Segundo as conversas do Whatsapp, as meninas, Bruna e eu iríamos ao bar no sábado. Aguardei, então, este dia, com certo nervosismo e ansiedade. Nos comunicamos pelo Whatsapp durante os dias de espera até que, enfim, o sábado chegou. Estacionei o carro na rua do bar e como constatei, Fernanda já estava em frente a ele, nos esperando.

— Ninguém chegou ainda. — Informou.

— Achei que vocês iam se encontrar para chegarem juntas.

— Nem.

Após um minuto de silêncio, senti Fernanda pegar na manga de minha camisa social.

— Lindo.

— Valeu.

Eu havia me vestido divinamente bem (olha a modéstia!): estava de camisa social, jeans e sapato. Havia lavado o cabelo e passado perfume. Também havia aparado minhas unhas. Fernanda usava uma saia e uma blusinha. Desta vez, o salto que usava era pequeno.

— O que acha do meu decote? Ele mostra demais? — Indagou-me, de repente.

Analisei friamente o decote.

— Hmmm...

— Seja sincero.

— Hmmm... Eu consigo ver um terço do que você tem para mostrar.

— Um terço? — Exclamou, perplexa. — Achei que não fosse um decote muito grande.

— E não é, mas... as coisas aí são bem visíveis.

Ela olhou para o decote e tentou ajeitar a blusinha. As pessoas já começavam a entrar no bar. A noite estava fresca e sossegada. Avistamos Nikki e Bruna aparecerem na esquina, juntas.

— Pelo visto se encontraram pelo caminho. — Comentei.

Atravessaram a rua e se aproximaram devagar, distraidamente. Cumprimentamo-nos e entramos. Como o bar não estava muito lotado, conseguimos uma mesa para os quatro. Pelo visto, hoje era o dia do decote, pois tanto Bruna quanto Nikki usavam blusinhas que ‘revelavam’ cada uma a seu modo.

— Vão beber? — Perguntou Nikki.

— Você bebe, Bruna? — Indagou Fernanda.

— Só um pouco. — Respondeu ela, com um sorriso tímido.

— Que inteligente. Não é igual umas que tem por aí. — Zoei, apontando para o lado de Nikki e Fernanda.

Nikki me deu um tapa no ombro.

— Que mentiroso!

— Você e a Fernanda. — Teimei.

— Ai, que mentira! — Indignou-se Fernanda.

Ri.

— Esse pessoal, sabe? — Disse, olhando para Bruna. — Que não consegue se segurar. Ficam animadas e extrapolam.

— Você não bebe? — Indagou-me ela.

— Claro que ele bebe! — Assegurou Nikki.

— Mas não como vocês. — Me defendi. — Bebo quase nada.

— Eu também. — Disse Bruna. — Eu bebo cerveja, mas só uma lata. Mais que isso eu já não consigo.

Um garçom veio nos atender. Fizemos nossos pedidos e nossas bebidas vieram depressa. Pouco a pouco, o bar foi enchendo. A música de fundo estava alta e não parava em momento algum. Notei que Bruna olhou bastante à sua volta, já que não conhecia o bar.

— Achei linda a sua corrente. — Disse Fernanda.

— Também achei. — Confessou Nikki, com um sorriso.

Bruna usava uma corrente dourada com pingentes amarelos, verdes e púrpuras. Uma peça bastante delicada que combinava com o que deveria ser sua personalidade. Notei uma peça também dourada em seu pulso, com os mesmos pingentes. Eram adornos muito bonitos. Se meu corpo fosse feminino, eu os elogiaria como as meninas fizeram.

— Tem namorado, Bruna? — Indagou Fernanda, após beber um gole de sua cerveja.

— Não, não tenho. — Respondeu ela, balançando a cabeça. — Faz uns dois anos que não namoro ninguém.

— Eu também. Mais ou menos uns dois anos.

— A única pessoa numa relação estável é a Nikki. — Disse.

— Nikki é o seu nome mesmo? — Indagou Bruna.

— Não. Me chamo Dominica.

— Que diferente! Mas é um diferente bonito.

— Coisa da minha mãe.

— Eu devia ter passado esmalte. — Lamentou Fernanda, olhando para as unhas.

— Eu tenho um monte de esmalte. Comprei mais um. Um amarelo. Muito bonito. — Disse Nikki.

Ia fazer um comentário, mas me calei (Bruna estava presente). Após um tempinho de conversas sobre os mais variados assuntos, Fernanda levantou-se para dançar, impulsionada pelas mulheres que já dançavam. Dançou ao lado de nossa mesa, pois não havia espaço para ir. Mais longe, convidou-nos a se juntar a ela. Bruna foi ao embalo.

Observei-as um momento e depois olhei para Nikki, sentada ao meu lado.

— Não vai dançar?

— Hoje não estou a fim.

— Sua maquiagem está ótima. — Falei, próximo ao seu ouvido.

Ela alargou um sorriso.

Eu considerava Nikki a negra mais linda do mundo. Parecia que todas as roupas lhe caiam bem. Tanto as maquiagens mais simples quanto as mais coloridas sempre ressaltavam sua beleza facial. Seu sorriso era muito carismático. Tinha mais estilo do que Fernanda e eu juntas (quando eu era mulher).

Ao vê-la mexer no celular pela segunda vez, indaguei:

— O namorado quer saber o que você está fazendo?

— Ele já sabe o que eu estou fazendo. — Respondeu. Seus olhos estavam voltados para o celular.

— Ele não se incomoda em saber que você sai com esses decotes generosos?

Ri quando ela beliscou meu braço. Ao levantar os olhos, notei que Bruna olhava para mim. Desviei o olhar e apoiei os braços sobre a mesa.

— Que saudade de ser mulher... — lamentei, com um suspiro.

A música alta permitiu que somente Nikki me ouvisse.

— Vamos fazer uma coisa? — Disse ela, pondo-se de pé.

Nikki pegou no meu braço e me levantou da cadeira. Para darmos privacidade às solteiras, avisamos a elas que nos afastaríamos um pouco. Escolhemos um canto para ficarmos mais à vontade. Apoiei as costas à parede e enfiei as mãos nos bolsos. Nikki ficou do meu lado.

— Aqui dentro é sempre muito quente. — Reclamou. — Odeio transpirar.

— Quem gosta?

— Tenho certeza que a Fernanda vai paquerar alguém, mas a Bruna... não sei não... você é mulher, embora seu corpo seja de homem. Você sabe como as mulheres ficam quando estão interessadas por um cara. No Whatsapp, a Bruna fez várias perguntas a seu respeito. Agora, ela não para de te olhar, de mexer no cabelo. Ao falar alguma coisa, ela te olha para ver sua reação, fica te olhando toda sorridente e alegre...

Suspirei.

— Eu sei. Eu notei. Eu gostaria da amizade dela. Ela demonstra ser muito centrada e pé no chão. Não quero passar a mensagem errada. Já me basta o beijo que levei.

Nikki riu.

— Pelo menos eu acho que ela não vai se agarrar em você. Posso ir ao banheiro?

— Não sabe o quanto eu gostaria de te acompanhar. Pode ir. Te espero aqui.

Vi Nikki se afastar. Depois observei a movimentação do bar. Havia muitos grupos de amigos se divertindo, bebendo e dançando. Alguns pareciam mais bêbados do que outros. Por pouco, naquele momento, não deixo uma tristeza profunda tomar conta de mim. Afastei os pensamentos tristes da cabeça e tentei focar-me em algo bom. Enquanto fazia este exercício mental, vi Bruna aproximar-se.

— Perdeu a Fernanda?

— Foi lá para fora com um cara.

— Ah! Por que isso não me surpreende?

Calamo-nos. Continuei olhando para os rostos felizes e embriagados.

— Faz tempo que você conhece o bar?

— É a quarta vez que venho. — Respondi. — Uma amiga da Nikki nos falou do bar.

— Ham.

Nos calamos de novo.

— Você não dança?

— Só quando não posso evitar.

Sorrimos. Tornei a dar uma olhada no interior do bar até fitar o colar de Bruna. Era muito lindo. Se eu ainda fosse mulher, compraria um para mim. Infelizmente, admirei o colar por tempo demais. Ela acabou percebendo o meu olhar. Tive que desviá-lo na velocidade da luz.

Que droga! Como eu poderia explicar que estava olhando o seu colar e não o seu decote? O momento constrangedor passou quando ela começou a falar sobre os cursos que havia feito e seu interesse em fazer autoescola. Ao iniciarmos um colóquio sobre filmes e séries, Nikki retornou.

— O Alexandre está vindo. — Anunciou.

— Ele não resistiu. — Disse, rindo.

— Mas não sei se ele vai querer entrar.

— Com certeza vai.

Nikki olhou para o celular.

— Vamos atrás da Fernanda? — Perguntei.

— Deixa ela se divertir um pouco. Depois vamos lá para fora que eu estou morrendo de calor.

Consenti.

Não bebemos mais. Ouvimos um pouco de música, conversamos um tempinho e depois nos dirigimos à porta da frente, para chegarmos à área externa. Pelo caminho, encontramos Fernanda sentada num banco em frente ao balcão do bar. Um homem estava ao seu lado. Pareciam conversar.

— Vamos avisá-la que estamos indo lá para fora? — Indagou Nikki.

— Melhor fazermos um sinal. Vai que a gente atrapalha o clima.

— É, boa ideia.

Nikki estava na minha frente e Bruna vinha logo atrás de mim. Eu era mais alto que as duas, por isso, conseguia enxergar Fernanda com mais facilidade. O estabelecimento estava muito cheio. Estava difícil de andar sem passar relando em alguém. Resolvi fazer eu mesmo o sinal para Fernanda. Como mantive contato visual por bastante tempo, pude notar que o homem que conversava com ela, tentava beijá-la e ela inclinava o rosto para trás e o segurava para ele não conseguir.

Ela desviou dele mais de uma vez. Comecei a ficar irritado com a situação e tomei uma atitude. Consegui me apertar entre a multidão e alcancei os dois, deixando Nikki e Bruna para trás.

— Com licença, cidadão. — Disse, em voz alta.

O homem virou o rosto para mim.

— Já deu para perceber que ela não está a fim, né?

Peguei o braço de Fernanda e a fiz levantar do banco. Tirei-a de perto do cara que, pela expressão, estava já um tanto bêbado.

— Ai, valeu, Ber. — Agradeceu a Fernanda, me abraçando por trás.

Nikki e Bruna nos alcançaram. Fomos para a parte externa do bar. Quando deram mole, sentamos em uma mesa e lá ficamos para aproveitarmos o clima agradável da noite. Fernanda disse que ficou com um cara e o último, com o qual conversava, queria beijá-la.

— Esse estava muito bêbado. — Analisei. — Os olhos vermelhos, os movimentos confusos...

— Você chegou na hora. — Disse ela. — Não sabia mais o que fazer para ele me deixar em paz. Eu queria conversar numa boa e ele queria me beijar.

Ela beijou meu rosto.

— Você é muito fofo, Ber.

Nikki riu.

— Olha, olha, Fernanda!

— Ele não é um fofo, Bruna?

Bruna apenas sorriu, sem concordar ou discordar. Continuamos nosso papo. Nikki havia parado de mexer no celular quando descobriu que Alexandre já estava bem perto do bar.

— Hoje é noite das mulheres — comentou Fernanda que, depois de olhar para mim, acrescentou: — e do Bernardo. O que seu namorado quer aqui?

— Credo! Ele não pode vir? — Indagou Nikki, ofendida.

— Não é que não possa, mas é que... na atual situação... — Respondeu ela, gesticulando.

— Para mim ele quer dar uma vigiada, sabe? — Cochichei, aos ouvidos da Nikki.

Ela afastou o tronco, perplexa.

— O Alex não é ciumento. — Disse ela. — Ele é normal. Um ciumento normal.

— Você falou que sairia com as amigas e com o seu amigo também? — Perguntou Fernanda. — Porque se você falou do Bernardo, pode ser que ele tenha ficado um pouco mais insatisfeito.

Nikki riu.

— O Alexandre conheceu o Bernardo e não mostrou nenhum descontentamento com a nossa amizade. Ele também conheceu o Marcos.

— Você falou para ele que eu estou aqui? — Perguntei.

Nikki suspirou e confirmou.

— Gente, por que o Alex ficaria incomodado? Ele não vem aqui para me vigiar. Ele só quer beber com a gente.

— Ele poderia vir só para beber se tivesse mais homens entre nós. — Disse Fernanda.

— Vocês estão exagerando.

Fernanda e eu nos entreolhamos.

— Além disso, minha amizade com o Bernardo é muito especial. — Disse ela, enlaçando-me com seus braços. — Né?

Confirmei.

— De fato. Nossa amizade é completamente diferente das outras.

Rimos. Nikki afagou-me o braço com uma das mãos. Como ela não me soltou, tive que abraçá-la também.

— Sem você... não sei o que seria de mim...

Fernanda protestou. Incluí-a na frase. Depois de um tempo, notei que um homem havia se aproximado de nossa mesa. Demorei a reconhecer, mas era Alexandre. Soltei Nikki no mesmo instante, sentindo um frio na espinha grandioso ao analisar a face sisuda dele.

Nikki soltou-me também e virou-se para trás. Levantou-se da cadeira para cumprimentar o namorado.

— Que bom que chegou. — Disse ela, sorridente.

Abaixei o olhar, mas senti que os olhos dele estavam voltados para mim.

— Como é mesmo o seu nome? — Disse ele, em voz alta.

— Bernardo. — Respondi, atrasado.

Ele continuou me fitando. Nikki pegou-o pelo braço e o convidou a sentar, mas ele não deu um passo. Em seguida, volveu a Nikki um olhar bastante severo e indagador.

— O que foi? — Disse ela.

Levantei-me de minha cadeira.

— Nós vamos pegar mais bebidas, né? — Disse, olhando de Bruna para Fernanda.

Ambas perceberam minhas intenções e se levantaram. Quando ia passar por Nikki, Alexandre se desviou dela e tocou-me rapidamente no braço.

— Espere. Não vai me explicar isso?

— O que? — Indaguei, mais nervoso.

— Estava abraçando minha mulher.

Seus olhos furiosos me fitando me deram ainda mais medo. Nikki suspirou e tentou ficar entre nós.

— Sim, somos amigos e estávamos nos abraçando. Algum problema? — Disse ela, firmemente.

Alexandre voltou-se para ela.

— Você estava abraçando também.

— Sim, estava. Algum problema? Não posso abraçar meu amigo?

— Eu vou... Pegar mais... — comecei a falar.

— Não, não. Você não vai a lugar algum. — Disse Alexandre.

Bem que tentei escapar dele, mas a todo o momento ele me parava, pegando-me pelo braço. Nikki continuou firme em suas palavras. As meninas já haviam se posicionado atrás de mim e Nikki novamente ficou entre Alexandre e eu. No momento em que toquei no ombro dela para avisar que pegaríamos mais bebidas, Alexandre pegou essa minha mão e de maneira rápida e habilidosa, deu-me um soco na cara.

Ouvi as meninas soltarem exclamações de espanto e medo. Enquanto elas tentavam segurar o namorado enfurecido, toquei em meu rosto, meio zonzo e perplexo. Alexandre havia me batido! Havia me batido! Fiquei bastante chocado com o fato. Ele conseguiu se desvencilhar das meninas, pegou-me pela roupa e acertou-me outra vez. Eu fiquei na defensiva. Tentei proteger meu rosto que era ameaçado a todo o momento.

As meninas continuavam pedindo para ele parar até que, ao ouvir a voz de Nikki pela última vez, resolvi agir em nome dela e de todas as mulheres injustiçadas deste mundo. Fechei os punhos e tentei golpeá-lo. Reuni toda minha revolta nos punhos e desferi três golpes rápidos nele. Acertei dois.

Antes que eu pudesse agredi-lo mais, os guardas do bar nos separaram e nos colocaram para fora, enquanto uma multidão assistia. Assim que pus os pés na calçada, saí correndo para que Alexandre não me pegasse.

— Tô indo, Nikki! — Gritei, já bem longe da entrada do bar.

Fernanda e Bruna correram atrás de mim. Com o coração aceleradíssimo, virei a esquina e só parei de correr quando consegui me esconder atrás de uma árvore de tronco grosso. Fernanda e Bruna pararam perto de mim. Ofegante, encostei-me à árvore.

— Meu Deus! Meu Deus!

— Você ‘tá legal? — Indagou Bruna.

— Estou preocupado com meus dentes... acho que não quebrou nenhum. — Falei, apalpando meu maxilar.

— Que medo que eu senti! — Disse Fernanda, com a mão no peito.

Também estavam ofegantes. Abanaram-se com as mãos.

— Espero não ser banido do bar. Eu gosto do bar. — Confessei.

— Está melhor? — Perguntou Bruna.

— Acho que sim.

Fernanda afastou-se de nós. Perguntei para onde ia. Disse que ia espiar. Olhei-a, bastante aflito.

— Acho que já foram. Não os vejo na calçada. — Informou, voltando para perto de nós.

— Coitada da Nikki... não queria deixá-la com ele.

— Não pensei que ele fosse ciumento. Que horror!

— Nem eu. — Disse. — Bom, acho que minha noite acabou.

— A minha também. Nossa! Estou tremendo! — Disse Fernanda, estendendo a mão.

— Eu também. — Disse Bruna.

— Se eu conseguir chegar até meu carro, eu dou carona para vocês.

— Onde você estacionou? — Indagou Bruna.

— Na rua do bar.

— Mas eu acho que eles já foram. — Disse Fernanda.

— Vamos fazer um seguinte. Eu te dou minha chave, você abre o carro e fica esperando lá dentro. Eu vou em seguida.

Passei a chave para Fernanda. Ela consentiu, cruzou a esquina e foi até meu carro. Bruna parou na esquina para espiar. Quando me avisou que Fernanda já havia entrado no carro, correu junto comigo (descalça, pois estava com um sapato de salto). Sentei-me no banco em frente ao volante e Bruna sentou no banco de trás porque Fernanda estava sentada no bando da frente. Coloquei o cinto, liguei o carro e coloquei o pé no acelerador na primeira oportunidade.

Liguei o rádio para descontrair.

— Foi horrível! — Falei. — É a primeira vez que entro numa briga tão violenta.

— Você está legal mesmo? — Indagou Fernanda.

— Estou, estou. Ainda estou muito assustado, mas... é mais o choque.

Como o bairro de Bruna era o mais “próximo”, levei-a para casa primeiro. Ao ficar sozinho no carro com Fernanda, ela extravasou, assim como eu.

— Que susto! Que susto, Rafa! Meu Deus! O Alexandre é louco! Vocês só se abraçaram!

— Nem me fale! Ainda estou tremendo. Minhas pernas estão fracas, minhas mãos doem e minha cara toda dói. Nunca pensei que isso me aconteceria e ainda por cima com um conhecido! Não tenho nada contra ele. Mas fui obrigado a bater também para me defender.

— Fez muito bem. Nossa...!

Chegamos à sua casa. Ela pediu que eu entrasse para pegar gelo para o meu rosto. Liguei o alarme do carro e entrei na casa com ela. Todas as luzes estavam desligadas, exceto a da sala. Pelo silêncio, sua família devia estar dormindo. Entramos sem fazer barulho. Segui-a até a cozinha. Fernanda pegou alguns cubos de gelo e os envolveu com um guardanapo. Levei-o ao meu rosto.

Em seguida, segui-a até seu quarto, que ficava nos fundos. Era uma casa térrea. Cheirava a orquídea. Fernanda me explicou que sua mãe gostava de aromatizantes. Seu quarto estava bastante desorganizado, com várias roupas sobre a cama, sobre uma cômoda, sobre uma cadeira da escrivaninha e havia muitos sapatos diferentes debaixo da cama.

Sentei-me na beirada da cama, ainda encostando suavemente o guardanapo ao rosto. Fernanda fechou a porta.

— Foi o único momento em que temi pela minha vida. — Disse. — Homens brigam de mão fechada. É assustador!

Ela analisou o meu rosto.

— Sorte que só machucou esse lado.

— Que nada! Meu maxilar está doendo. Desse lado aqui. Ele me deu dois socos na cara, sem contar os golpes que deu nos meus antebraços quando eu me defendia. Coitada da Nikki! Arrumou problema por minha causa.

— A culpa foi dele por ter te batido.

Fernanda ficou um tempo do meu lado. Depois se levantou e foi até o guarda-roupa. Tirou a blusinha que usava e ficou só de sutiã. Há essa hora, eu já havia me acalmado bastante.

— Marcos me ensinou muita coisa. Só não me ensinou a brigar. Aquele cabeludo podia ter sido mais útil.

Fernanda aproximou-se de mim, estendendo uma peça íntima feminina.

— Cheira.

A calcinha cheirava morango.

— É comestível. — Explicou ela. — Comprei só de curiosidade.

Ergui as sobrancelhas.

— Só de curiosidade?

Peguei na calcinha.

— Foi feito com o que?

— Gelatina.

— Sério? Que surpreendente.

Analisei um pouco mais. Era pequena e transparente. Depois devolvi a peça a Fernanda, que a guardou.

— Eu estou me depilando agora. Eu cheguei a te falar? — Perguntou, voltando a parar perto de mim. — No mesmo lugar que minha irmã vai. Dá uma olhada.

Não acreditei quando ela tirou a saia e ficou só de calcinha e sutiã na minha frente. Fui obrigado a olhá-la para confirmar se a depilação estava boa ou não. Confirmei, deixando-a contente. Ela aproximou-se mais de mim e tocou no meu rosto.

— Deixa ver como está agora. Será que vai inchar muito?

Subitamente, a porta de seu quarto abriu e uma mulher, evidentemente que sua mãe, ficou parada no batente da porta. Fernanda só teve uma reação: pular para cima da cama e esconder-se atrás de mim. Eu, suando frio, encarei o olhar chocado de sua mãe enquanto tentava encontrar uma solução para sair daquele problema.

— Fernanda! O que é isso?

Deixei o guardanapo sobre o colchão e, despedindo-me rapidamente de Fernanda, me levantei e corri para a direção da porta. Por sorte, a mãe dela não tentou me barrar. Enquanto eu me encaminhava para a saída, ouvi a voz dela:

— Fernanda! Me explique isso! Agora!

Minha noite foi terrível. Quando cheguei ao shopping, Marcos levou um susto ao ver minha cara roxa. Expliquei o que havia acontecido e quando Nikki chegou à livraria, perguntei o que havia acontecido a ela e a Alexandre.

— Ele brigou comigo por me ver te abraçando. — Disse ela, seriamente. — E eu discuti com ele por ter desconfiado de mim. Não o deixei achar que estava com a razão, porque não estava com a razão. Briguei com ele e falei que não queria mais ver a cara dele na minha frente... você está legal?

A maçã de meu rosto estava um pouco inchada e vermelha. Havia também um ferimento em meu lábio.

— O rosto está dolorido, mas eu estou bem. Desculpa ter batido nele.

— Você não fez nada errado. Ele quem não confia em mim. Ele reclamou da minha roupa, falou que não sabia que eu saía com homens, que não sabia que eu usava esse tipo de roupa... Ele foi muito idiota e infantil. Ai, que ódio!

Vimos Fernanda chegar com um rosto bastante sério.

— E sua mãe? — Perguntei de uma vez.

— Ela não acreditou quando eu disse que só éramos amigos. Nem acreditou quando eu menti dizendo que você era gay.

— Peraí! — Exclamou Marcos. — O que mais eu perdi? Do que estão falando?

Nikki também quis saber. Fernanda falou sobre o flagra.

— Ela achou que a gente ia transar.

Marcos riu, até mesmo Nikki achou graça.

— Não é para menos! — Disse ele. — Ela pega um cara no quarto da filha com a filha só de calcinha e sutiã!

— Estou ferrando a vida de todo mundo! Que terrível! — Falei, tapando o rosto.

Meu dia foi péssimo! Primeiro porque o dia de Nikki estava péssimo, e segundo porque o dia de Fernanda estava péssimo. Não fiz nada de errado, claro, mas ajudei a fomentar confusões. Pedi desculpas novamente. Elas pediram que eu ficasse tranquilo, mas não consegui, porque nem mesmo as duas estavam cem por cento bem.

Mais tarde, Bruna entrou na livraria. Cumprimentou Marcos ao passar por ele. Aproximou-se de mim.

— Como você ‘tá? — Perguntou, com sorriso compadecido.

— Bem. Não muuuito bem, mas... mais ou menos.

— Dói? — Disse, olhando meu rosto.

— Um pouco. Especialmente quando mecho demais os músculos.

— Não achei que ele fosse te bater.

— Eu não ia revidar, mas aí pensei em todas as mulheres injustiçadas por namorados ciumentos. Senti pela Nikki e decidi lutar por sua integridade.

Ela deixou escapar um riso.

— Por esse ângulo, você foi muito bacana... vim para ver se você estava legal e para perguntar se você não quer dar uma volta depois do serviço.

— Tudo bem. Assim eu me distraio. ‘Tá todo mundo com os ânimos alterados.

— A gente pode se encontrar na praça de alimentação.

— Tudo bem.

Despediu-se e saiu da livraria. Em menos de dois minutos, Marcos colou do meu lado, vindo tão furtivamente que até levei um susto quando o percebi.

— Eu estou curioso. Como são os peitos da Fernanda?

Olhei-o bem.

— Não vi peito nenhum, meu filho!

— Ela ficou pelada na sua frente, não ficou?

— Você ouviu a história e distorceu tudo. Ela não estava pelada. Estava de calcinha e sutiã.

— E como é? — Insistiu, com um olhar esperançoso.

— Você a viu de biquíni. É a mesma coisa.

— Que sorte a sua.

— Sorte? A mãe dela está pensando coisas erradas a respeito dela...

— Culpa dela. — Retorquiu. — Ela se esqueceu que você tem corpo de homem? Como pode ter se esquecido? Leva um cara para o quarto e fica pelada na frente dele...

— Seminua.

— Tanto faz. Levar um cara para o quarto no meio da noite é muito suspeito. Ela contou para você?

— Contou o que?

— O celular dela foi confiscado. A mãe a proibiu de usá-lo. Também a proibiu de usar o computador e de voltar tarde para casa durante um mês inteiro.

— Caramba!

— E ela falou que se desobedecer a mãe, será o mesmo que afirmar que fez coisa errada. Quero dizer, que ia fazer coisa errada.

Fiquei nervoso.

— Eu acho difícil a mãe acreditar nela, mas... se bem que... A Fernanda tem quantos anos? Vinte?

— Vinte e um. Por aí. — Respondi.

— Não é mais de menor. Pode fazer o que quiser.

Discordei com uma careta.

— Pode até fazer o que quiser, mas não na casa dos pais, né?

Quando o pessoal do segundo turno chegou, as meninas vieram me cumprimentar e notaram meu rosto vermelho. Tive que confessar que havia entrado numa briga por causa da Nikki. Elas me apoiaram e elogiaram minha conduta. (Se soubessem o quanto me caguei de medo, não teriam me achado tão corajoso!).

Enfim, despedi-me de meus amigos e fui em direção à praça de alimentação, no último andar do shopping. Encontrei-me com Bruna já no final da escada rolante. Nos cumprimentamos e caminhamos em frente aos restaurantes e fast foods.

— Alguma coisa boa no serviço? — Indaguei.

— Nenhuma. E no seu?

— Também nada. É sempre mais do mesmo. Mas você gosta de trabalhar na loja?

— Gosto. Já me acostumei a trabalhar no comércio. Tem gente que não gosta por causa do horário puxado.

— Verdade. No começo, foi difícil me acostumar, mas depois acabei não me importando.

— Sério mesmo que você trabalha aqui há dois anos? Estranho não me lembrar de você. Eu me lembraria.

Desviei o olhar, imaginando porque teria falado aquilo. Escolhemos uma mesa e nos sentamos.

— Está pensando em comer alguma coisa? — Perguntei.

— Hmm... — ponderou. — Acho que não. Não sei. Você vai?

— Sempre me dá fome agora de tarde. — Olhei para os restaurantes, incerto. — Vamos ver. Se minha fome aumentar, eu como.

Em nossa conversa, falamos sobre o shopping, sobre a inauguração, sobre nossos colegas de serviço, acordar cedo, dias quentes e frios, sobre os cursos que já fizemos, sobre cinema e livros. O papo estava interessante. Bruna não fazia o tipo vulgar, chata ou cansativa. Aparentemente tinha muito bom senso. A conversa fluía com naturalidade, sem fazer aquelas pausas desconfortáveis.

Disse ela que morava com os pais e o irmão mais novo. Disse que só chegou a trabalhar com vendas. Que também trabalhou como caixa e se sentia bem na função que exercia, embora também gostasse de administração.

Bruna tinha cabelos castanhos claros, sobrancelhas que eram realçadas por lápis, olhos azuis e um rosto muito inocente. Seu rosto era fino, seu nariz longo. Ficava muito bonita quando sorria. O rosto estava com maquiagem básica e leve (segundo ela, exigência da loja).

Só não curti seu perfume adocicado. Não gostava muito de perfumes adocicados. Eram muito enjoativos. Não comemos nada. Segui-a até as salas de cinema, pois ela queria ver a programação das sessões.

— Olhe só! Não sabia que esse filme já estava em cartaz! — Comentei.

Uma tela bem grande na parede anunciava os próximos horários.

— Tem vontade de ver? A próxima sessão é daqui a quarenta e cinco minutos.

— Não sei... será que ainda tem assentos vagos?

Fomos até o caixa para perguntar. Tinha. Bruna e eu compramos nossas entradas. Na recepção do cinema, havia balcões com vários atendentes para comprarmos pipocas, chocolates, refrigerantes e outros besteiróis. Havia também os caixas com os quais comprávamos as entradas. E havia um espaço de espera com sofás muito confortáveis.

Nos sentamos em um deles, lado a lado, enquanto meu estômago roncava só de sentir o cheiro de pipoca.

— Você e a Dominica se conhecem há muito tempo?

— Desde meu emprego anterior. Estávamos descontentes com o serviço. Pedimos a conta quando conseguimos emprego na livraria. Agora, a Fernanda a gente conheceu no treinamento para trabalhar aqui. O Marcos entrou depois, quando a outra menina que estava com a gente saiu.

Olhei para o balcão de pipocas.

— Acho que vou pegar um pouco de pipoca. Minha fome já atingiu um limite alarmante.

— Vocês quatro parecem se dar bem.

— É.

— Eu vejo pelo Whatsapp.

Sorri.

Alguns minutos antes do filme começar, fui comprar minha pipoca e refrigerante. Bruna só comprou uma garrafa de água mineral. Entramos na sala pouco iluminada. Achamos nossos assentos lá no fundão (com dificuldade, pois a sala era uma ladeira de tão íngreme). Sentamos lado a lado, quase na ponta da última fila.

Ofereci minha pipoca para ela.

— Pegue. Esse pacote é grande demais para mim.

Assistimos ao filme fazendo curtos comentários quando algo chamava nossa atenção. Bruna ajudou-me a comer a pipoca, mas ainda assim, comi mais do que ela. Saímos da sala. Bruna anunciou que iria ao banheiro. Fomos até o corredor dos banheiros. Enquanto ela entrou no banheiro feminino, entrei no masculino para lavar as mãos cheias de sal e gordura. Ao nos encontrarmos novamente lá fora, perguntei-lhe o que queria fazer.

— Não sei. — Respondeu, sorrindo. — O que você quer fazer?

— Vamos dar uma volta por aí.

— Tudo bem.

Passeamos e conversamos. Quando já havia escurecido muito, resolvemos ir embora. Cruzamos uma das portas do shopping e chegamos ao estacionamento.

— Vai de ônibus? — Perguntei a ela, tirando minha chave do bolso.

— Vou. — respondeu, ajeitando a alça da bolsa no ombro.

— Quer que eu te deixe em frente ao terminal?

— Não, o trânsito deve estar ruim há essa hora.

— Vamos lá. Eu te levo. Vai demorar muito para chegar em casa se for esperar o ônibus.

Convidei-a a aceitar mais uma vez com um aceno de cabeça. Ela me seguiu até o carro.