Suguru-

No momento, tenho que me concentrar em correr mais rápido que o vira-lata atrás de mim. Estou ridículo e tenho consciência disso, levantaria as mãos para o céu e agradeceria a rua vazia se não estivesse ocupado correndo do cachorro insistente. Eu estava passando na frente de um condomínio quando a criatura se sentiu ameaçada e decidiu me perseguir, essas coisas só acontecem quando estou particularmente animado para sair, o que é raro.
Viro uma rua subindo o batente de uma casa com algumas árvores, me escondo atrás da mureta e ouço o latido do infame passar por mim se distanciando. Suspiro. Agora estou suado e um pouco afastado do meu destino. Puxo o celular e digito um pedido de desculpas a Satoru explicando o que houve, ele responde em dois minutos.

Satoru 19:34
Não quer mesmo que eu vá te buscar?

You 19:35
Não precisa. Eu chego em alguns minutos.

Passo as mãos pelo cabelo, arrumando o máximo que consigo enquanto me olho no espelho minúsculo que carrego na carteira. Quando me certifico de que estou decente e não suei demais, me ponho a andar novamente. São cerca de dez minutos daqui até o local, e a brisa da noite me faz recuperar um pouco o bom humor que me motivou a sair de casa. O tempo passa a longos tragos a medida que as ruas vão ficando barulhentas, é sempre esta a sensação de me afastar da rua deserta onde moro.

Menos de sete minutos de caminhada são suficientes para me darem a visão do estabelecimento que Satoru escolheu. É um prédio com três andares coberto por uma fachada vermelha circulada por linhas azul neon. Foi feita para ser chamativa sem abdicar da elegância. Apenas agora me dou conta do quão nervoso estou, a ansiedade me consome. E quando isso acontece, um bando de pensamentos inúteis invadem minha cabeça. Como vou encontrá-lo sem passar vergonha? Estou fedendo a suor? E se estiver lotado e eu tropeçar na entrada? Por mais que só haja duas pessoas do lado de fora, não consigo enxergar nada lá dentro, não sei quanta gente tem. Respiro fundo. Nenhuma dessas coisas é um problema real.

Antes que um impulso inseguro me force a dar meia volta, eu empurro a porta de vidro e avanço para dentro do lugar. Um cheiro familiar invade meu nariz assim como a música alta circula ao meu redor abruptamente, alguns homens sentados nos bancos na frente do balcão me olham de relance. Alguns olhares permanecem quando dou alguns passos, mas ignoro.
É muito espaçoso, há uma pista de dança à direita e inúmeras mesas ocupadas do outro lado, mas não tem tanta gente quanto imaginei. A decoração é sóbria apesar dos vários pontos de vermelho e das cortinas com corte atravessado, que remetem à elegância. O cheiro que senti provavelmente vem da cozinha e me faz lembrar de quando a missdy ainda era um restaurante.

Absorvo a ilusão de mais altura que o teto baixo provoca enquanto dou a volta nas mesas. Alguns casais me olham e eu sorrio para uma senhora sentada sozinha com uma garrafa de cerveja, o que me faz esquecer um pouco o nervosismo.

Satoru tem faro para lugares. Ergo a cabeça ao encostar em um pilar, pretendo mandar uma mensagem mas dou de cara com um espelho a altura dos meus ombros. Há led branco ao seu redor e algumas flores da mesma cor. Olhar meu reflexo a essa altura me trás uma leve insegurança, mesmo que minha franja caia ao redor do meu rosto do jeito que eu gosto e esteja usando minha jaqueta favorita. Sei que não estou tão mal, mas estou prestes a encontrar um cara estonteante.

—Suguru! —Viro o rosto para a voz que me chama. Pensando no diabo. —Não viu minha última mensagem? —Satoru se aproxima um pouco exasperado, passando os dedos pela manga da camisa social. Eu abro as notificações do celular na mesma hora, mas não tem nada dele. Puxo a barra das configurações e entendo o porquê.

—Ah... Fiquei sem internet. —Um calor me sobe até o rosto enquanto espero alguma decepção, mas ele só sorri mostrando os dentes e balança a cabeça. O sinal nunca caiu, nem mesmo no interior, mas hoje resolveu me trair.

—Tudo bem, na verdade é melhor assim. —Não consigo decifrar o olhar que ele põe sobre mim, tampouco o que quis dizer. Satoru dá alguns passos parando ao meu lado. —Você está especialmente lindo hoje.

—Obrigado. Bom, você também, mesmo que já tenha plena consciência disso. —Pisco utilizando a velha tática de distração para desviar do elogio. Seus olhos brilham um azul profundo na luz branca, quase irreais, e estão tão focados em mim que quase tropeço ao sentir uma mão nas minhas costas.

—Por aqui, tenho uma pequena surpresa já que as circunstâncias quiseram assim. —Apenas a ponta dos seus dedos me empurram de leve por cima do couro da jaqueta. Satoru caminha meio atrás, meio do meu lado sem tirar os olhos do meu rosto, que eu faço questão de manter virado para frente enquanto serpenteamos entre as mesas. Vamos em direção ao elevador e eu deixo a ansiedade voltar a me consumir. Ele disse que tem uma surpresa. E deve ser uma bem cara, pois lembro bem de ele ter dito trabalhar em uma empresa grande e sinceramente, não acredito que seja um simples funcionário.

—Posso ter um spoiler? —Ofereço meu sorriso mais inocente assim que ele aperta o botão se afastando das minhas costas. Deixo o ar escapar. —Não é nada pra me causar um infarto, certo?

—Não, relaxa. —Uma risada lhe escapa e eu não posso deixar de o encarar mais minuciosamente. Ele usa uma camisa branca imaculada com dois botões abertos, as mangas estão alongadas e abertas na altura dos pulsos revelando uma série de pulseiras artesanais. Um toque de personalidade. Sua calça é jeans de lavagem clara e rasgada nas coxas expondo filetes de pele. A única quebra em seu visual impecavelmente branco são as botas chelsea negras e opacas em seus pés.

Entramos no elevador e eu finalmente sei o que esperar quando ele aperta o último botão.

—Terraço? —Encosto as costas na barra de metal e encontro seu olhar, seus fios platinados parecem ter sido domados com uma escova pois caem em cascata a altura das orelhas. Sorrio do meu palpite certeiro.

—Sim, espero que aprecie a vista. —Suas mãos jogam a franja para trás e deixam seu pescoço à mostra, eu logo pego a piada. —Porque eu amei na primeira vez que vim.

—Eu vou adorar, tenho certeza. —Sorrio porque já adoro, mas não vou alimentar seu ego.

O elevador para e nós saímos. Dessa vez Satoru segura meu pulso. A brisa gelada nos envolve imediatamente e eu encolho os ombros, estamos mesmo no terraço de um bar. É um espaço totalmente aberto e decorado de maneira sutil, há várias luzes por todos os lados caindo das colunas e circulando os canteiros suspensos. Cortinas transparentes cor de vinho separam ainda mais as mesas já bem afastadas, balançando com a corrente de ar.
A iluminação é baixa pois as lâmpadas são minúsculas, mas as flores abundantes se espalhando por todos os lados nunca passariam despercebidas. Conto três mesas vazias enquanto sinto a mão de Satoru apertar a minha.

—Imagino que aqui seja exclusivo. —Não sei bem o que dizer quando ele puxa a cadeira para mim, mas sinto que preciso dizer algo. —Reservou apenas por minha causa?

—É claro que sim, eu adoro esse lugar e queria que se sentisse à vontade. —Seu sorriso é um pouco maior que o tradicional quando ele se acomoda na cadeira à minha frente. Nem parece que pagou uma nota em um primeiro encontro. —O que acha da vista? —A mesa que estamos é perto da grade baixa de madeira na borda, então só preciso virar o rosto para fitar as luzes do centro, é possível ver o rio cruzar o parque de diversões com a ponte repleta de arcos e a roda gigante ao seu lado brilhar em azul e branco. Nem estamos tão alto mas é um lugar estratégico.

—Eu amei Satoru, a cidade é maravilhosa a noite. —Olho para ele encostando os cotovelos na toalha de mesa macia, a luz é baixa mas é suficiente para que consiga ver suas expressões e cada pequeno movimento que faz, além de fazer seus olhos chamarem ainda mais atenção. —Você disse que ama esse lugar, costuma vir com frequência?

—Não tão frequentemente quanto você está pensando. —Ele adora colocar pensamentos em minha cabeça. —A cada mês, eu diria, às vezes só pra jantar lá embaixo. Eles têm a melhor comida de restaurante que já provei. —Sorrio observando suas mãos se cruzarem e esfregarem as unhas. Ele está nervoso? Isso meio que quita uma parcela da minha ansiedade. —E bom, você me disse que gosta das coisas simples sem exposição social, achei que um pouco de privacidade cairia bem.

—É exatamente o tipo de lugar que eu escolheria. —Puxo a jaqueta que estou usando assim que sinto o ar abafar, coloquei uma regata preta antes dela, então a temperatura baixa consideravelmente. Sinto um olhar sobre mim quando penduro a peça sobre o encosto da cadeira. —Você tem um ótimo gosto.

—Com certeza eu tenho. —Seus olhos se desviam até o homem que acaba de sair do segundo elevador. —Algo pra beber, Suguru? —Seu tom é agridoce e vem acompanhado de um repuxar nos lábios, eu ponho os dedos no queixo e pondero.

O nome do lugar é literalmente curlew bar ou alguma coisa assim, beber um pouco não faria mal. Será que beber no primeiro encontro é rude? Mas ele me trouxe em um bar... Pelo jeito como Satoru me olha, sabe o que estou pensando.

O homem se aproxima de nós, homem não, garoto, e oferece um sorriso simpático. Eu me inclino para frente esticando as costas e me apoiando na borda arredondada da mesa. O loiro a minha frente faz um movimento parecido ao escutar o comprimento do garçom. Ele pergunta o que queremos enquanto entrega os cardápios. Passo o olho pela enorme quantidade de drinks.

—Um cosmopolitan, por favor. —Decido ir pelo caminho do que mais conheço, já que sessenta por cento do que leio não me é familiar. Satoru olha em meus olhos com um ar de surpresa, mas logo afasta os ombros encostando-se na cadeira com um sorriso.

—Dois. —Ele pede e o garçom assente indo embora. Solto uma pequena risada inconsciente. —Não esperava por isso, você parece outro tipo de cara.

—Que tipo? Veja lá o que vai dizer, eu posso ser bem vingativo. —Provoco, mesmo sabendo que essas coisas apenas alimentam seu humor. Puxo o celular para ver se a internet voltou e me deparo com o sinal ausente, o que é muito estranho, mas eu ignoro e volto meu olhar para frente.

—Ah deixa eu pensar... —Uma corrente de ar levanta minha franja e bagunça o cabelo de Satoru, passo os dedos tentando arrumar e aproveito para pôr de volta os fios que fugiram do elástico. —Sabe, a primeira vista pensei que não bebia. —Ele confessa.

—Então esperava que eu pedisse um copo d'água?

—Não. —Mais um sorriso. —Eu disse à primeira vista. Depois de um pouco de conversa podia jurar que pediria uma dose de whisky sem gelo. —Eu rio alto. —Mas pelo visto você é mais refinado.

—Não sei se concordo mas também não sou rústico. —Ele dá uma risada macia e puxa um guardanapo; parece algo involuntário, ainda mais quando seus dedos amassam e desamassam o papel continuamente. É nervosismo ou ele só é hiperativo? Não tenho mais certeza. —Quanto a você, não fugiu de nenhuma das minhas primeiras impressões. É um livro aberto.

—Um livro aberto? —Suas mãos param. Seu rosto assume algo rígido e eu levanto as sobrancelhas temendo ter dito algo errado; porém ele apenas inclina o pescoço de forma curiosa. —E o que você lê?

Estamos a um esticar de braço de distância quando o clima muda drasticamente. O ar rodopia por mim e por todos os meus poros mas se recusa a entrar pelo meu nariz. Eu tenho certeza que estou fazendo uma expressão estranha quando começo a enxergar um brilho antinatural envolvendo Satoru, azulado semelhante a fumaça. Seus olhos parecem ganhar vida em meio à névoa.

O que está acontecendo comigo?

Fui drogado? Não é possível.

Olho para a mesa, em um instante ela está intacta na minha frente cheia de listras negras, no outro está se inclinando a minha esquerda. É tudo tão devagar que juro poder distinguir cada centímetro do tecido.
Um calor me dá a vaga impressão de uma mão, mas não sei onde, não tenho noção de qual parte do meu corpo ela toca.

Só sei enxergar.

Vejo de fora minha própria mão tentando agarrar a toalha, pois não sinto nenhum impulso físico. Na verdade não sinto parte alguma do meu corpo.

A escuridão se apossa de mim.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.