Shiver

I Will Reignite


Estava em uma grande gruta.

Seu corpo mandava raios de dor em vários pontos, principalmente quando se levantou.

Não conseguia ver muito, só que havia um grande portão na sua frente. Grades altas a separavam do que estava do outro lado. Percebeu que estava completamente nua, em sua forma mais bruta. Sua mão esquerda segurava uma chave, e seu pescoço se amarrava com o medalhão dourado.

Aproximou-se do portão de ferro, tentando ver o que tinha do outro lado. Só conseguia ver vultos e ouvir ruídos mínimos. Virou-se de costas. Viu então que era ela quem o portão guardava. Uma grande parede se erguia, fazendo com que ela ficasse presa.

Não captou muito a lógica. Porque estar presa, se segurava a chave para a saída em suas mãos?

E então lhe ocorreu. Ela tinha a escolha. Poderia ficar presa, ninguém a incomodaria. Assim como poderia sair.

O lado de fora era escuro, mas algo a puxava para ele. Com a chave em mãos, abriu a porta e saiu.

Sua visão se tornou clara ao ver o que tinha daquele lado da gruta. Uma enorme criatura animalesca estava a postos, olhando em seus olhos. Seus pelos eram de um cinza esbranquiçado, e seus olhos eram negros e imprevisíveis. Era grande, forte, e poderosa.

Era um lobo.

O animal andou até ela, e deu a volta em seu corpo. Ela fez o mesmo. Estavam se reconhecendo.

Tocou os pelos macios e grossos, as orelhas pontudas e aguçadas, o focinho fino e preciso. O animal a farejou em todos os cantos, destemidamente.

O grande lobo parou. Deitou-se e abaixou a cabeça perante ela. Estava mostrando confiança, ela via. Tinha a aceitado.

Sentou-se a sua frente, e olhou pra baixo. Estava mostrando o mesmo. Reciprocidade.

Um cheiro forte de desinfetante e álcool gel preencheu seus pulmões enquanto ela ouvia um barulho irritante.

Bip. Bip. Bip.

Miku abriu os olhos, e a claridade ofuscante fez que sua cabeça pulsasse, dolorida. Piscou com força, olhando ao redor. Tudo tinha sido só um sonho. Incomum, mas não passaria disso.

Sentia algo estranho dentro de si. Sentia raiva de algo, fúria, medo. Como se em qualquer lugar tivesse perigo.

– Filha! – Miku reconheceria a voz em qualquer lugar. Olhou para o lado, exasperada, e viu sua mãe, segurando um lenço de papel e os olhos vermelhos, inchados. Tinha passado um tempo chorando, pelo que via. – Como se sente? Está tudo bem? Dói muito?

Ela tentou se levantar, apoiando-se no braço esquerdo. Uma nova parte sua, preocupada e instintiva, a mandava sair dali o quanto antes. Uma dor pungente percorreu de seu ombro para seu pescoço e cólon. Gemeu, soltando o braço e caindo sobre o travesseiro. Não sabia o que estava acontecendo, porque estava num hospital e o porquê de sentir tanta dor. Ou o porquê de sentir que seu corpo agora não era mais só seu.

A porta branca se abriu e um homem de jaleco passou por ela. Tinha cabelos castanho-chocolate como os olhos, e usava óculos. Parecia não ser muito mais velho que ela, talvez tivesse vinte e cinco anos. Um pânico se acumulou dentro de si, como se ele fosse fazer mal a ela, por alguma razão.

– Ora, vejo que está acordada – sua voz era de certo feliz, enquanto ele pendurava uma fotografia de um raio X sobre um quadro negro. – é muito sortuda, senhorita Hatsune.

– Ser atacada por um urso é sorte aqui na América? – Luka se pronunciou, entrando na sala também. Tinha um olhar frustrado, cruzando os braços e indo para perto de Miku.

– Ser atacada por um urso e sobreviver, sim, é sorte em qualquer lugar. – ele respondeu calmamente, se apoiando no pé da cama, enquanto escrevia em uma prancheta. – Pode se considerar um milagre, senhorita. Não sei o que um urso estava fazendo tão perto das casas, mas não te queria morta. Fez um único ataque, muito preciso. Não acertou sua aorta por um centímetro e meio.

– Não, não era um urso! – Miku se pronunciou pela primeira vez, tremendo ao se lembrar do ataque. – Era algo muito maior!

O médico desceu os olhos para ela e depois para Luka, onde um olhar apreensivo foi trocado.

– O lugar não tinha muita iluminação – Luka interferiu – e na adrenalina, você pode ter pensado...

– Luka! Eu sei o que eu vi!

– Em todas as circunstâncias – o médico interrompeu, aumentando a voz. – teremos que fazer alguns poucos testes. Coisas simples, reflexos, e tudo mais. Sua clavícula esquerda foi quebrada com a mordida, mas não se preocupe, sua recuperação parece ser muito rápida, em duas semanas estará completamente curada. Como disse, é uma mulher de sorte. Ursos normalmente não atacam para deixar sobreviventes. Devemos ser gratos – outro olhar para Luka, um repreensor – por ter sobrevivido.

Ao chegar em casa, Miku não falou com ninguém. Tinha conseguido acalmar o sentimento que acordou com ela, mas ainda tinha um pouco de apreensão. Via o mundo de um jeito diferente.

Havia sofrido três dias terrificantes no hospital, com aqueles testes ridículos. Trancou-se em seu quarto, e se deparou com sua cama cheia dos presentes que havia ganhado na segunda-feira. Ainda não havia aberto nenhum.

Abriu um por um, guardando cada um em seu lugar. Ganhou uma caixa de música com uma pequena bailarina, um vestido simples, duas camisas, um par de brincos que veio com um colar, um gatinho com cabeça dançante para plugar no capô de seu carro, um CD, e um livro.

Chegou ao presente listrado de Gumi, e ela sorriu só de imaginar o que era.

Desatou o laço e tirou a tampa da caixa. Puxou para fora uma lingerie de renda negra, acompanhada por um pacote de quinze camisinhas. No fundo, um bilhete de Gumi.

“Caso se dê bem, vai achar tudo o que precisa aí dentro. Divirta-se!

– A melhor chefe do mundo.”

Ela riu ao ler o bilhete, e guardou o presente numa gaveta em seu armário. A tala em seu ombro machucava, e quando ela se deitou para dormir, não havia posição confortável.

Após uma noite terrivelmente mal dormida, Miku acordou indisposta para um dia de trabalho. Mesmo que tivesse um atestado, não queria ficar em casa. Não ia parar de ganhar seu dinheiro por causa de uma clavícula injuriada, por favor.

Ao se sentar em sua cama, uma sensação estranha a aconchegou. Nos outros dias, sempre sentia as juntas do ombro doendo quando se movia, mas não naquela manhã. Tocou os ossos do ombro e não sentiu nada. Nada.

Não demorou nada para arrancar aquela tala e jogá-la longe, movendo seu braço esquerdo livremente. Agora estava feliz.

Vestiu seu uniforme animadamente, mas não antes de checar as costas no espelho. Agora sua tatuagem tinha duas grandes marcas de garras estampadas.

Não foi um urso que fez isso comigo. Ela pensou, enquanto terminava de se vestir. Dirigiu até o Society Coffee, lugar onde trabalhava todos os dias em meio turno.

Estacionou o Spyder na vaga para funcionários e entrou pelos fundos.

– Miku! – quando Gumi a viu correu em sua direção. – Você está bem? Sua mãe me disse que um urso a atacou! Porque veio ao trabalho?

– Calma! Estou bem, não se preocupe. Não quero ficar deprimida em casa, não sou assim. E a propósito – Miku tirou seu cartão e bateu no relógio, mostrando o início do expediente – eu vi seu presente. Safada.

Gumi a seguiu até o caixa, rindo.

– Tenho certeza que não irão faltar oportunidades para que os ponha em prática.

Miku riu, colocando o jaleco com seu nome e amarrando o cabelo.

– Eu fico com o caixa hoje. Vá fazer o que quer que os chefes façam as oito e dez da matina.

– Se precisar de alguma coisa, qualquer coisa, é só me chamar, ok?

– Ok.

Tudo saiu tranquilo pela manhã, até as dez. As dez, um cliente em particular chegou.

O homem de cabelos anis passou pela porta, e respirou fundo. Algo dentro de seu corpo gritou, e um grande medo se apossou de seu corpo novamente.

Ele se aproximou do caixa, mãos no bolso e óculos aviadores.

Miku cravou as unhas na madeira do balcão disfarçadamente, olhando para baixo quando ele se aproximou. Não era medrosa, mas o pânico não parecia querer abandoná-la.

– Que acompanhamento você recomenda para um cappuccino? – sua voz era grave e mesmo nessa mera frase, tinha um tom presunçoso.

Ela demorou um pouco para responder, como se quisesse ter certeza que ele falava com ela.

– O bolo de mel é muito bom. – ela falou baixo, prendendo a respiração quando terminou de se pronunciar. O homem balançou a cabeça positivamente enquanto tirava os óculos e olhava bem para ela. O olhar permanecia afiado e cortante.

– O que aconteceu com seu ombro? – a mudança de assunto foi como um choque térmico para ela. Ela gaguejou um pouco, até se lembrar de que, mesmo que não sentisse, ainda tinha uma enorme cicatriz de mordida em seu ombro, muito aparente.

– Ao que parece, fui atacada por um urso. – ela arqueou as sobrancelhas. Não importava quantas vezes lhe dissesse, ela já tinha se convencido; não foi um urso que havia visto na floresta.

– Não parece muito certa disso. – ele se debruçou sobre o balcão, a olhando curiosamente. Estava certa. Ele era pura presunção.

Miku suspirou. Estava pronta para responder, quando alguém os interrompeu.

– Kaito! Quanto tempo! O que faz aqui, velho amigo? – a voz de Gakupo ecoou pela pequena lanchonete, e ele avançou na direção do homem. E então percebeu Miku ali, e seu olhar mudou ligeiramente. – Miku, como você está? Luka me falou que foi atacada por um urso.

Ela balançou a cabeça positivamente evitando contato visual.

– Senhor, eu posso anotar seu pedido? Um bolo de mel e um cappuccino, certo? – ela falou cabisbaixa forçando um sorriso típico de atendente. O rapaz iria responder algo, mas Gakupo o interrompeu.

– Adoro o bolo de mel daqui! Traga dois então. – ele puxou o tal do Kaito para uma mesa afastada, onde começaram a discutir algo seriamente.

– Quem era o gatão? – Gumi apareceu do nada, fingindo estar ocupada em limpar o balcão.

– Um cara que quer um bolo de mel e um cappuccino. Aparentemente Gakupo quer um também, então peça dois.

– É, eu vi o Gakupo sendo um rude e interrompendo a conversa. Quer que eu derrame café quente nele?

Miku riu com a infantilidade da amiga.

– Achei que havíamos passado dessa fase no ensino médio.

– Essa fase nunca vai passar pra mim. – Gumi balançou a cabeça negativamente. – Vou levar os pedidos deles, não se preocupe.

Quando Gumi saiu, os olhos de Miku acharam sozinhos o caminho até a mesa de Gakupo e Kaito. Seu cunhado se sentava de costas para ela, e Kaito de frente. Mesmo que falasse com Gakupo, seus olhos estavam nela e nela somente. Dessa vez, ela não se preocupou em desviar. Queria olhar mesmo. Ser tão descarada o quanto pudesse.

A atmosfera na mesa pareceu pesar enquanto eles falavam de algo, e Gakupo virou o rosto para olhá-la também.

O medalhão que tocava sua pele por baixo das roupas lançou um raio gelado de arrepio que percorreu seu corpo inteiro, como se a comandasse para olhar para baixo. Sentia-se como um soldado de linha de frente olhando para dois grandes generais.

Fingiu estar contando o dinheiro do caixa enquanto os olhares dos dois pairavam sobre ela. Estranhamente, ela se pegou rosnando para algo, como um cachorro. Olhou ao redor, e quando viu que ninguém havia reparado na sua atitude completamente estranha, voltou seu falso trabalho em contar moedas de cinco centavos.