Sete Vidas

sete vidas epílogo vida 5 capítulo 19


HADES

Os argonautas se iludiram achando que poderiam simplesmente sobrevoar o Flegetonte, mantendo-se a salvo de suas chamas. Ao se aproximarem, as chamas do rio se elevaram e formaram uma muralha de fogo intransponível, bloqueando o caminho da Argo. Não havia como desviar-se das chamas.

Parados na margem do rio de fogo, os argonautas observavam as almas, atualmente poucas, se aproximarem indiferentes e entrarem no rio. Ao contrário do que aparentava, o Flagetonte mostrava-se um rio raso e manso, com água pouco acima do joelho de uma pessoa de altura mediana no ponto mais fundo.

Bem, não devia ser propriamente água ou não pegaria fogo. Gabriel reconhece no líquido algumas das características do fogo celestial. Era isso. Não era um rio de água, aquilo era fogo líquido.

Quem entrava no rio era complemente envolvido pelo fogo líquido. Aparentemente não havia dano ao corpo espiritual nem dor de natureza física. Mas, era difícil saber o que aquela alma estava vivenciando apenas olhando de fora. Embora algumas reações indicassem desconforto, parecia mais a forma como alguém dormindo reagia ao que acontecia em um sonho ruim.

Isso coincidia com o Zetes contara de sua experiência. Zetes não se lembrava de ter sentido dores físicas. Mas, como ele não fora exposto diretamente às chamas, não dava para saber ao certo.

O que viam acontecer eram almas caminhando até o centro do rio e ali permanecerem por um tempo que, se fosse medido em horas, talvez correspondesse a seis horas. Depois seguiam em frente, livres de emoções, rumo ao Letes e à extinção final da própria identidade.

Zetes estava recuperado, mas nem um pouco disposto a repetir a experiência. Todos estavam traumatizados. Depois da experiência com o Aqueronte, não sabiam o que esperar do Flegetonte. Mas não esperavam nada de bom. O que sabiam era o que a religião antiga dizia. Que o Flegetonte queimava não só as paixões, mas a própria capacidade de senti-las. O risco era imenso. O Flegetonte podia destruir-lhes as motivações. E, se esquecessem em sua missão, o mundo pagaria o preço.

Estavam numa sinuca de bico. Não podiam prosseguir nem podiam recuar. Ficar aguardando tampouco era uma opção.

– E então? O que fazemos?

– Estava pensando. O rio tem cerca de trinta metros de largura. Podemos entrar um de cada vez com uma corda amarrada na cintura. O primeiro a sair puxa a corda, tirando o seguinte rapidamente das chamas. Pelo que vimos até agora, leva algum tempo até que todas as emoções sejam extintas.

– Presumindo que o primeiro consiga atravessar sem se transformar num zumbi, é um ótimo plano.

– Presumindo que a corda não se incendeie.

– Quanto à corda, podemos descobrir fácil.

Palemon cria algo parecido a um teleférico horizontal ligando as duas margens nos dois sentidos. Com cabos, engrenagens, manivelas e uma cadeira suspensa cheia de amarras e outros dispositivos de segurança. Ninguém precisaria caminhar dentro do rio e seria levado para a outra margem mesmo que ficasse incapacitado durante a travessia. Mesmo que se debatesse, não cairia. A cabine era aberta porque estava claro que a pessoa teria que ficar exposta às chamas, mesmo que por pouco tempo. O Flagetonte não deixaria por menos.

– Você realmente deu um bom up grade na minha idéia.

– Primeiro vamos testar.

Palemon criou um construto com sua própria aparência, já que de todos era o maior e o mais pesado. O construto foi amarrado à cadeira e o teleférico o deixou suspenso sobre a superfície do rio a meio caminho da outra margem. Mesmo seus pés não tocando a corrente de fogo líquido, um torvelinho se elevou da superfície do rio e o fogo líquido cobriu o construto. O construto, a cadeira e os cabos que a sustentavam ficaram expostos às chamas por um tempo dez vezes maior que esperavam que durasse uma travessia e ela saiu do fogo sem nenhum dano aparente. O mesmo se repetiu no caminho de volta.

Funcionava, mas o teste provou também que não adiantaria colocar a pessoa em algum estado de inconsciência ou mesmo bloquear a consciência da pessoa por magia. Afinal, o construto era pouco mais que um manequim e o fogo viera até ele.

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Jasão insistiu em ser o primeiro a atravessar. Era o comandante, era o seu dever. Era assim em sua época. Os comandantes seguiam na frente, correndo os mesmos riscos que seus comandados. Mas não só por isso. Ele arrastara seus antigos companheiros de armas para o Hades e a empreitada estava se mostrando muito mais difícil e perigosa do que imaginara. Nunca se perdoaria se algum deles viesse a encontrar a morte por responder ao seu chamado.

Quando entrou no teleférico e encarou as chamas, veio à mente de Jasão, como uma revelação, que o homem que ele fora há muito tempo atrás agora fazia parte da multidão que caminhava sem propósitos ou lembranças no Hades. O verdadeiro Iάσων estava morto e se tornara um dos espectros do Hades. O príncipe desonrado que deixara que outros lutassem suas batalhas e que tivera uma morte sem glória não mais existia.

Ele nunca fora Iάσων. Ele era algo que nem deveria ter uma alma. Nunca fora um homem completo. Era um coração devorado por uma criatura demoníaca se passando por gente. Suas memórias não eram realmente suas. Tudo de bom que existia nele vinha do homem que lhe emprestara as próprias memórias. A coragem que agora demonstrava e o sentimento forte de lealdade de que estava imbuído vinham de Dean Winchester, mas não somente dele.

Vinham também do ghoul. A visão das chamas trouxe de volta lembranças guardadas na carne. A vida que tivera quando ainda era um ghoul. O forte sentimento de família e de clã. A dor que sentiu quando perdeu o irmão. O desejo de vingança, a disposição de sacrificar a própria vida pelos seus. Aquele ghoul seria considerado nobre de sentimentos se julgado pelos valores de sua espécie.

Ao ser envolvido pelas chamas, um desejo recém formulado ardia no peito de Jasão. O de ser muito mais do que fora, o de ser digno daqueles que agora eram parte – a melhor parte – do seu ser. Era algo que ele queria lembrar para sempre. Mas que logo esqueceria.

O Flegetonte fez aquele desejo arder intensamente .. e o consumiu. Jasão vivenciou cada vitória e cada tragédia das vidas de Dean e do ghoul, sentiu crescer o orgulho por tê-los como parte de si, e então, esqueceu de tudo. Todas as lembranças que guardava das vidas do ghoul que ele fora um dia e de Dean Winchester se apagam.

Ele ainda sabia o que tinha acontecido e o porquê de caminhar novamente entre os vivos, mas apenas porque lembrava o que tinham lhe contado. Conservava os conhecimentos e aptidões que ganhara, mas tinha agora apenas suas próprias motivações. Ele seria agora - e para sempre - apenas Jasão.

A passagem dos argonautas pelas chamas foi rápida, mas isso não impediu que o Flegetonte extinguisse pelo menos uma paixão de cada um deles.

De Eufemo, tirou a luxúria, o seu desejo de ter todas as mulheres do mundo em sua cama. A sexualidade exacerbada não permitia que Eufemo conhecesse tudo que o amor tinha a oferecer. Que descobrisse que amar não é conquistar um território e deixar sua marca, repetindo eternamente o mesmo padrão. Amar é se deixar invadir e construir algo totalmente novo moldado a quatro mãos e que será sempre diferente porque não existem duas mulheres iguais.

De Autólico, tirou a cobiça, o desejo de tomar para si tudo que via, sem se importar se tinha ou não um dono ou se era ou não importante para alguém. A sua recém-conquistada maturidade o fizera refletir sobre os excessos de sua cobiça, mas ainda havia um caminho muito longo até que ele mudasse hábitos que vinham de milênios. O Flagetonte criou um atalho que o faria descobrir que pode haver mais prazer em presentear do que em tirar algo de alguém. E, principalmente, que precisamos aceitar que não podemos ter tudo que o queremos. Abrir mão de algo ou de alguém não é a mesma coisa que perder. Muitas vezes, é ganhar.

De Palemon tirou a soberba, que o fazia acreditar ser melhor que todo mundo. Ele ainda reconheceria o próprio valor e o quão acima ele estava da gigantesca maioria, mas se tornaria capaz de reconhecer a genialidade também nos outros, de descobrir que existe mérito e valor desvinculado da inteligência e que todos tem algo a nos ensinar.

De Idmon tirou a inveja, que surgira na sua infância mesclada a um grande complexo de inferioridade. Idmon sempre se sentira inferiorizado por ser o diferente, o esquisito, o introspectivo, o garoto de saúde frágil. Era filho de Apolo, mas não herdara dele nem a beleza luminosa nem a voz harmoniosa nem o físico perfeito nem o dom de seduzir. De que valia ser o mais inteligente numa sociedade que exaltava guerreiros abrutalhados de corpos perfeitos?

Herdara o dom de ver o futuro, mas encarava seu dom como uma maldição. Ressentia-se de que a maioria dos que o conhecia evitava até mesmo tocá-lo, já que o contato físico desencadeava nele visões do futuro daquela pessoa e faziam dele um potencial portador das más notícias.

Por muito tempo, renegou sua origem divina. Seu maior desejo era ser normal. Invejava quem era normal. Mesmo os mais medíocres. Mesmo quando passou a ser visto como um poderoso mago, Idmon inconscientemente continuou a valorizar tudo aquilo que ele não era e subestimar suas próprias capacidades.

O Flagetonte consumiu seu desejo de normalidade e o fez acreditar no que todos lhe diziam há milênios. Que ele era o maior mago que já existira. E, agora que acreditava nisso, ele não precisava mais provar nada para ninguém. Não precisava provar nada para si mesmo.

De Zetes, o Flagetonte já tinha sublimado o desejo de grandeza. Sua segunda exposição às chamas lhe custou o orgulho. Zetes não gostava de dar o braço a torcer, mesmo quando ele próprio era o principal prejudicado. Colocava o orgulho acima até de seus próprios interesses e desejos. Ao brigar com o irmão, jurou nunca perdoá-lo. O ressentimento desaparecera, mas o orgulho o impedia de fazer o que mais desejava. Abraçá-lo forte, dizer que o amava e que o queria voando de novo a seu lado.

De Gabriel, tirou o anseio por punição, seu desejo de ser condenado por ter falhado com todos aqueles que perderam a vida vítimas da praga zumbi na sua realidade de origem. O Gabriel da realidade zero fora morto por Lúcifer e a realidade zero se salvara. Gabriel planejava tornar este o destino de todas as suas contrapartes. Como se fosse um fato necessário para salvar essas realidades. Mas isso era realmente verdade? O universo seria melhor se ele não existisse? Aquele Gabriel morreu antes do Apocalipse ser abortado. E se entre ele morrer e o mundo ser salvo acontecesse algo diferente? O futuro pode ser mudado. Ele iria arriscar?

Ao seguirem em direção ao Letes, deixando o Flegetonte para trás, eles ainda não sabiam, mas a grande verdade é que eles, todos eles, saíram ganhando.