Capítulo 5

1984

Este era um mundo de trabalhadores, e Allie sabia disso. Há anos que via seu pai chegar tarde do emprego, exausto. A vida era assim, ou pelo menos a parte em que ela conhecia. Por isso estava ali com o caderno de empregos numa mão e uma espátula na outra sobre frigideira, sentindo o cheiro engordurado subir-lhe ao nariz. Virou os hambúrgueres e tornou a olhar para o jornal até que o fora tomado.

- Ah, Spencer! – Allie gritou, furiosa. – Me devolva isso!

Ele se recostou no batente da porta com os olhos grudados no jornal.

- Hum, deixe-me ver o que tanto procura aqui...

Allie arrancou-lhe o jornal.

- Está afim de sair daqui, é? – Indagou ele.

- Mas é claro! Não quer que eu passe o resto de minha vida numa lanchonete embolorada de gordura como essa, quer?

Ela pensava muitas vezes que os anos em que se dedicara a faculdade foram definitivamente inúteis, já que estava impossível de se conseguir uma vaga em sua área. Entretanto, ainda precisava de um emprego melhor.
Seu pai - depois de anos – se encontrava doente. Os médicos ainda não sabiam o que se tratava e, muito menos a família. Era quase inacreditável, ele possuía uma saúde invejável. Sua mãe tivera que dedicar mais a ele, e Allie admirava essa cumplicidade entre os dois. Ela, agora, era o alicerce da família. Podia disfarçar, mas por dentro tinha um receio desse título por mais que soubesse que agora o carregava. Cuidava das economias da casa, que a dia se tornavam mais difíceis de se manter. Não podia, e não devia de jeito algum ficar desempregada. Precisava, necessitava, de um emprego mais rentável.

Spencer pousou a mão no ombro dela e fitou-a.

- Acalme-se, Allie, vai dar tudo certo. Seu pai vai melhorar, você encontrará um emprego do seu perfil e... se casará comigo! – Sorriu ele, brincalhão.

Allie desligou o fogo e deu um soquinho no braço dele, rindo.

- Como consegue me fazer rir num momento desses?

Allie e Spencer se conheciam há poucos meses, desde a entrada dela na lanchonete. E até então, tornaram-se grandes amigos. Spencer era magro, e de tamanho médio. Fios ruivos destacavam sua pele pálida e as sardas em todo o nariz. Era apaixonado por piadas, e sonhava em um dia ser um grande artista. Ele costumava treinar seu humor com Allie.

- O cara na cama ao lado perguntou o que ele fazia para ganhar a vida. E ele respondeu: “Era lavador de janelas no Empire State Building.” O outro perguntou: “ Quando largou?” A resposta foi imediata: “ Na metade da
queda.”

Eram sempre sem graça. E a cada piada, Allie recebia pequenos presentes, e dessa, Spencer tirou do bolso uma pequena barra de chocolate.

- Spencer, mesa um! – Gritou alguém.

Ele olhou para Allie, sorrindo.

- Lá vou eu!

Spencer a adorava.

Expediente encerrado. Allie retirava seu avental enquanto Spencer se aproximava. Ele sentou-se e se desfez dos
patins. Comentou com Allie:

- Está sabendo? O novo Álbum de Michael Jackson, Thriller, é um tremendo sucesso!

Apenas o nome, a fez lembrar as sensações que sentia antes, quando estava perto dele. Sempre soube que Michael nascera para música, mas nunca imaginou que seria tão conhecido. Aonde ia, podia-se ouvir músicas dele que viraram hits da época. Era uma completa mania. Allie já tinha aprendido a conviver com isso e com as recordações. Pelo menos era o que pensava. Spencer prosseguiu:

- Ele está na cidade, chegou esta manhã. E estará em uma breve conferência próximo daqui para falar sobre o álbum. Gostaria de ir?

Ela engoliu seco. Suas mãos tremeram.

- Estou cansada, Spencer. Prefiro ir pra casa.

Ele calçou os tênis e se levantou.

- Ah, vamos lá, Allie! Quando que na vida vamos ficar tão próximos de celebridades? Quem sabe não nos dá sorte?

Allie se mantia relutante. Spencer insistia:

- Vai te fazer bem espairecer um pouco. Acredite. – Ele consultou o relógio. –A conferência se inicia daqui à uma hora. Ainda temos tempo de chegarmos lá, se formos agora.

Balbúrdia. Uma verdadeira balbúrdia. Allie não conseguia respirar naquele monte de gente se esfregando para chegar cada vez mais próximo ao palco. Allie mantia-se agarrada ao braço de Spencer, erguendo pescoço e olhando ao redor, só para ter uma noção de onde estava.

- Spencer, isso aqui está lotado! Vamos embora!

- De jeito nenhum! Não sei quando poderei ter essa chance novamente! Talvez seja a única!

- Eu duvido que ele esteja aí mesmo. Tantas cidades para se fazer uma conferência e escolhem logo essa?

- Eu pensei que soubesse. Michael Jackson nasceu aqui em Gary, e talvez seja por isso que a conferência será aqui.

- Spencer, lamento, mas eu vou embora. Já estou toda amarrotada nesse meio e, logo estarei surda também. – Uma garota havia acabado de gritar próximo a Allie.

Saiu. Escapou. Se viu fora daquele tumulto assustador. E ao se encontrar no ponto de ônibus pode avistar uma
Lincoln Town Car Limusine de meio milhão de dólares desfilar em sua frente. Ele. Michael Jackson. Ela escutou Spencer a chamar em berros.

- Meu Deus, Allie, onde esteve? – Arfava, com as mãos sobre os joelhos tentando recuperar o fôlego.

- Aqui. Eu disse que ia embora.

- Não posso deixá-la ir só.

- Não sou nenhuma criança.

- Fique,por favor. Será breve e, além de tudo, o cara é o maior astro! Se tivermos mais um pouco de sorte – Spencer era otimista -, conseguiremos um autógrafo!

Ela pensou e hesitou. Terminou cedendo à Spencer encaixando seu braço ao dele. Um sorriso, débil, preencheu-lhe os lábios.
Spencer a agarrou beijando-a na testa com vigor, exultante.

- Eu te amo, Allie!

- Deus, pare! – Michael havia gritado para o motorista, eufórico, após pensar ter visto ela. Allie. Com o mesmo brilho nos olhos, os cabelos escapando da touca, e as maçãs rosas pelo frio, feito a primeira vez. Ainda possuía a completa beleza sulina em seus traços, agora, de mulher.

O automóvel se esforçava para criar caminho entre a multidão. A conferência havia encerrado.

- Michael, não podemos parar agora. É arriscado! – Avisou sua assistente ao seu lado. Michael bateu na janelinha que dava acesso ao motorista.

- Pare! – O automóvel continua em movimento. – Dá pra parar essa droga de limusine?! – Berrou, histérico, violento.

Houve um súbito silêncio.

- Allie, veja, a limusine parou! Eu disse que iríamos conseguir um autógrafo e... – Spencer a viu sumir na multidão. Seguiu-a.

Michael abriu a janela e em frações de segundos milhares de mãos invadiram para o agarrar. Ele procurou olhar
para fora novamente e ela não estava mais. Só podia estar louco. Louco.

A limusine continuou a andar quando os vidros subiram. Michael espalmou as mãos no rosto, suspirando, exausto. Deixou-se afundar no banco estofado.

- Você está cansado. Péssimo. Vamos direto para o hotel. Cancelarei seu encontro com...

- Não! Se ainda tenho alguém na agenda é porquê ainda tenho um compromisso.

- Allie!- Spencer vinha. – Allie, o que deu em você? Nós estávamos prestes a conseguir um...

Ela estava sentada na calçada, encolhida, longe daquele alvoroço. Ergueu o rosto a Spencer revelando olhos avermelhados. Ele sentou-se junto à ela, e num silêncio, apenas a trouxe a seus braços. Era o que tinha de fazer. Allie descobrira que ainda teria de aprender a viver com as suas lembranças.

Meses depois, Allie entrou numa grande empresa, onde conhecera Henrique Bennett.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.