Às portas da catedral central de Silent Hill, antes católica, agora totalmente adaptada com símbolos, cores e imagens para pertencer à Ordem de Valtiel, o grupo de busca responsável pela zona residencial se reunia e se preparava para começar o trabalho, quando ouviu-se, após o longo rangido do arrastado das largas e pesadas portas de madeira do grande templo, a voz feminina da Guardiã da Doutrina.

– Por favor! – ela cobrou atenção e esperou até que todos olhassem para ela - Reverenciem Lord Reginald! - pediu Emilly, apresentando com um gesto de mão, o Mestre da Ordem, seu pai e pai de seu irmão, que descia sério e indiferente os degraus da escada que partiam da porta da igreja até a calçada, empunhando seu cetro de ponta piramidal - Ele partirá conosco na busca de hoje.

Todos: ela, Evan e mais dois homens, de nomes Otto e Monroe, reverenciaram-no, inclinando em silêncio seus troncos para a frente e pondo a mão direita sobre o peito, em sinal de lealdade e submissão.

– Devo ressaltar a importância de orgulhá-lo e orgulhar nosso deus, Samael, fazendo um bom trabalho hoje. - ela olhou com o canto dos olhos para Evan, como que em uma indireta. Ele retribuiu o olhar. - Logo, estaremos indo ao... – o Mestre fez um gesto com a mão e a interrompeu, para que se calasse. Ela o fez sem pestanejar.

– Estaremos indo ao bairro residencial. - Reginald concluiu com voz firme - Já fazem semanas que nossa Mãe Sagrada fugiu de nosso controle, graças ao descuido de nosso Guardião Evan... – o garoto baixou ainda mais a cabeça, evitando qualquer contato visual com seu pai - ...e perdeu-se aqui, em Silent Hill. Nenhum de nós sabe ao certo o que aconteceu, mas sua volta é necessária o mais rápido possível, o deus está morrendo e não vou permitir que isso aconteça. Por isso exijo esforço. Não vou tolerar moleza, críticas, falta de vontade ou de fidelidade para com nosso deus. Aqueles que falharem ou forem pegos em traição serão severamente punidos, de acordo com a gravidade de seu delito. - Evan engoliu em seco e seu coração acelerou - Estejam avisados. - ele disse, saindo na frente em direção à zona residencial, seguido dos dois homens, Evan foi atrás, mas Emilly o puxou em particular pelo capuz de sua vestimenta.

– Ouvi o papai conversando com um dos clérigos do culto hoje... – ela sussurrou.

– E daí?

– Ele demonstra estar muito insatisfeito com seu desempenho desde que a garota fugiu.

– Mas eu já disse que...

– Não importa! – ela interrompeu - É bom você acordar antes que acab...

– Perderam alguma coisa?! – Reginald gritou, bem mais à frente, indagando o porquê dos dois ainda estarem ali parados.

– Desculpe, meu lord! – Emilly baixou a cabeça e virou-se discretamente para Evan terminando sua frase em um sussurro – Antes que acabe que nem a mamãe! – ela saiu em direção ao seu pai, deixando o garoto parado, olhando para o vazio.

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As ruas desertas passavam uma a uma e Cinthya permanecia calada enquanto ambos andavam em direção ao rumo do carro desgovernado e, embora seu senso de dever e altruísmo a mandasse cooperar com Sebastian em favor do motorista desavisado, o seu ar de insatisfação por estar ajudando o rapaz era claro.

Sebastian, incomodado com o silêncio e com a situação, decidiu começar um diálogo para quebrar o clima do lugar.

– E então... - ele interrompeu a frase, esperando que ela falasse alguma coisa.

– Então? Quer dizer alguma coisa?

– Não, eu só... huh.... Me fala um pouco de você...

– E porque eu falaria um pouco de mim? – ela perguntou, esperando um bom motivo para tal.

– Sei lá... para eu poder conhecer você...

Cinthya parou. Olhando nos olhos do rapaz, ela relaxou o pescoço, pendendo a cabeça um pouco pro lado, franziu as sobrancelhas e tomou um pouco de ar antes de começar a falar. Tudo no momento convergiu para que fossem criadas diversas expectativas no rapaz, sobre que tipo de palavras importantes, reveladoras ou simplesmente palavras sairiam de sua boca naquele instante.

– Está me cantando?

– NÃO! – Sebastian não pôde conter o constrangimento.

Ela fez um gesto com a cabeça e riu, voltando a andar.

– Eu só não quero ficar andando por aí com você como se fosse uma completa estranha! Só isso. – ele então decidiu jogar duro, pondo-a numa saia justa - Somos os únicos aqui e preciso saber se posso confiar em você.

– Se pode confiar em mim...?

– Exatamente!

– Hm... - ela esfregou o queixo com a ponta dos dedos - Vamos pensar um pouco: se salvar sua vida não foi uma prova suficientemente boa para que você acredite que pode confiar em mim, então não vejo razão para que você realmente ache que eu estou te levando ao carro e não à uma armadilha. Não acha, Sebastian? – não foi aberto espaço para que ele respondesse a pergunta – Mas... se está vindo comigo, ou melhor, se me pediu para ir com você, suplicando pela minha ajuda como um filhotinho desamparado, então posso concluir que confia em mim o suficiente para que eu não precise dizer uma palavra sequer.

– Tuchê. – ele respondeu após um tempo processando a resposta dada. Era impossível falar com aquela mulher.

– Não existe nada de importante que você precise saber. Fique tranquilo. Vamos só ajudar o seu motorista, OK? Não tenho nada de especial.

"É mais difícil do que pensei...", ele concluiu, mas prosseguiu puxando assunto.

– Como não?! - Sebastian fez cara de surpresa - Você é super habilidosa! Acha que não sei a dificuldade e a precisão necessária para acertar um tiro daqueles àquela distância?

– Sabe é? - ela sorriu com o canto da boca.

Embora fosse calada e reservada, não manifestando muitos sentimentos ou emoções, Cinthya era uma pessoa altamente orgulhosa. Ela era uma mulher bonita, forte, inteligente e talentosa, sendo uma exímia usuária de uma enorme gama de armas, além de ter conhecimento de diversos estilos de luta, e ela sabia disso. Por esse motivo, não conseguia conter seu ego quando alguém o massageava.

– Claro que sei! - disse ele olhando para a arma na mão de Cinthya - Sua arma não possui mira ótica e nem a laser, e pelo tamanho do buraco que você deixou na criatura, a potência deve ser bem alta, o que acarretaria um recuo significativo para quem atira. Eram inúmeras variáveis que iam contra seu tiro mas mesmo assim....

– Muito bem... - embora não quisesse demonstrar, Cinthya estava impressionada com o conhecimento de Sebastian, vindo apenas de uma dedução. -... trabalha com isso?

– Na verdade não... mas tive um contato bem próximo na adolescência.

– Crianças não deveriam brincar com armas.

– Não era mais uma criança. - ele resmungou - E eu também achava que queria ser policial como o meu pai, aqueles que trabalham em operações e tudo mais... por isso meu pai me apresentou à carreira cedo e eu aprendi e pratiquei bastante então... tenho certo conhecimento.

– Ele deve ter orgulho de você...

Sebastian suspirou e pôs as mãos nos bolsos do sobretudo, baixando a cabeça.

– Na verdade... não. - ele sorriu, tristemente.

– Não?

– Não... eu acabei por não seguir a carreira e o decepcionei.

– Bom... talvez você possa ser excelente no que escolheu e provar que ele está errado em se decepcionar.

– Acho que é tarde demais para isso...

– Só é tarde demais para a morte, qualquer outra coisa é reversível.

– Exato...

– Ele...

– Já partiu, faz alguns anos. Minha mãe também, antes dele. - Sebastian concluiu.

– Sinto muito. – Cynthia tentou demonstrar pesar.

– Sim, sim... uma pena.

Ela percebeu a tristeza no rosto do rapaz, no entanto, inteligência emocional não era seu forte e ela permaneceu calada, apenas andando por mais vários instantes silenciosos.

– E você? – ele perguntou, após um tempo.

– Eu?

– Sim, você! É com certeza muito melhor do que eu. Como aprendeu? - Sebastian, no fundo, estava contente por estar conseguindo formular uma conversa.

– Hm.... Estudo, treinamento, um conjunto de variáveis. Sempre achei que deveria saber me defender, desde pequena.

– Crianças não costumam se preocupar em aprender autodefesa. - ele riu, lançando uma frase semelhante à que ela lançara momentos antes.

– Bom, eu precisava. Não gostavam muito de mim na escola e, bom, cavalheirismo não era o forte dos meninos. Então aprendi a lutar e dei uma surra neles. - disse orgulhosa.

Ele riu.

– Depois disso começaram a me respeitar.

– Você devia ser um doce.

– Com cobertura de açúcar. – disse, irônica.

Os dois dobraram mais uma esquina; Cinthya observou a névoa e não conseguiu ver o fim da rua, não sabia o quanto mais teria que andar. Estava frustrada.

– Deveria ter vindo de carro... – ela comentou.

– Está de carro?

– Sim. Deixei às portas da cidade... achei a cidade um tanto suspeita logo de cara e pensei que chamaria menos atenção e seria mais rápida e discreta se andasse a pé por aqui. – ela suspirou - Mas obviamente ela é bem maior do que eu imaginei para uma cidade pouco desenvolvida... estou começando a me arrepender...

– Não pode voltar para pegar? Seria muito útil caso o motorista precisasse de socorro urgente e nós...

– Uôu! – ela o interrompeu – Nós?! Sebastian, olha, você parece um cara legal, mas não existe nós! Admiro toda essa sua... coisa.... de ajudar as pessoas, mas... eu vou ajudar você a encontrar, e tão somente encontrar o motorista, tenho o que fazer aqui e preciso ser ágil. Isso se não demorar muito tempo... e já estou sendo paciente! Depois vou sumir nessa névoa antes de você dizer meu nome e então será só você e o motorista... ou o que sobrar dele. Estamos entendidos?

– Sim... – ele falou um tanto decepcionado, porém estava focado em um detalhe que acabara de lembrar – Cinthya, como conseguiu entrar na cidade de carro?

– Eu não poderia por algum motivo?

– O... o buraco! Tinha um buraco imenso e interminável que impedia qualquer um de entrar ou sair bem no meio da estrada... nem dava para ver o outro lado. Só um grande vazio cheia dessa neblina maldita.

– Não... o único buraco que eu vejo aqui... bom, olhe em volta. – ela abriu os braços, referindo-se a cidade – Pra ser exata, até me surpreendi com o estado da estrada. Estava muito preservada para uma cidade fantasma.

– Mas... – ele ainda tentou contestar - Ah... esqueça. Talvez você tenha entrado por outra via ou sei lá.

– Bom, por onde entrei havia um carro largado a beira da estrada, pouco próximo a uma casa abandonada de madeira.

– Esse carro! Foi pelo qual cheguei aqui, o pneu arrebentou. Então quer dizer que você e eu entramos pela mesma estrada? Isso é impossível, quando tentamos sair ela estava toda...

– Ei, veja. – ela o interrompeu, apontando.

Ao longe, próxima a uma curva, à beira da estrada, a névoa revelava uma grade de proteção rompida. Sua falha era mais ou menos da largura de um carro e a forma com que foi quebrada deixava ao entender que alguém a havia atravessado para fora da estrada.

– Acho que achamos nosso homem. – disse ela.

– Sim! – Sebastian assentiu, correndo em direção a grade, seguido de Cinthya.

A grade de metal era encarregada de assegurar que nenhum carro caísse por acidente no barranco de terra, imediatamente ao lado da rua, quando fizesse a curva, um tanto fechada. Porém, caído de ponta-cabeça no fim do barranco, Sebastian viu um carro totalmente estragado e acidentado.

– Meu Deus... – ele falou, descendo o barranco e temendo pelo estado do motorista - Meu Deus! - ele repetiu, mais surpreso, ao aproximar-se do carro e conseguir vê-lo sem a interferência da névoa: era o carro de Douglas, o pai de Emma, o mesmo que estava estacionado no Jacks.Inn, o mesmo em que eles conseguiram a pasta sobre a tal Heather Mason, o mesmo em que quase fora morto.

– O motorista... era ela!

– Sua amiga? - perguntou Cinthya, descendo com cuidado o barranco.

– Sim... mas... está vazio! - ele disse agachado à porta do carro, procurando alguém dentro do veículo.

Sebastian estava desorientado. Se Emma realmente tivesse dirigido aquele carro, então ela teria saído do Jacks.Inn, e mais, teria passado tão perto dele naquela rua... Se ao menos a névoa o tivesse deixado ver a identidade do motorista... Mas depois desse acidente, onde ela poderia estar, se estivesse morta ao menos teria ficado mo carro, mas se nem no veículo ela estava?! Antes ele possuía ideia de onde encontra-la, mas agora, ela poderia estar em qualquer lugar, em qualquer situação. Frustrado, Sebastian sentou no chão e pôs as mãos na cabeça, apoiando seus cotovelos nos joelhos.

– Bom... - disse Cinthya - ...você encontrou o carro e...

– Você cumpriu sua parte do acordo. Obrigado. - falou, sem levantar a cabeça.

Ela assentiu com a cabeça e voltou a subir o barranco.

Sebastian olhou para o lado, dentro do carro, e viu vários objetos espalhados, de medicamentos à papéis, todos estavam na bolsa de Emma. Era mesmo ela que estava lá, dirigindo, mas agora era tarde.

Sem nenhum motivo ou razão, talvez por curiosidade, Sebastian, ainda de cabeça baixa, estendeu sua mão para dentro do veículo e retirou uma pequena folhinha amarelada caída junto a tantas outras coisas, ele levantou o rosto e desdobrou o papel diante de si. Dizia:

"Não fazemos ideia de como encontrar Claudia, não existe ninguém nessa maldita cidade. Eu desistiria de procurar se não devesse isso a Heather. Decidimos então nos separar, Heather irá ao Hospital Brookhaven, eu irei ao Lakeside Amusement Park, um antigo parque de diversões da cidade. Esses pontos se encontram nos dois extremos dessa zona da cidade, teremos a oportunidade de passar por vários lugares e ter uma abrangência maior na procura. Apenas descansaremos um pouco da viagem exaustiva e depois vamos nos pôr a caminho."

– Isso é do Douglas... – ele levantou do chão, ligando os pontos em sua mente - ... é pra lá que ela está indo! – exclamou.

– Disse alguma coisa? – Cinthya virou-se, quase ao fim do barranco.

– Lakeside Amusement Park! – ele sorriu.

Ela franziu a testa, sem entender.

– Eu... eu acho que ela está bem! E mais, sei para onde ela está indo! – ele retirou o mapa que obteve na biblioteca do seu bolso e o abriu, correndo barranco acima e achegando-se à Cinthya.

– Aqui! Lakeside Amusement Park! Só preciso atravessar essa ponte e chego lá! É do outro lado do lago! – ele disse, apontando o dedo para o mapa.

– Hm... Interessante...

– O quê?

– Estou indo nessa direção.

– Não brinca!

– Não, não brinco. É meu próximo destino. Acho que posso guardar um pouco mais as suas costas até a próxima parada.

Ele sorriu.

– Acho que posso dizer a sorte está do meu lado. – ele coçou a cabeça.

– Se alguém está do seu lado aqui, eu. Gosto do crédito pelos meus trabalhos, é bom aprender já que vamos passar mais algum tempo juntos. – ela sorriu, saindo na frente – E para sua informação, eu sou uma melhor companhia do que qualquer sorte por aí. – ela piscou.