Aquela sensação de frio fazia-me refletir sobre minha trajetória, minha vida. "Isso realmente vale a pena"?, "eu estou fazendo o certo?". A verdade é que nunca saberei. Minha única certeza neste momento é que vivemos num inferno, e eu escolhi o lado dos oprimidos aos que oprimem. Como você, meu pai.

Naquele dia, acordei no meio da noite com alguns gritos vindo do quarto ao lado – seu quarto e o da mãe. Preocupado, levantei-me e dei de cara com o senhor, pensativo de frente a janela.

Eu era muito novo para entender, mas hoje eu compreendo. Você nunca foi o mesmo desde que herdou as habilidades do Titã Martelo de Guerra, o fardo era grande demais e eu entendo porquê. O senhor nunca esqueceu o rosto das pessoas que esmagou, suas últimas palavras ou seus nomes, e agora, essas memórias estão dentro de mim.

Eu também não consigo esquecer, meu pai. Eu convivi pouquíssimo tempo entre os marleyanos, e repetidamente tive que martelar na minha cabeça "eu sou um penetra. Eu não sou deles".

Me diga, meu pai. Somos tão parecidos de corpo e mente, a única coisa que distingue um marleyano a um eldiano é sua descendência e nacionalidade, então por que nos matamos? Construímos estradas, fertilizamos o solo e nos gabamos pelo hiper desenvolvimento do continente, mas no final, de nada vale. Tudo que construimos e evoluímos foi apenas para nós mesmos, à custo do sangue de inúmeros países, assassinados, saqueados, tomados e estuprados.

Pai, é pecado sentir raiva de seu próprio povo?

— Não. — Meu coração parou. É você?! — Garric, nós nascemos em berço de ouro, mas temos visão para os que não tiveram a mesma sorte. Lutar pelos oprimidos não é crime, é justiça. Nosso povo deve muito àqueles que por tanto tempo oprimiu, e finalmente chegou a hora.

Mas mesmo a minha mãe...

— Sua mãe é tola. Vive de vinho e caviar, nunca sentiu e tampouco irá sentir o amargo gosto de sangue, o fardo de ter uma pilha de corpos nas costas ou o remorso de lutar por uma guerra que não é sua, que não tem sentido.

Então eu devo continuar?

— Você deve ser a voz para aqueles que não podem gritar, deve ser os olhos para os que não podem ver, deve ser a lança e o escudo para que eles possam lutar. Você é aquele que confio para mudar este mundo, então lute meu filho. Lute por liberdade.

A transe se desligou num flashe intenso na cabeça de Garric, que deixava as lágrimas escaparem dos olhos e escorrerem por seu rosto. Finalmente havia compreendido o sentido de sua existência, seu valor na história e o seu cargo.

— Eu finalmente entendi — disse, atraindo olhares de curiosidade e confusão — nós matamos e saqueamos por milênios, mas nossa era já chegou ao fim. Você não vê, Lisa?! O ódio que Eldia espalhou pelo mundo durante todo esse tempo?! — Lisa continuou com os olhos frios, cerrando os punhos. — Você sempre foi um exemplo de bondade, então por que tão seletiva? Por que abraça uns enquanto esmaga os outros?! O que a difere das pessoas que mata?!

Lisa ficou em silêncio por alguns segundos, numa feição raivosa. A mãe de Garric não acreditava nas palavras que ouvia de seu filho, e acolhia as crianças pequenas que não paravam de chorar. Já o irmão de Garric arrastava-se até um criado-mudo.

— És mais tolo do que parece, Garric Tybur. — afirmou a ruiva, num tom completamente atípico do que está acostumada. — O ciclo de ódio existe há muito tempo, e as guerras não começaram com Ymir Fritz. A opressão, a batalha por terra e ganância sempre existiram, e nunca vão deixar de existir. Veja bem, acha mesmo que Marley não faria o mesmo no nosso lugar?! Infelizmente o mundo funciona assim, ou você se adapta a ele ou então é deixado para trás. A paz não é uma opção.

Pela primeira vez para muitos, Lisa ergueu o seu tom. Garric ficou calado, pensativo, olhando para a ferida na palma de sua mão. Cerrou os punhos e mais sangue foi escorrendo pelo membro, e com um olhar flamejante, foi se preparando para erguer seu tom de voz.

— Você pode ter razão, Lisa. Mas eu vou me agarrar a essa fagulha de esperança. Eu já vi mortes demais. — O tom de voz se levantando aos poucos, junto a fúria e os batimentos de seu peito. — Irmão, agora!

Estavam tão ocupados com Garric que ninguém notou Aldrich e sua vagarosa movimentação, ou tampouco desconfiaram que ele, assim como Garric, está envolvido nisso. Com a mão no gatilho do sinalizador prateado, apertou e imediatamente um som agudo se dispersou por todo salão, e inclusive para fora da casa.

— Seu estúpido! — Um dos gêmeos ergueu seu mosquete contra o garoto que havia acionado o sinalizador sonoro.

De repente, um grupo de cinco pessoas adentraram a mansão de maneira súbita, destruindo as janelas e avançando. Eram todos encapuzados, cobertos por mantos e com a identidade protegida.

O segundo Manifield tentou disparar contra um deles, mas recebeu um tiro certeiro na cabeça. Sangue jorrou para todos os lados e ele caiu morto.

— Irmão! — gritou Lisa.

Subitamente, mais um disparo. O tiro acertou em cheio Lisa, que protegeu o rosto com o braço, atingido e coberto de sangue. O gêmeo restante não teve tanta sorte, e caiu com um tiro no pescoço.

Os encapuzados se moviam céleres, e agilmente agarraram Orla e as crianças, arrombando a porta que dava acesso ao porão graças a Aldrich. A pobre matriarca gritava e chorava por seu filho, talvez por raiva, talvez por tristeza.

— Vai ficar tudo bem, certo? — indagou Lisa, tentando estancar o sangue do gêmeo que ainda respirava. Seus olhos estavam cheios de lágrimas, e nem mesmo ligava para suas feridas, apenas para o parente machucado.

— Irmã, eu não quero morrer... — o garoto disse, interrompido por uma tosse que fez sangue transbordar de sua boca.

As lágrimas se misturavam ao sangue que cobria parte do rosto do ruivo, que aos poucos foi perdendo a vida. Por fim, acabou ali, vítima de um dos encapuzados, nos braços de Lisa.

Aos poucos, Lisa foi deixando o corpo sem vida de seu irmão ali, no chão. A face de tristeza foi ao pouco se transformando numa completamente diferente, de ódio. As lágrimas que caiam limpavam o sangue de seu irmão, que ficou parcialmente em seu rosto.

Olhou para Garric e viu uma expressão de dó, mas não precisava daquilo. O homem hesitava, mas respirou fundo e voltou ao olhar determinado de antes.

Da ferida da ruiva, faíscas amareladas saiam. Em resposta, da do Tybur também.

— Eu sinto muito, não precisava acabar assim. — diz Garric, enquanto as faíscas circundam seu corpo.

Lisa nada disse, mas aos poucos foi se levantando do chão. As pilastras que compõem o salão começaram a rachar, e a casa a tremer.

— Eu vou... — O corpo de ambos começaram a brilhar naquele mesmo tom dourado — TE MATAR!

E no centro da capital de Eldia, Lago, a luz crescente escapou na forma de explosão, destruindo aquela residência e fazendo as nobres estruturas ao redor daquela cederem. Os olhares assustados e curiosos eram direcionados ao céu, onde entre as nuvens, dois raios dourados circulavam um ao outro até desabaram fortemente onde a explosão se originou, gerando um enorme estrondo.