Serpente

Flores de plástico não morrem


Quando acordei, o sujeito ainda dormia ao meu lado. Tirei sua mão de minha cintura. O que estou fazendo, mon Dieu¹?

Era sempre na manhã seguinte que eu sentia o baque. Comumente me assustava ao perceber que o rosto ao meu lado não era o de Cebola, e desta vez não foi diferente. Tive um tempo para me situar. Meu quarto, mansão das Pitangueiras. O cara da vez agora tinha cabelos emaranhados no meu travesseiro, o nome era Marco Antonio, família italiana mas não sei o que faz da vida. Parecia ainda meio sonolento quando abriu os olhos, me encontrando na janela com um cigarro aceso.

— Você deverria ir embora. — sugeri, sem mais delongas.

— Por que tanta pressa, gatinha? — definitivamente, aquela pergunta combinava com o sorriso. Aquele mesmo sorriso de ontem à noite, cafajeste. — Qual foi, não rola nem um bom dia?

Traguei o cigarro. Eu não tinha motivos para ser grossa, o caos em minha vida não era culpa dele, o sexo foi bom e tudo o mais. Não era culpa dele. Ele só não era o Cebola, mas isso não é culpa dele.

— Apenas tenho muito o que fazer. — respirei fundo e respondi, sucinta. O quanto eu deveria contar para um desconhecido com quem dormi? — Vou visitar uma amiga.

— Ah, tranquilo.

Ah, tranquilo. A maneira extremamente coloquial de falar já me cansava. Dei as costas, me atentei apenas ao cigarro. Enquanto isso, Marco se vestia em silêncio. Agradeci por aqueles instantes e saí da janela, largando uma guimba ainda em brasa no cinzeiro para arrumar a corda de meu roupão. Marco Antônio amarrava os cadarços do tênis com toda a calma do mundo.

— Aí, hoje vai rolar um churrasco na casa de um amigo meu. É aqui pertinho, no Limoeiro. Se quiser, pode colar lá depois desse teu trampo aí. — ele convidou.

Assenti, prometendo que tentaria “colar lá” só para que não insistisse mais. Deixei que saísse sozinho — ele entrou aqui ontem, não estávamos bêbados o suficiente para que não lembre mais a entrada.

No meio do caminho comprei um vaso de flores. Não que Agnes gostasse muito delas — atraíam insetos e ela tinha nojo da terra —, mas por algum motivo parecia admirá-las mesmo que ao longe. E alguém disse algum dia que devemos dar flores aos mortos.

Talvez seja mais por nós que por eles. Talvez seja para decorar um tanto as covas cinzas, e assim fazer esquecer um pouco de nossa própria solidão.

Comprei flores de plástico. Não atraem abelhas. Se eu der sorte, vão durar algum tempo.

Eu era a única que visitava aquele túmulo, eu sabia. Nada de amigos. Nada de família. E doía vê-lo sempre vazio — pois o vazio me levava a um outro lugar, uma cena que eu acreditava ser apenas uma criação minha por não ter qualquer explicação que justifique uma memória. Fechei os olhos. Eu na maca, camisola do hospital, a máscara de oxigênio, o frio do monitor cardíaco e os tubos da sonda roçando minhas pernas. Era noite, luz apagada. Estava frio e não havia ninguém para regular o ar-condicionado por mim. Um fio de cabelo voou para meu rosto. Não havia quem tirasse. Fiz força, meus braços não se moviam. Tentei chorar, meu soluço se entalava e as pálpebras pareciam pedras. E havia o peso no meu peito, repentino; havia o cheiro que atravessava o plástico da máscara e quase não me deixava respirar.

Não havia ninguém lá por mim — meus pais pagaram a internação, mas parece que os putos só têm dinheiro e mais nada. Agora, nem o dinheiro têm mais: não se leva nenhuma nota para o inferno. Vai fazer três anos, nunca visitei a cova do meu pai. Que se foda.

Olhei à minha volta. O resto do cemitério estava tão vazio quanto os arredores da lápide de Agnes. Silêncio — a morte também tinha caras de ser silenciosa. Brisa fraca, passava pelas frestas do cardigã que resolvi usar.

Amie²...

O silêncio costumava ser perturbador para mim. E, por mais esdrúxulo que pudesse parecer, o silêncio dos túmulos me confortava.

Deixei a primeira lágrima descer -- agora eu conseguia. Em torrente, uma enxurrada a acompanhou sem que eu pudesse controlar. Desabei — eu, joelhos de apoio, agonizando sobre um bloco de concreto — um bloco de concreto bloqueando um caixão onde quiçá nem ossos havia mais — como se o desespero pudesse trazê-la de volta. Como se pudesse me trazer de volta.

Quando Agnes morreu, uma parte de mim morreu com ela. Foi no dia do velório que comecei a fumar, lembro bem. Acho que comprei aquele cigarro porque, no fundo, queria algo que pudesse me matar também. Hoje sinto que estou acostumada a um certo gosto de morte; o gosto de amargo cai bem na minha boca.


Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.