se sentado ao lado da garota que por sua vez inclinou a cabeça até que esta tocasse seu ombro. Ambos tentaram imaginar como seria aquele toque. Tudo era tão diferente quando a vida e a morte se encontravam. Não era romântico, não era fofo... Era apenas uma cena com uma busca incessante por alguma coisa que ninguém saberia o que era.

— Eu gostaria de ser um homem vivo de novo.

— Eu não gostaria que você fosse. — Deu um meio sorriso. — Se você fosse, talvez não fosse amigo do meu irmão... E também não poderia me ajudar agora.

— Conte-me o que aconteceu, gata.

— Pare de tentar usar gírias, estranho. Não combina com sua roupa de garoto rico de dois séculos atrás. — Brincou. — E, bom, se prepare para uma história um tanto melancólica.

E assim, Kaya Askook contou para o fantasma de Caleb Corvinus toda sua história. Contou sobre os boatos, a estranha conversa com uma cobra no Acampamento, a descendência de Salazar Slytherin no Novo Mundo... E ele apenas sorriu porque entendia o que ela estava passando. Nem mesmo precisou dizer nada. O simples fato de deixa-la falar, curou as cicatrizes daquela noite que trazia rapidamente a escuridão.

De repente, depois de toda história, um silencio reinou e o rapaz se levantou para fazer o que fantasmas faziam quando estavam entediados. Kaya não se importou em olhar para descobrir, mas ficou apenas observando o pouco que conseguia ver com a pouca luz.

— Há lampiões aqui, se quiser. — Caleb sugeriu.

Ela não respondeu. Algo na escuridão ao redor da Torre chamou sua atenção. Era uma luz fraca. E nessa pouca luz, a garota viu o olho de serpente a encarando. A troca de olhares durou alguns segundos e assim Kaya voltou a enxergar apenas a escuridão a sua volta.

— Temos uma visita. — O fantasma anunciou.

— K, você está bem?

— Finn, pode ficar aqui comigo?

Naquela noite, Finnick decidiu que não iria abandonar a irmã. Realmente as coisas na escola estavam complicadas, mas tinha esperanças de que no dia seguinte tudo seria melhor.

E como ele estava enganado.