Vikram nasceu para ser um viajante, seu pai mesmo disse várias vezes. Nasceu a bordo de um navio, quase um mês antes do tempo, para a preocupação dos pais. Preocupação em vão. Apesar de todos os médicos alertarem que ele poderia crescer fraco e doente, Vikram se tornou a alegria e a vida da casa. Do momento que aprendeu a engatinhar, não parava em lugar nenhum, e ninguém se atrevia a tirar os olhos dele por um segundo, temendo que ele se acidentasse em uma travessura infantil.

Seu pai, um mercador famoso e influente, adorava dizer que aquele menino se tornaria capitão de um dos navios e desbravaria o mundo, trazendo novas mercadorias e bugigangas para o mercado.

― Acreditem em mim quando eu digo ― ele falava para a família quando Vikram achava alguma nova pedra ou velharia que havia caído de alguma carroça na estrada que circundava a propriedade da família. ― Se existir mesmo algum demônio por aí, é este pequeno capetinha que vai achá-lo.

Todos riam, com a exceção da mãe de Vikram, que não achava que tais conversas envolvendo o demônio deviam ser ditas as crianças.

― E se tiverem pesadelos? ― costumava dizer.

― Besteira ― Seu marido retrucava, com um gesto de descaso. ― Ravi e Vikram não tem medo de nada.

Os dois irmãos eram tão unidos quanto eram diferentes, e isso era algo que ninguém conseguia entender.

― Ra-vi-i ― Vikram cantarolava enquanto rolava pelo chão do quarto do irmão mais velho, no verão seguinte ao seu quarto aniversário. ― Vamos lá pra fora!

― Está chovendo, Vikram! ― Ravi reclamava, agarrado em seu livro. Sentado a janela, lançou um olhar bem-humorado para o irmão mais novo. ― Por que quer tanto ir lá pra fora?

― Vamos ter uma aventura! ― Vikram sentou nos calcanhares, seus cachos compridos, cor de chocolate bagunçados e caindo sobre os olhos.

― Por que ir lá pra fora se podemos ter uma aventura aqui dentro? ― Ravi deixou o livro de lado, descendo para o chão.

― Não podemos ter uma aventura aqui dentro. ― Vikram cruzou os braços, seu lábio inferior se projetando para frente. ― Não tem nada legal aqui. Eu já conheço tudo!

― Você pode conhecer tudo que tem dentro da casa ― Ravi se aproximou, sussurrando conspirativamente ―, mas conhece tudo que tem aqui? ― Tocou com o indicador na testa do irmão.

― O que você quer dizer? ― Vikram arregalou os olhos azuis, tocando o mesmo local que Ravi havia anteriormente com as duas mãos.

― Você sabia que existe um universo inteirinho ai dentro da sua cabeça?

― Como pode? ― Vikram deixou as mãos caírem em seu colo, e começou a balançar levemente para frente e para trás. ― É impossível! Como pode um universo caber na minha cabeça se a casa é maior do que eu?

― Fecha os olhos ― Ravi instruiu, ao que foi obedecido. ― Agora... lembra quando fomos ao circo e vimos aquele elefante? ― Vikram assentiu, ainda balançando em cima dos calcanhares, seus lábios em um bico infantil. ― O elefante não é maior do que nós dois juntos? Então o que ele tá fazendo dentro da sua cabeça?

Vikram arregalou os olhos, seu queixo caído.

― É mesmo!

Ravi e Vikram eram sempre visto juntos, um sempre orbitando ao redor do outro. A medida que Vikram crescia e sua fome pelo mundo aumentava, Ravi seguia com ele em longas caminhadas, até que se enrolava no galho de alguma árvore para ler enquanto Vikram explorava as proximidades e vez ou outra vinha exibir um novo achado.

Os irmãos se amavam tanto que no dia que Ravi teve que deixar a casa para ir para o colégio interno, Vikram sentiu-se devastado.

― Está tudo bem, Vikram ― Ravi se curvou para ficar da altura dele. ― Eu vou voltar no verão e daqui a três anos você vai pra lá também e vamos estar todo o tempo juntos de novo.

― Promete? ― Vikram fungou, os braços cruzados e os olhos no chão.

― Prometo. Até lá, quero que faça uma coisa pra mim. Um favorzinho.

Vikram demorou a responder, esfregando os olhos com os pulsos.

― O quê? ― disse, por fim.

― Quero que ache pra mim uma rocha nova todos os dias. Nossa coleção tem que estar sempre aumentando, ok? ― Vikram então levantou o rosto e assentiu, um sorriso lacrimoso na face infantil. ― Bom garoto. Se comporte, ok?

A solidão que se seguiu a partida de Ravi era insuportável. Vikram sempre tinha sido uma criança cheia de energia, mas agora era o cúmulo da inquietude. Antes, era um explorador, sempre procurando novas paisagens. Algumas vezes pegava alguma rocha que achava bonita ou interessante, mas grande parte das vezes se contentava em ver. Porém, agora, estava sempre remexendo em tudo que via e encontrava, procurando as melhores rochas para a coleção que dividia com o irmão. Ravi tinha tido a intenção de dar um hobbie para o irmão que ajudasse a lidar com a saudade que viria, mas se tornou muito mais do que isso.

Os anos se passaram, e apesar dos irmãos continuarem a se amar imensamente, nunca mais voltaram a ser próximos como eram antes. Vikram havia esperado ansiosamente pelo verão, para que Ravi voltasse e aquela sensação em seu peito sumisse, mas na primeira visita de seu irmão nas férias, percebeu com horror que a sensação não havia ido embora. Ravi havia sido seu guia por muito tempo, e aqueles meses sem ele haviam sido desorientadores, mas a mudança havia sido feita. Vikram não tinha mais paciência para as lentas explorações de Ravi. Vikram queria tudo, e queria agora.

Quando finalmente atingiu a idade escolar e foi enviado junto com Ravi, percebeu que aquilo tudo seria uma perda de tempo. Os momentos entre aulas onde encontrava o irmão, eram seus únicos momentos de felicidade.

― Tem algo de errado comigo, Ravi ― Vikram confessou um dia, no terceiro ano dele no colégio interno. Os dois estavam sentados na janela do dormitório, usando uma faca para comerem maçãs. ― Está faltando alguma coisa.

― Não tem nada de errado com você ― Ravi sorriu, a preocupação estampada em seus olhos, idênticos aos do irmão. ― Tem algo de errado é com esse lugar. É pequeno demais.

― Não posso negar que colégio interno é mesmo sufocante ― Vikram soltou uma risada, mordendo uma fatia da maçã espetada na faca.

― Não estou falando só do colégio ― Ravi riu junto com o outro. ― Você é esperto demais para esse lugar. E pra quê? Nós dois sabemos que você nunca vai querer trabalhar negociando ações e mercadorias. Nosso pai até podia falar brincando, mas ele estava certo, sabe? Você vai sair pelo mundo, descobrir novas coisas.

― Eu só queria... um lugar onde eu me sentisse em paz. ― Vikram desviou seu olhar para a vista que se espalhava, o prado além dos muros, as montanhas e o rio que descia calmamente por elas. ― A última vez que me senti completamente em paz foi antes de papai nos dizer que você viria pra cá. A casa nunca mais foi a mesma depois disso. Eu... ― Comprimiu os dedos em frente aos lábios, se impedindo de continuar, mas sentiu a mão de Ravi em seu pulso, o puxando para baixo.

― Você precisa dizer, Vikram. Vamos lá, diga. Você vai enlouquecer se não o fizer.

Vikram voltou a olhar seu irmão mais velho. Fisicamente, não eram tão diferentes. Ravi tinha a pele mais clara, mas cheia de pintas pelo rosto. Os olhos azuis, idênticos aos dele, idênticos ao do pai de ambos. E o sorriso cheio de compreensão, porque ele sabia o que Vikram ia dizer, ele sabia e entendia, e entendia tão completamente e incondicionalmente que não via nem necessidade de perdoar, porque não havia nada de errado naquilo. Era apenas como as coisas eram.

― Eu achei que quando você voltasse... ― Vikram começou, mas novamente se interrompeu, os olhos queimando. ― Não foi o suficiente, eu queria que tivesse sido, mas não foi e eu não entendo o porquê! Agora tem essa coisa que eu sei que está faltando e eu não sei o que é, eu só sei que não consigo parar de me sentir sozinho!

― Você vai encontrar o que procura, Vikram ― Ravi falou com simplicidade. ― Você só está procurando no lugar errado.

Desde então, viajar o mundo se tornou a missão de vida de Vikram. Aos quinze anos, entrou em um dos navios da família, e o que deveria ser uma viagem que duraria apenas um verão, se tornou uma viagem de um ano e depois dois. Conhecendo novos locais, novas pessoas, conduzindo suas próprias pesquisas, Vikram chegou mais perto da felicidade do que havia em anos, desde sua infância.

Esse vazio não desapareceu totalmente,” ele contava nas cartas para Ravi, “mas me sinto um pouco mais tranquilo, como se realmente tivesse um propósito.

Seus pais, no início, não ficaram satisfeitos ao vê-lo abandonar sua educação, mas a medida que as cartas chegavam, a felicidade do filho os apaziguava, além de que, Vikram usava seu talento para achar o inencontrável e trazê-lo para casa a um preço razoável. A partir daí, era o dever de Ravi de apresentar a novidade no mercado interno. Tudo parecia estar entrando nos eixos e Vikram estava mais do que satisfeito em viver o resto de sua vida viajando, até que, uma epidemia de uma febre até então desconhecida tomou conta de Alto Capital. A cidade fechou as portas e Vikram passou meses sem notícias de ninguém de sua família. Não tinha permissão de sequer ancorar no porto. Se instalou em uma cidade um pouco mais ao sul, enquanto ouvia as histórias trazidas pelos marinheiros, de como a epidemia tinha se espalhado por toda as partes, e que apenas um arquipélago havia permanecido intocado.

― Tem quem diga que foi um navio que fez uma parada em uma dessas ilhas que trouxe a doença pro continente ― um marinheiro falava para a taverna, sua voz um pouco enrolada pelo álcool, mas seu raciocínio ainda inalterado. ― Eu não duvido nada. Já andei por aquelas bandas. Aquele povo pega uma febre dessas como se não fosse nada, e no outro dia, estão trabalhando como sempre.

Vikram refletiu sobre essas histórias longamente, tecendo a teoria que alguém, ao desembarcar no arquipélago, tinha pego a doença que era nada menos que rotineira para os habitantes do local, que já tinham se adaptado. Porém, a população do continente nunca tinha um contato com tal febre e tinha caído diante de sua força.

― Deve existir algum tratamento lá, Rajan ― Vikram comentou com o Imediato do navio de sua família. ― Se realmente essas histórias são verdade...

― O que existe uma chance de não ser... ― Rajan alertou, mas continuou a ouvir a teoria do garoto.

― A cura está lá. Queria ter uma forma de me comunicar com alguém de Alto Capital. Não é possível que só eu tenha chegado a essa conclusão.

Rajan tomou um grande gole de rum antes de coçar a barba, toda a sua expressão denunciando seu estado concentrado.

― Talvez tenha. ― Ao ver a expressão de Vikram, se apressou em continuar. ― Não é garantia! Existem as rotas de contrabando, sabe? ― Se debruçou sobre a mesa para sussurrar para o filho de seu patrão. ― Provavelmente dá para entrar na cidade por elas, mas sair é outra história.

― O que estamos esperando, então? ― Vikram sussurrou de volta, um sorriso ameaçando iluminar seu rosto! ― E pensar que você estava me escondendo isso esse tempo todo!

― Para não ter que vê-lo fazer besteira, como estou vendo agora. ― Rajan estalou a língua, em desgosto, mas em seus olhos havia um brilho de aprovação. ― Patrão me mata se algo acontecer à cria mais nova dele.

― Não seja dramático, Rajan ― Vikram revirou os olhos, se levantando. ― Agora mova esse seu traseiro inútil, temos que ir.

Entrar na cidade, como Rajan havia previsto, não tinha sido tão complicado, no fim das contas. Havia muitos guardas fazendo rondas, mas isso não importava a Vikram, que, familiarizado com as ruas, sabia muito bem como chegar ao palacete que seu pai mantinha na cidade, para o bem dos negócios. Não era um lar, como era a propriedade no campo, mas ainda era casa.

Quase chorou de alívio ao abrir a porta e se deparar com Ravi na sala, com um livro em seu colo. Pálido como a morte, mas muito bem vivo. Ravi arregalou os olhos ao ver o irmão mais novo, mas não demorou a se levantar. Seus movimentos eram lentos e doloridos, mas eles se encontraram em um abraço e tudo mais era detalhe.

― Como chegou aqui, Vikram? ― perguntou ainda abraçado ao irmão. ― Todos os portões estão fechados.

― Uma das rotas dos contrabandistas, mas isso não importa agora. ― Vikram se afastou um pouco, mas ainda tinha as duas mãos nos ombros do irmão. ― E nossos pais? Estão bem também?

A expressão de Ravi desmoronou, e Vikram sentiu o mundo cair com ela. Sentiu tudo girar ao seu redor, e suas mãos geladas nos ombros de seu irmão eram as únicas coisas que o mantinham inteiro.

― Papai não era mais forte e jovem como outrora. Aguentou por um tempo, mas... ― Ravi deixou seus olhos mirarem seus pés, quase como se esperasse que as respostas fossem brotar ali. ― Mamãe se foi um pouco depois. Sinceramente, acho que o que a levou não foi a doença, mas a tristeza.

Vikram sentiu seus olhos queimarem, mas não tirou suas mãos de onde elas estavam para secar as lágrimas que agora caíam.

― Somos só nós dois agora, Ravi ― sussurrou, sua voz tão semelhante a do menino que um dia fora. Vikram nunca havia se sentido tão pequeno.

Ravi segurou o rosto de seu irmãozinho com as duas mãos, enxugando as lágrimas, quase não percebendo as próprias.

― Somos só nós dois, Vikram ― Ravi sussurrou de volta, mas em algum ponto de sua voz havia uma promessa.

Naquela noite, os dois choraram os pais que perderam.

Na manhã seguinte, Vikram tratou de tentar salvar a cidade.