Seguir Em Frente - CIP

Capítulo Único - Seguir em Frente


Martin entrou na edícula e encontrou Félix deitado no sofá brincando de air bateria.

— Cadê todo mundo? — questionou.

— Bom... — Félix se sentou e largou as baquetas ao lado no estofado. — Pedrinho e Julie estão numa excursão da escola e o Daniel fez questão de ir pra encher o saco do Nicolas e consequentemente irritar a Julie.

— Ah, isso significa que estamos sozinhos. — um sorriso provocante se espalhou pelo rosto pálido do fantasma enquanto se aproximava.

— Eu conheço essa cara, nem pense nisso, Martin. — de fato o baterista conhecia bem aquela expressão desde que eram vivos e namorados.

— Porque não? — o baixista perguntou e soltou um longo suspiro antes de continuar. — Olha... Eu sei que você sente saudades. Porque me afastar tanto? É tortura ficar com você o tempo todo e te sentir tão distante.

— Você não tem jeito, né? Já não basta termos morrido por isso?

— Nós é que estávamos errados, Félix? Éramos nós, tem certeza? — dava para sentir a magoa que acompanhava aquela pergunta.

— Quer saber? A gente nem deveria estar falando sobre isso. Esse era o combinado.

— Para de ser dramático. — Martin revirou os olhos e apontou em volta com as mãos. — Não tem ninguém aqui pra ouvir. E ainda acho que seria justo o Daniel saber. Afinal, ele veio junto com a gente. E o Josias só escapou por muita sorte.

— Cala a boca! Eu não to a fim de pensar nisso. Cala a boca, por favor.

Flashback

Daniel chegou à casa de Martin quase ao mesmo tempo que Josias, o colega de banda o cumprimentou e tocou a campainha, mas quem abriu a porta foi Félix.

— Que cabelo é esse, cara? — O tecladista se pronunciou primeiro. — Isso é jeito de aparecer numa capa de disco de rock? Dá uma bagunçada nisso aí.

Félix riu sem graça e deu passagem para os dois entrarem. — Ah, qual é? Vocês sabem o trabalho que dá pra deixar ele certinho assim? Eu gosto do cabelo todo arrumadinho.

— Pela banda. — insistiu. — Só por hoje.

— Todo grupo tem um nerd.

— Como chegou antes da gente? — Daniel entrou na conversa mudando o assunto. — Você mora lá em Fim do Mundo 5.

— Ele dormiu aqui. — A resposta veio de Martin que colocara só a cabeça para fora do quarto para olhar o corredor. — Andem logo, eu arranjei umas roupas bacanas pra nossa capa, quero que vejam.

— De novo? — O guitarrista franziu o cenho. — É o que? Tá morando aqui agora?

— Não! — exclamou rápido, mas logo percebeu que soou estranho e tentou concertar. — Quer dizer, não. Ué, não posso mais passar uns dias na casa do meu amigo?

— Calma, cara. Só acho estranho seu velho deixar. Sabemos que o Martin tá longe de ser a pessoa favorita dele. — Daniel comentou com as sobrancelhas franzidas

— Foco, patota! — Martin chamou a atenção. — Temos que sair já já pra tirar as fotos!

Daniel concordou e desistiu da discursão, o que deixou o baterista mais aliviado.

A verdade era que Félix tivera uma briga feia com seu pai uma semana antes quando o homem conservador encontrou o filho aos beijos com o baixista no quarto. Foi uma chuva de gritos e lágrimas até que por fim o senhor deu duas opções “nunca mais chegue perto desse moleque nojento ou fora da minha casa”. Martin disse que entenderia qualquer escolha feita, mas Félix o amava. Por isso estava morando na casa dos Novac e dizendo a todos que passaria “apenas uns dias”.

Os pais de Martin sabiam sobre sua sexualidade e até sobre seu namoro, a diferença é que eles aceitaram o filho, pois o amavam exatamente como era.

Depois de vestidos com as roupas bonitas e elegantes, porém não muito compatíveis com o clima quente daquela cidade, os quatro integrantes da Apolo 81 saíram em direção ao lugar onde pretendiam fotografar, lá o transito era quase nulo, ainda mais cedo assim.

Daniel, como o chato metódico que era, foi checar meticulosamente se havia algo no meio da rua que pudesse estragar sua foto, como uma tampinha de refrigerante, por exemplo. Enquanto isso Josias estava arrumando o tripé e preparando o timer da câmera.

E aproveitando que seus colegas de banda estavam distraídos, Martin segurou o braço de Félix com delicadeza e o fez virar para si, então enterrou uma mão entre os cabelos lisos e muito bem arrumados, deixando a franja intacta na frente, porém bagunçando toda a parte de trás e um pouco da parte de cima.

— Te amo, meu nerdzinho fofo, mas a foto que vamos fazer é pra um disco de rock. — sussurrou com seu sorrisinho charmoso. — Acho que o cabelo certinho vai ficar pra mim. Não importa o que eu faça, o meu cabelo sempre fica igual.

— Verdade. É lindo exatamente assim. — Félix sorriu de volta e se esforçou ao máximo para não beijar o namorado, pois afeto público entre dois garotos seria um ultraje, no entanto o olhar que trocavam já era claramente cheio de amor.

— Pronto, a câmera tá no jeito, podem ficar em posição que ela vai tirar fotos sozinha. — Josias disse, chamando a atenção dos demais. — Já vou aí, vou só tirar o sapato. Quero ficar descalço igual o Paul Maccartney.

— Tá bom. — Daniel respondeu aproveitando que já estava na rua para ser o primeiro a ficar de pé na faixa de pedestre.

Logo ele foi acompanhado por Félix e Martin, que estavam na calçada. A intenção era imitar a capa do disco Abbey Road dos Beatles.

O problema era que a banda estava tão animada com o gosto de sucesso que podiam quase sentir na boca por ter conseguido o primeiro contrato para gravar o primeiro single com uma grande gravadora e com a inspiração a mil para novos trabalhos que sequer notaram um caminhão seguindo-os desde que saíram da casa de Martin.

O motorista era Edson, pai de Félix. Ele não havia dormido aquela noite com a ajuda de energéticos e pílulas, seu psicológico estava muito abalado.

As lágrimas indesejadas pelo machão conversador embaçavam seus olhos enquanto apertava forte o volante. Ele queria matar o moleque maldito que roubou seu único filho, um garoto extraordinário que tinha um futuro brilhante pela frente até chegar um loirinho metido a besta para ficar enfiando caraminholas na cabeça dele sobre música e outras merdas. Sim, devia matá-lo. Faria isso e tudo voltaria a ser como era antes. Sim, era o que precisava fazer.

Antes que pudesse pensar melhor, Edson virou a chave na ignição do caminhão e saiu com o pé pisando o mais fundo possível no acelerador. Porém, quando estava a pouquíssimos metros, seu cérebro, mesmo estando tão desfavorecido pela falta de sono, conseguiu ter uma gota de lucidez para perceber que se seguisse reto como estava não acertaria apenas aquele maldito Martin, acabaria atropelando Félix também.

Como único impulso que teve tempo de pensar, pisou com toda sua força no freio e girou o volante com muita brutalidade. No entanto, isso apenas piorou tudo porque ao invés de parar derrapando um pouco, o caminhão virou de lado e pegou os três jovens de uma vez, depois tombou com muita força e no impacto com o chão acabou dando um tranco tão brusco no corpo de Edson que a inércia o fez quebrar o pescoço.

E assim, em apenas alguns segundos, quatro vidas foram ceifadas.

Flashback Off

— Quer saber de uma coisa? A gente tem que falar sobre isso sim, Fe! Por que já faz 30 anos e você claramente ainda não superou. — Martin aumentou a voz sem gritar.

— Como eu poderia superar isso, Martin? — Félix choraria se pudesse, ao invés disso apenas tinha uma sensação estranha, um tipo de formigamento nos olhos. — Quatro pessoas estão mortas, incluindo eu, e a culpa é minha. Não dá pra seguir a vida quando se está morto.

— Só pra começo de conversa, você precisa parar de se culpar. — O baixista sentou ao lado do baterista no sofá e segurou sua mão. — A gente não fez nada, nadica, nadinha mesmo de errado. Vou dizer e repetir isso quantas vezes forem necessárias até a informação fixar na sua mente. Nunca vi alguém que é intangível ter uma cabeça tão dura quanto você.

— Martin, não...

— Deixa eu falar, por favor. — pediu em um tom delicado e esperou receber um aceno positivo para continuar. — Você sabe por que eu morri?

— Por que eu devia ter trancado a droga da porta do quarto há 30 anos? — perguntou, deixando escapar um soluço, malditos reflexos de vivo.

— Não. Eu morri porque te amo, Fe. E o seu pai? O seu pai morreu e matou todos nós porque me odiava. Ele me odiava por te amar e querer te fazer feliz. Quem tava errado? Quem tem culpa?

— Cê falou “amo”, percebeu? Não “amava”. — mesmo que não houvesse mais batidas ou tremores, Félix sentiu um calor emanando de seu coração, algo que desde que estava vivo só Martin conseguia causar.

— Eu ainda te amo.

Martin avançou nos lábios de Félix em um beijo cheio de saudades que foi retribuído na mesma intensidade, no entanto durou apenas alguns segundos até que baterista empurrou seus ombros sussurrando. — Para. Eu não posso. Eu não consigo.

— Por quê?

— Não dá, nós morremos por isso...

— Exatamente, estamos mortos, Fe! — exaltou-se de novo. — O que de pior pode acontecer? Eu podia ter te feito feliz há 30 anos e também posso agora, só que você não deixa! Porra, você merece, Fe. Sei que acha que não, mas você merece toda a felicidade no mundo.

— Eu quero. De verdade, quero muito. Só... Não consigo.

— Sozinho é difícil mesmo. — Martin recostou as costas no sofá, quase se deitando, e puxou Félix para junto de seu peito. — Tem uma ferida nesse coraçãozinho que não bate mais. Não era você que queria que eu fizesse medicina quando nós estávamos vivo? Vamos brincar de médico.

O discreto riso de Félix soou abafado, pois ele se permitiu se aconchegar no peitoral do amor de sua vida e morte. Esse foi o alívio que o coração do baixista precisava. Depois de 30 anos, finalmente podiam começar a seguir em frente.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.