She

Am I allowed to look at her like that?


O que pode haver no outro que atinge em nós aquele espaço morno e estrelado de dentro, aquele lugar onde se forjam os sonhos e os desejos? Asami passara os primeiros vinte anos de sua vida ignorando a questão para si, mas agora a pergunta a rondava com certa insistência, especialmente depois que Korra e ela haviam atravessado o portal para o mundo espiritual.

Sendo quem era, Asami havia tido, ao longo da vida, a oportunidade de conhecer muitos lugares pelos quatro cantos do mundo, mas nenhuma viagem que tinha feito até então – por mais que tivesse lhe rendido memórias incríveis – se comparava a essa. Desde que Korra tinha proposto que tirassem férias juntas, ainda no casamento de Varrick, não importava como todos os dias transcorressem, Sato amanhecia com um comichão de expectativa, uma alegria discreta que a ajudava a lidar um pouco com o pesar, os sentimentos ambivalentes e o luto por Hiroshi.

E uma semana depois, quando elas de fato partiram, foi como se a vida estivesse recomeçando. Passar por aquele feixe de luz segurando a mão de Korra tinha sido um divisor de águas. Nenhum lugar do mundo físico se comparava ao espiritual. O lugar era onírico e se desdobrava em paisagens mais bonitas do que as anteriores à medida que se caminhava. Até o tempo era percebido e apreendido e uma forma distinta, difícil de conceituar.

Naqueles primeiros instantes, tudo tinha sido florido e solar. Elas haviam desbravado juntas recortes de florestas mágicas cheia de entidades luminescentes. Nenhuma delas se incomodou em dar a mão uma a outra em escaladas, mergulhos, subidas íngremes ou em trechos apertados. Mas passados duas luas desde a chegada, Asami começou a sentir um principio de incomodo pelo assunto que estava em suspenso há mais tempo do que parecia necessário agora.

Porque elas haviam se beijado no Templo de Ar quando Korra tinha voltado para Cidade República. E tudo bem que as coisas tinham ficado esquisitas e potencialmente perigosas com Kuvira tentando criar um império megalomaníaco no Reino da Terra, mas estava tudo bem agora, certo? Asami não poderia ter inventado aquele episódio, mesmo ele sendo bom demais para ser verdade.

— Quero te levar para conhecer alguém hoje. – Korra anunciou, entusiasmada, na manhã do terceiro dia. – Acho que você vai gostar.

— Korra, eu...

— Sim? – algo no sorriso bonito e empolgado dela fez com que Asami se resignasse e balançasse a cabeça em negativa.

— Nada. – suspirou, recolhendo o saco de dormir.

*

— Iroh, essa é minha amiga Asami. – Korra apresentou. – Asami, este é...

— Eu sei. – ela murmurou, maravilhada, fazendo uma pequena reverencia em saudação. – É um prazer, senhor.

— Apenas Iroh, querida. – o velho de aparência simpática pediu num tom bondoso. – Venham, eu estava mesmo pressentindo que teria boas visitas hoje. – ele as guiou até uma pequena mesa ao ar livre, perto de um chalé idílico.

Havia xícaras e um bule de chá já dispostos. Korra olhou para o recipiente, desejosa.

— Menta mística? – quis saber, os olhos brilhando em expectativa.

Iroh apenas lhe deu uma piscadela de confirmação antes de servi-las.

— Puta merda. – Korra sussurrou depois do primeiro gole e Asami desviou os olhos da expressão de satisfação que ela fez porque isso lhe provocava pensamentos perigosos. – Desculpe pelo xingamento, Iroh. – a Avatar acrescentou, recuperando-se.

Ele riu, meneando a cabeça, sem parecer incomodado.

— É bom saber que eu não perdi a mão com a minha especialidade.

— Isso está maravilhoso mesmo. – Asami concordou, depois de bebericar um pouco da bebida.

— Quando Korra ainda era um rapaz careca, ela adorava usar todas as desculpas possíveis para tomar um cházinho no meu estabelecimento em Ba Sing Se. - Iroh contou para Asami como um espécie de avô orgulhoso.

— Tenho certeza que sim. Ela deve ter sido esperta em todas as suas versões anteriores, embora eu prefira essa. - Sato comentou, ainda evitando olhar para a garota.

Iroh sorriu, condescendente, e olhou para Korra que ruborizava.

— Ela é inteligente mesmo. Embora às vezes precise de uma forcinha para se lembrar disso.

— Ei! Vocês sabem que eu estou aqui também, certo? - Korra murmurou, fazendo Iroh gargalhar.

— É claro, criança. - Iroh lhe deu um tapinha carinhoso na mão.

— Não é como se fosse uma presença que desse para ignorar. - Asami complementou baixinho, tomando mais um longo gole.

Uma chaleira chiou a distância. O som parecia vir de dentro da pequena choupana. Com calma, Iroh pediu licença e se levantou.

— Korra, será que você poderia me ajudar um instantinho lá dentro?

Korra olhou para Asami por um momento, mas Sato, que estava agradecida pela oportunidade de uns minutos sozinha, apenas concordou enfaticamente com a cabeça:

— Não se preocupe comigo.

— Está bem. – Korra murmurou, levantando-se também. - Eu já volto.

Havia algo de errado com Asami, a garota da tribo da água ponderou, mas ainda não conseguia apontar com precisão o que era. Seguindo Iroh pela porta, ela se esforçou para ignorar a sensação.

— O segredo na preparação de chá está no tempo. - Iroh disse para ela quando ambos alcançaram a cozinha pequena, enquanto recolhia a chaleira do fogo.

— Isso está com cara de conselho. - Korra fez uma careta involuntária, lhe oferecendo um pano.

— Por que você acha isso? Você precisa de um? - Iroh abriu um sorriso complacente enquanto Korra olhava para o horizonte pela janela.

— Eu? Não, eu estou ótima. - garantiu, rápido demais. - Completamente sincronizada com o... Ham... Tempo. - ela pigarreou, ajudando-o com os sachês de aroma suave.

— Mesmo? É bom ouvir isso, Korra.

— É, bem... - ela suspirou, desistindo do que iria falar inicialmente ao olhar para Asami com uma xícara fumegante na mão ao longe. A imagem fazia com que ela se lembrasse de um dia específico no Templo de Ar, um que ela estava se esforçando muito para não pensar tanto a respeito.

— Bem...? - Iroh incentivou.

— Eu sempre corri demais. - ela encolheu os ombros, lamentando-se. - Estou tentando ter certeza de que as águas estão na temperatura certa agora... – mas assim que as palavras saíram de sua boca, ela soube que era apenas uma semi-verdade.

Ela vinha se escondendo atrás da cautela por todos aqueles dias consecutivos. De repente, frente ao sorriso sereno que Iroh lhe abriu, tudo pareceu muito claro e isso fez com que Korra ficasse com raiva de si mesma. Asami era como um sonho. Não apenas o sonho de qualquer adolescente espinhento da Cidade República – como CEO das Industrias Futuro, carismática e inteligente como ninguém, mas um sonho pessoal.

Chamá-la de bonita era quase como perder todo o ponto: ela era de tirar o folego, uma força da natureza com aquele porte esguio. E, por alguma razão desconhecida para Korra, vinha rondando-a como um passarinho bonito, desde Zaheer.

Desde que voltara para a Cidade República, em poucos dias Korra havia se acostumado de novo com sua presença, com o modo como ela colocava o cabelo muito escuro para trás da orelha, o jeito como gargalhava e como, quando ela estava ao sol, seus olhos verdes realçavam como um farol.

Bastava olhar para Asami para compreender porque as Industrias Futuro haviam conseguido prosperar após Hiroshi. Ela havia ficado com o melhor dele e o superara. Ela era genial e Korra jamais teria concebido com sua própria mente o fato de que uma garota como Asami poderia se interessar por uma garota como ela.

Mas havia acontecido. Ela tinha lhe dito de cinco milhões de formas diferentes em cartas e depois no Templo de Ar. E elas haviam se beijado. E agora Korra provavelmente tinha estragado tudo, porque estava aterrorizada demais para agir.

— Iroh você é... – Korra estreitou os olhos, o coração batendo muito rápido agora. – Genial. E perverso também. Mas genial. Devia existir uma profissão para isso, sabia? Onde uma pessoa sábia apenas fica ouvindo e instigando outra pessoa a falar e pensar e...

— Korra. A temperatura da sua água. – ele a interrompeu rindo, sem se importar que ela já tivesse corrido porta a fora atrás da garota que, em pouco tempo, ele supunha, Korra nunca mais apresentaria como amiga.

*

— Você sequer deixou que eu me despedisse! – Asami reclamou, não pela primeira vez, enquanto elas se afastavam.

— Nós voltaremos, prometo. Eu só preciso... – Korra caminhou um pouco mais, frustrada. Queria encontrar algum lugar especialmente bonito. Não que não estivessem em um, mas seria mais fácil dizer o que precisava em um cenário óbvio com corações e pássaros, talvez.

— Do que? – Asami riu exasperada. – Do que você ainda precisa? – havia um misto de frustração e irritação no seu tom polido que não passou batido à Korra.

— De ter certeza que vou conseguir fazer esse chá funcionar, droga!

— Chá? Que espécie de metáfora ruim é essa?

— Nós nos beijamos. – Korra disse, ignorando a pergunta, a metáfora de fato soava melhor quando Iroh dizia.

— Sim. Eu me lembro. Eu estava lá. – o tom de Asami desceu de volume e ela pareceu surpresa. – Eu achei que você tinha esquecido.

— Não, Asami. – Korra suspirou, uma parte sua querendo bater a cabeça na primeira árvore a frente. – Mas desde então as coisas ficaram bem loucas. E nós quase não tivemos tempo de conversar e depois... Bom, você perdeu o seu pai, eu... – Korra coçou a cabeça, envergonhada. – Eu achei que você precisava de um tempo, mas mais do que isso, eu estava pronta para sabotar qualquer principio de conversa que nós pudéssemos ter sobre o assunto por medo de você ter mudado de ideia. Eu achei que estava sendo cautelosa, mas na verdade eu só estava sendo covarde, Asami. Eu queria muito que você... Que eu... Que nós duas, oh sete infernos, por que isso tem que ser tão difícil?

Asami a encarou, imóvel, por um instante inteiro. Depois se aproximou devagar, sem tirar os olhos dos da garota. Ela queria aproveitar o gosto da certeza de que podia fazer aquilo: colocar a sua mão no rosto de Korra de novo como havia premeditado um milhão de vezes antes.

Enquanto Korra sustentasse seu olhar, tudo estaria bem. Parecia um sonho, mas estava acontecendo. E Asami avançou com todo o desejo reprimido entalado na garganta há tempos, desejo que morreu apenas para renascer ainda mais forte no momento em que ela finalmente encostou os lábios nos de Korra.

Asami a ouviu suspirar e isso foi o suficiente para que ela deslizasse a mão até a nuca da garota, entrelaçando os dedos nas muitas mechas castanhas no caminho. Era inebriante: o gosto de Korra, o modo como seu corpo tenso feito arco de violino relaxava a medida que Asami aprofundava o beijo... E então as mãos dela, as mãos dela na cintura de Asami, firmes, decididas a não irem a nenhum outro lugar. Asami pensou que podia chorar de alegria, em sua cabeça um enevoado de expectativas correspondidas pipocando como fogos de artificio no céu escuro e até então pessimista de sua mente.

Ela se afastou apenas para sorrir por um instante e o modo como Korra a olhou fez com que Asami pensasse que passaria por todo aquele inferno de sofrimento jovem adulto cheio de crises de identidade de novo e de novo e de novo para ter essa memória. E ela estava prestes a beijá-la mais uma vez – porque podia, porque queria, porque aquilo era irresistível, mas havia, antes, algo importante a ser dito:

— Não precisa ser difícil. – Sato murmurou. – E você não precisa fazer isso sozinha.

— Eu não pretendo mais. – Korra respondeu, com sinceridade, puxando-a para si.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.