O resto das horas naquela escola foram as piores possíveis. Nada acontece. Nada além dos olhares estranhos, murmúrios, e coisas do tipo. Acho que não sabem quem sou. São adolescentes, não lêem jornais. E, bem, eu não sei qual foi a repercussão do meu caso na mídia já que meus pais vigiam meu acesso a internet. Eles fazem isso escondidos, mas sei que sempre que eu saio, eles checam o histórico do computador, então, se eu pesquisar sobre o meu caso eles vão saber. E eu odeio falar sobre isso com eles porque os deixa totalmente desconfortáveis. Mas, tenho uma ideia para descobrir mais sobre o que aconteceu enquanto eu estava fora.

Minha mãe foi me buscar por volta das 10:30. Uma hora após o intervalo, como o prometido. Tudo que eu quero é voltar pra casa, mas, tenho uma sessão com minha psicóloga então estamos as duas no táxi indo para a consulta enquanto meu pai deve estar provavelmente em alguma reunião do trabalho.

Encosto minha cabeça na janela do carro, vendo que o lindo sol que se ostentava pela manhã, era ofuscado pelas nuvens que passaram de brancos algodões doces para um amontoado cinzento que mais parecia um monte de fumaça.

Eram 3 da tarde, eu havia acabado de almoçar com minha mãe no restaurante perto da escola, mas parecia que já eram 6 da noite pela falta de luz.

Fico olhando pela janela as casas e pessoas pelas quais o táxi vai passando quando um trovão ecoa nos céus fazendo minha mãe estremecer no banco. Dou uma risada leve do susto que ela tomou, e ela ri para mim. Volto-me para janela de novo, observando eu a chuva cair com ferocidade embaçando minha visão do lado de fora. Tempestades com relâmpagos e trovões não eram mais motivo de medo para mim. Pelo contrário. Elas me traziam certo conforto, pois me lembravam do dia de minha liberdade. O dia da fuga.

O carro estaciona e minha mãe paga ao motorista o valor da corrida. Ela segura minha mão e nós saímos rápido do carro indo para um prédio muito alto, branco, de janelas que pareciam ser douradas pois refletiam o prédio bege da frente. Era muito bonito por sinal. Nós entramos, pegamos o elevador que por sorte está vazio por causa do temporal, e vamos para a terceira sala no corredor branco de tapete vermelho. Na porta estava estampado:

Dra. Pilar
Psicóloga
Especialista em saúde mental

Dou 3 batidas na porta e ela se abre. Diferente dos outros consultórios médicos desse andar, o da doutora Pilar tem que ficar fechado por causa de seus pacientes. A secretária, Sheila, abre a porta para nós e se senta novamente em sua cadeira executiva.

Me sento logo, olhando ao meu redor aquela sala de paredes verdes e chão de carpete vermelho, com uma mesa no centro onde Sheila marcava as consultas para o mês. Há várias cadeiras ao redor, ocupadas por pessoas que mesmo com um temporal tiveram que sair de casa para vir se consultar. Claro que nenhum deles foi mantido em cativeiro, mas cada um tem seu problema e só quem convive com eles sabe o quão difícil é.

Costumo gostar das consultas com a doutora Pilar, mas essa não vai ser uma consulta qualquer. Ela vai perguntar sobre meu primeiro dia na escola, e vai fazer uma dúzia de perguntas as quais eu não quero responder, e não adiantará eu dizer isso porque se eu quiser "melhorar" eu devo dizer como eu me sinto.

O tempo vai passando, e o som do relógio na parede me irrita um pouco. Nunca foi o meu forte ficar parada em um lugar sem saber o que vai acontecer. Odeio esperar. Quando você passa 4 anos em uma sala pequena, sem ter muito o que fazer, ficar parada é de certa forma inquietante e perturbador, se me permite dizer.

Na minha frente uma criança, uma menina de aparentemente 5 anos, de cabelos loiros curtos, blusa de manga cumprida preta de bolinhas coloridas, e calça rosa, desenhava no chão. Ja a vi aqui outros dias, minha mãe e a mãe dela já conversaram algumas vezes, a menina se chama Claire. Ela tem esquizofrenia.

A mãe dela é gente boa pelo que parece, se chama Judith. Sempre sorri pra mim quando me vê, nos cumprimenta e tudo mais. Ela tenta fazer amizade com minha mãe as vezes, mas a mesma se fecha por causa da última tentativa de Judith.

Ambas estavam conversando tranquilamente enquanto aguardávamos que a doutora nos chamasse, quando a mãe de Claire educadamente perguntou à minha o porquê de estarmos aqui. Minha mãe hesitou por um momento, e eu percebi que ela se preocupava se eu estava ouvindo ou não, então fingir estar com sede e me levantei indo tomar um copo d'água do outro lado da sala para que ela ficasse mais a vontade para falar. Mas, mesmo assim ela continuava inquieta, então apenas respondeu com o nome do caso o qual não ouvi direito, mas escutei a palavra: "Estacionamento"

Foi quando escapou da boca da mulher um espantado: "Meu Deus!"
Enquanto tapava a boca com as mãos com uma expressão amedrontada de olhos arregalados. Nesse dia eu entendi a proporção do meu caso. Umas poucas palavras eram capazes de faze-la entender tudo e ao mesmo tempo de causar tamanho pânico.

—Castellamary! -O nome me chama a atenção fazendo-me erguer a cabeça vendo a secretária me encarando com o óculos na ponta da nariz. -Pode entrar!

Aceno a cabeça agradecendo e minha mãe diz:

—Estarei aqui fora caso qualquer coisa!
—Okay.

Vou para a porta e viro a maçaneta, dando de cara com minha médica. Era tão bom vê-la.

Chegava a ser acolhedor. Talvez mais acolhedor do que ver meus próprios pais e me sinto culpada por isso, mas infelizmente é a realidade. Claro que eu não conto isso para eles, mas a doutora sabe.

Ela me disse que isso é natural acontecer com pessoas que passaram por isso, por sequestros. A primeira pessoa que cuida da gente, que fala com a gente e que nos acolhe de imediato, é aquela a qual depositaremos toda a nossa confiança e com quem nosso subconsciente se sentirá a vontade. Isso é comprovado cientificamente, por isso está no protocolo hospitalar que manda que pessoas com transtornos mentais, em meu caso, o Estresse Pós Traumático, ao chegar em hospitais em estado de emergência devam ser atendidas pelos emergencistas junto ao auxílio de um psicólogo que possa.

Entrar naquela sala. Olha-la nos olhos. Ver sua expressão terna, e calma, sentir o aroma da sala que era o mesmo cheiro que o dela, lavanda e café que curiosamente formavam um cheiro maravilhoso. Isso mexe com a minha memória, fazendo-me dispersar e fazendo com que minha cabeça ative um flashback.

~Flashback On~

A barulheira parece não ter fim. Ordens, gritos. Pessoas de branco, jalecos. Médicos. Eles empurram a maca de um lado para o outro enquanto eu me mantenho imóvel olhando para o teto deixando as lágrimas caírem, e um grito de desespero ser sufocado em minha garganta. O gosto da bile junto ao sangue em minha boca causa um sensação nauseante em meu estômago. Sinto um frio estonteante, embora estejamos no verão pelo que eu me lembre. Meu corpo treme e meus dentes rangem batendo uns contra os outros.

—Onde ela foi encontrada? -Grita um homem.
—Não sabemos, o cara disse que a encontrou na beira da estrada cheia de sangue. -Responde outro, firmando o imobilizador, que mais parece uma caixa laranja, em meu pescoço.
—Traga-o aqui! -Grita o mesmo da primeira vez. Enquanto amarra meus pés a cama. Eu quero chuta-lo mas não encontro forças.-Menina, você está tremendo muito estou lhe amarrando para que não se machuque! Alguém trás aquele homem aqui!
—Não! Agora precisamos leva-la para a cirurgia! A costela dela foi quebrada e se ela se mover vai perfurar um órgão! -Dessa vez quem fala é uma mulher. -Olha, garota, preciso que me diga o seu nome ou o nome de alguém para quem eu possa ligar e avisar que está aqui!

As palavras correm pela minha mente, eu tenho falar. Tenho que falar tudo. Denunciar. Denunciar. Denunciar. É tudo que eu penso. Eu tenho que denunciar. Precisam saber o que houve. Denunciar. Não posso morrer sem que saibam o que houve. Eu quero gritar por socorro. Eu tenho que gritar por minha vida. Tenho que fazer isso, mas não consigo pronunciar uma palavra sequer.

A cirurgiã vê que eu não respondo, mas vê meus olhos esbugalhados, vê minha mão balançando loucamente, enquanto urro baixo, salivando por causa da dor pra engolir, dando sinais de quem quer falar, mas não consegue.

—Ela quer se comunicar! Ela está em estado de choque, chamem a Pilar! Agora!

Ela sai da sala por alguns instantes e eu me desespero me mexendo com as forças que encontrei, mas os outros médicos seguram meus braços com tanta força que chegam a machucar. Eles gritam para que eu não me mova em hipótese alguma mas eu continuo lutando até uma mulher de cabelos longos pretos, óculos quadrados, traços finos, e um jaleco branco parar ao meu lado.

—Olá! Oi! -Ela tenta chamar minha atenção. Eu respiro ofegantemente fazendo um alto som de quem sente uma enorme falta de ar, ou fumou a vida inteira. As lágrimas caem sem parar e eu não consigo ver claramente pelo meu olho direito graças ao sangue seco em meu rosto. -Eu sou a doutora Pilar, e preciso que você me ajude a te ajudar. Você não pode se mover! Se você se mover seremos obrigados a te sedar, e assim eu não poderei lhe ajudar! Fique calma!

Eu paro de tentar lutar, mas, continuo fazendo o som com a boca.

—Ok. Bom! Consegue mover as mãos? -Balanço as mãos com rapidez e ela vê que sim. -Ótimo! Ótimo!

Ela segura a minha mão e diz:

—Consegue escrever? Se sim, aperte.

Aperto a mão dela desesperadamente, e ela entende que sim. Mais que isso, ela entende que eu preciso escrever agora.

—Doutora, ela precisa ir pra cirurgia!
—Espere, Will! Ela está desesperada, não vê? Ela tem algo pra falar e eu não vou deixar que ela entre naquela sala sem dizer antes!

Ela sai afoita procurando um pedaço de papel e uma caneta. Ela segura o papel e eu escrevo deitada, totalmente imobilizada. Do pescoço, até o pé, mas a mão solta. Ela põe a caneta entre meus dedos, balanço, tremo mas com dificuldade eu consigo formar as letras.

Melanie

—Ótimo! Ótimo! Bom! Muito bom! Seu nome é Melanie! Melanie, consegue me dizer pra quem ligar, o número dos seus pais ou de alguém que eu possa informar que você está aqui?

Polícia

—Polícia? -Com meu olho esquerdo ainda aberto, que não está tapado pelo sangue, vejo que ela olha para seus parceiros de forma estranha. -Por quê...?

O choro rola sem parar, desenfreado, e eu gemo baixo, com uma dor sem fim tanto fisicamente quanto por dentro me contorcendo na mesa.

Ela se acalma me olhando de sobrancelhas franzidas, de forma séria e firme me passando confiança.

—Melanie, por que quer que eu chame a polícia?

Sequestro

O som se faz mais alto pela minha boca, eu quero fugir dali mas não sei pra onde ir. Onde é seguro?

—Meu Deus... Okay! Okay, Melanie! Fica calma! Me escuta! Eu vou cuidar de você! Mas, agora, esses pessoal tem que te levar para sala de cirurgia por que um de seus ossos se quebrou e pode lhe machucar gravemente. Me ouviu? Ta tudo bem?

Seguro a mão dela com força querendo gritar e externar tudo aquilo mas não consigo. Tenho medo de ir, tenho medo do que pode acontecer la dentro, tenho medo da anestesia e de ficar desacordada. Se eu dormir fico vulnerável. Ele pode me encontrar. Ele pode me levar para aquele quarto de novo. Eu vou ser sequestrada mais uma vez.

—Melanie! Melanie! Calma! Seja lá quem tiver feito isso contigo não vai chegar perto de você nunca mais! Está me entendendo? Eu prometo! Eu vou ficar naquela sala de cirurgia do seu lado, e ela vai estar cercada por guardas e ninguém que não seja da minha equipe vai passar! Você está segura! Agora, preciso que me diga mais uma coisa antes de entrar! Pode ser?

Aperto a mão dela e ela entende que sim.

—Você sabe quem fez isso com você? Pode me dizer um nome, um apelido, um endereço, um ponto de referência ou até mesmo uma característica marcante do rosto dele ou de seu corpo.

Trêmula, com a caneta quase caindo da mão, escorregando entre meus dedos por causa do sangue, da terra e da água da chuva, eu escrevo aquilo que mais me deu medo e que me atormentará para sempre.

Lobo

Então um enjoo insuportável se faz em meu estômago, o cheiro se torna algo fortíssimo, e a tremedeira não para, é quando eu me rendo com a sensação de trabalho cumprido, deixando a caneta deslizar por meus dedos em direção ao chão e minhas pálpebras fecharem dando-me finalmente um descanso, rezando para que se eu morrer, a justiça seja feita.

~Flashback off~

Não lembro de nada após aquele momento. Doutora Pilar diz que eu desmaiei, ou por pânico pela palavra escrita, ou porque qualquer pessoa no meu estado já teria desmaiado muito antes, mas eu não permiti ao meu corpo que relaxasse enquanto eu não desse a mínima pista do que tinha acontecido comigo.

—Melanie? Mel? Mais um devaneio? -A voz dela me acorda num susto.
—Que? Oi? Ah... Sim... Infelizmente sim.
—Teve muitos hoje?
—Não. Esse é o primeiro.
—Foi sobre o quê?
—Quando nos vimos pela primeira vez.
—Na emergência?
—Sim. -Respondo fechando a porta e me sentando no divã vermelho.
—Você ainda tem muitos flashbacks?
—É difícil dizer... Antes eu pensava nos últimos 4 anos o tempo todo. Era sempre um flashback, um devaneio, um sonho relacionado àquilo. Ao quarto, nele falando comigo, nas noites de sono mal dormidas. Mas, agora é diferente... Não tenho tempo pra devanear, ou pra ter flashbacks...

Fico mexendo em meu dedo, balançando a perna hiperativamente, enquanto Pilar apenas me observa.

—Eu to sempre com medo. Aflita. Pensando que ele pode estar do outro lado da rua me observando...Rindo. -Dou um riso abafado. -Esperando o momento que minha mãe irá virar as costas, que eu abaixarei a guarda, que não haverá câmeras por perto... Esperando pelo momento perfeito.
—Sentiu isso no seu primeiro dia na escola?
—Tem uma floresta perto da escola...

Pauso, desviando meus olhos para vaso de plantas que fica no canto da sala. Sei que ela me observa, tentando decifrar o que eu quis dizer.

—E isso seria bom?
—É onde os lobos se escondem.

A doutora se arrepia com minhas palavras, voltando-se para sua prancheta, anotando aquilo.

—Acha que ele está na floresta te observando?
—Doutora... Eu acho que ele está na floresta. -Dou uma longa pausa ainda encarando aquele vaso de plantas, ela faz menção a falar mas eu continuo interrompendo sua menção a falar algo. -Acho que ele está na sala de aula disfarçado de professor substituto ou que está dirigindo o táxi que eu pego para vir para cá.

Meus olhos marejam, e eu engulo em seco com dificuldade, respirando fundo deixando a lágrima cair de meus olhos direto ao chão.

—Acho inclusive que ele está atrás da janela de vidro fumê do prédio da frente. Me olhando. Me esperando. Pronto para dar o bote a qualquer momento.
—Melanie, você está segura!
—Não pode afirmar isso, doutora.
—Melanie, seus pais...
—Meus pais não podem fazer nada. -Deixo escapar e sigo. -Eu sei que eles entraram em aulas de tiro alvo, sei que ambos portam consigo revólveres, mas não é o suficiente.
—Por que diz isso?
—Porque ele não apontou uma arma pra cabeça de minha mãe. Ele não arrombou a porta de casa e me fez de refém. Ele é esperto. Se eu for... Se eu for... -Respiro fundo procurando forças pra dizer. -Se eu for sequestrada de novo, será assim, do nada, sem que ninguém perceba. Sem provas.
—Mas houve um erro no plano dele, Melanie. Você mesma me disse isso!
—Sim. Mas e dai? Esse erro não foi tão grave pra impedir que eu perdesse 4 anos de minha vida. Houve um erro e ele sabe disso. Ele disse que jamais cometeria o mesmo erro duas vezes.
—Mas ele cometeu de novo, e um pior! Você escapou! Isso significa que ele não é tão esperto quanto parece.

Ficamos em silêncio, e eu solto mais um riso irônico.

—Escapei mesmo?
—Melanie, você é livre!
—Não, doutora. -Pauso e continuo. -Eu sou tão prisioneira quanto antes! Talvez até mais! Sou prisioneira da minha mente! Ele pode não estar aqui fisicamente mas sua presença está impregnada em cada parte do meu corpo, em meu psicológico. Eu acordo pensando nele e durmo pensando nele como uma decepção amorosa mal resolvida. Onde eu vou eu penso se ele pode estar lá, se ele não está olhando e rindo da minha ingenuidade enquanto eu penso que fugi mas, na verdade, ele que me deixou fugir pra tornar tudo mais emocionante.
—Por que acha que ele faria isso?
—Em quatro anos de cativeiro eu nunca vi seu rosto... Ele nunca deixou. Nunca! Nunca deu um deslize para que eu conseguisse o ver. Ele sempre usava aquela máscara de lobo.
—E nunca tentou tira-la?
—Claro que tentei. Mas, ela era presa ao resto de sua roupa. Se eu tentava tirar, ele me espancava. Era assim.
—E a polícia? Não confia neles? Na delegada Traynor, nos agentes do FBI que estão ambiciosos atrás do sequestrador?
—Eles não me encontraram. -Respondo com raiva. -Eu não fui traficada com outras mulheres por uma agência de modelos para uma casa se prostituição em algum outro continente. Eu estava aqui... Bem aqui... O tempo todo. Há alguns quilômetros de distância. E mesmo assim, eles nunca me encontraram. E agora que escapei, eles não encontram meu sequestrador! Então não, eu não confio na polícia!
—Melanie, pensa que seus pais não tiram os olhos de você nem por um instante. Você está sempre acompanhada, com alguém. E ele não a sequestraria de maneira tão óbvia, tanto que você me contou que quando houve o rapto você estava sozinha.
—Isso é por enquanto doutora, o tempo vai passar, e iremos abaixar a guarda a qualquer instante. Tanto eu, quanto meus pais.
—Sabe, Mel, o que mais me intriga no seu caso?
—Diga.
—A maioria das pessoas, que passam por essa situação, não têm esse medo quando escapam.
—Como assim "esse medo"? Que medo?
—Elas costumam pensar que seus seqüestradores irão fugir, com medo da prisão, e que por mais que arrumem outra vítima não voltarão atrás da mesma. Elas têm dificuldades para se readaptar, dificuldade pois ficam achando que pode haver outro sequestro. Mas você não... Você tem medo desse homem!

Sinto nojo pela referência a ele, meu estômago chega a revirar o almoço só de pensar no cheiro nauseante daquela fantasia imunda que fedia a cachorro molhado.

—É...
—Foi por isso que não pedi que entrasse em algum grupo de apoio. Você não tem as mesmas características que elas. Mas, me diga então, por que você acha que ele arriscará ser preso só para tê-la de volta? Ele tinha algum tipo de apreço por você?
—O quê?

Começo a rir loucamente, como uma louca de pedras, eu me desfaço naquela cadeira, ficando até sem ar de tanto que rio de sua pergunta. Quando paro, a olho incrédula e respondo:

—Ele é sádico! Louco. Inconsequente. Perverso. Maléfico. Cruel. Eu li, doutora. Mesmo com meus pais controlando todo e qualquer meio de comunicação com o mundo que eu possa ter, eu li sobre essas mentes. Li sobre casos parecidos com o meu e até piores. De garotas que foram sequestradas por 8, 12 anos ou a vida toda. E eu cheguei a sentir uma ponta de inveja... Estranho, não? -Dou uma pausa sentindo aquele aperto, aquela sensação de desgosto que a inveja causa.
—Inveja? Inveja do quê?
—Seus seqüestradores tinham, de certa forma, um carinho por elas.
—Seu sequestrador indica ser um sociopata, ja a maioria dos outros, os que você leu sobre, foram psicopatas! Por isso ele não demonstrava afeto por você!
—Eu sei, mas muitas chegaram a desenvolver a síndrome de Estocolmo, e a senhora sabe que isso nunca foi o meu caso!
—Sim, sim. Desde nossa primeira conversa você deixou bem evidente que não possuía essa síndrome. -Ela confirma. -Pelo contrário, você sempre demonstrou raiva por seu agressor.
—Raiva não. Ódio. Nojo, doutora. Ele não me sequestrou por ser um pedófilo e querer uma criança de 12 anos para satisfazer seus desejos sexuais imundos; ele não me sequestrou pra preencher um vazio psicótico como os dessas outras garotas. Ele me sequestrou com um único e maldito intuito.
—E qual seria? -Ela se ajeita na cadeira prestando atenção total a cada palavra que sai de minha boca.
—Tortura. -Dou uma pausa procurando as palavras. -Ele queria me ver sofrer, enlouquecer, queria me atormentar até eu me tornar tão louca quanto ele.
—O que ele fazia, Melanie?
—Foi quando tudo começou... Ele se divertia, ele ria, zombava de mim. Pulava envolvendo as mãos uma na outra, gritando de alegria, era doentio, assustador, me dava pânico! Enquanto ele ria, ele falava frases como "Peguei você" e "Você jamais irá escapar". Tudo porque ele via meu desespero, minha vontade de correr, eu batendo nas paredes, gritando por socorro e ele ria... Ria porque ninguém jamais me ouviria debaixo da terra. Quase como num caixão... Como se eu já estivesse morta.

Ficamos quietas, mais uma vez. As sessões com a doutora Pilar são cheias de momentos tensos ocupados pelo silêncio e pela inquietude. Não porque uma de nós está desconfortável, mas sim porque é muito pesado tudo isso para falarmos sem dar uma pausa para digerir tudo.

—Pensa que ele te deixou escapar pra... Pra te ver surtar? É isso?
—Eu surtava no começo... Pensando nos meus pais, no desespero que eles estariam, e na minha vida seguindo sem mim, e quando ele ria e me torturava mentalmente, pondo objetos afiados por perto e coisas assim, dizendo que ia me matar... Mas o tempo passou e eu vi que ele sempre ameaçava fazer algo, mas, nunca fazia de fato! Então eu me acalmei, parei de surtar. Ainda tinha medo, mas não tanto. Foi ai que eu entendi como a mente dele funcionava.
—Me explique então!
—Quando eu parei de ter surtos de pânico, ele se enfureceu, ficou com ódio, mas não me matou ou trocou de vítima, ele quis... Me consertar! Então, já que eu já não tinha mais medo dele, ou das armas com as quais ele me ameaçava, ele começou a usa-las de verdade. Foi assim que eu ganhei esses cortes no pescoço, nos pulsos, e em outros lugares do corpo. Então, eu entendi que quanto mais eu surtasse, mais ele se divertia.
—E depois que você ja havia cansado de tudo? Ou isso não chegou a acontecer, ele tinha sempre uma nova ideia aterrorizante?
—No dia que eu escapei... Ele estava cansado de me ver calma. Nada mais me incomodava. Nem as risadas, nem olhar pra ele, nem os estupros, nem apanhar, nem os cortes, nada. Pelo contrário, elas me atraiam de certa forma. Antes eu gritava por medo, por não querer morrer, mas depois de 4 anos, eu não via mais saída. A polícia não tinha me encontrado, meus pais provavelmente ja teriam parado com as investigações achando que eu estava morta. Então, eu não gritava mais. Eu nem podia mais gritar por causa do nódulo que se formou em minha garganta por tantos gritos. Isso fez com que ele me espancasse tanto a ponto de quebrar minha costela, dar ao meu braço uma fratura exposta, arranhar mais ainda meu corpo me deixando inúmeras cicatrizes, quase me cegar, e... Bem, você viu.
—Sim, Sim... Lembro perfeitamente de quando a vi naquela maca.
—Então, enquanto ele achava que eu estava inconsciente, após bater com uma vara de madeira em minha cabeça várias vezes, eu fugi.
—Então ele se cansou da sua inércia para com as maldades dele, portanto, a deixou fugir para que você relaxasse, deixasse sua mente voltar ao normal, para que você se recompusesse e a polícia e todos abaixem a guarda para que então ele a sequestre novamente já que assim o seu medo estaria novo em folha.
—Exatamente. E durante tudo isso ele me observa de longe, se deliciando ao meu ver contraída na rua no corpo de minha mãe, e principalmente... Quando eu tenho uma crise.
—E teve alguma?
—Claro! A crise começou no instante que minha mãe disse que ia me deixar na escola sozinha, como se eu tivesse 5 anos de novo.

Essa consulta está sendo cansativa. Pensar em tudo, relembrar, segurar lágrimas, procurar forças pra falar. Sorte que pelo que o relógio de ponteiro pendurado na parede indica faltam menos de 20 minutos.

—Melanie, o que você mais deseja? -Ela me encara como se aquela fosse a cereja do bolo para tudo que eu disse.
—Encontra-lo, vê-lo preso. -Respondo de imediato.
—Culpa a polícia, então?! -Ela rebate.
—Não. Mas, sinto raiva por ainda não terem o encontrado.
—Melanie, eles me contaram que você oculta uma informação que pode ajudar a investigação. Isso é verdade?
—Sabe que sim.
—Quero que seja honesta comigo. Essa informação é o apelido que ele te deu, correto?
—Sim. -Respondo sem problemas.
—E por que não conta? Pensei que queria vê-lo preso. Tem vergonha do apelido, ou se apegou a ele de alguma forma? -Ela ajeita o óculos e eu sinto raiva da pergunta gritando:
—NÃO! -Me exalto e respiro fundo me acalmando. -Não. Não me apeguei a nada relacionado àquele homem.
—Então, por que oculta a informação?
—Eu dei muitas informações. Todas as que eu sabia. Se a polícia não conseguiu acha-lo tendo o cativeiro, tendo pertences dele e coisas assim, não vai ser o apelido que vai ajuda-los. E quando... E se o encontrarem, eu quero a prova de que é ele de fato. E eu sei como a polícia pode ser corrupta ou prender a pessoa errada. Se for ele de verdade, ele com toda certeza dirá o apelido para me perturbar, e, somente eu poderei confirmar se é ele ou não. Então, eu não vou contar do que ele me chamava. Jamais. Não adianta.
—Melanie, então me responda outra coisa. Antes de mudar o foco da consulta, me responda mais uma coisa.
—Se eu puder lhe dizer!
—Qual era seu maior medo, antes do sequestro?
—Cães. -Respondo com naturalidade.

Ela fica levemente extasiada, mas tentando ocultar a surpresa com aquele fato. Ja vi a doutora atendendo outras pessoas no hospital, pela sala de vidro, e nenhum de seus pacientes é capaz de deixa-la sem palavras como a minha história deixa.

—Entende agora, doutora? Ele sabe o que faz...

Ela se ajeita na cadeira, tossindo para limpar a garganta e volta a me perguntar sobre o meu primeiro dia de aula como se nada tivesse acabado de acontecer e eu apenas tusso também, seguindo a conversa junto a ela querendo que isso acabe de uma vez para eu poder dormir o máximo possível.