O refeitório.

Nada mais assustador durante a escola ou colegial. Porém, tive a sorte de não ter frequentado uma escola, e automaticamente pulado essa fase de exclusão social e panelinhas. Mas na Liga, eu me sentia em uma espécie de colegial para heróis mais velhos. Todos tinham seu grupinho. Normalmente eles se formavam ou pelos poderes, ou pela época em que cada um chegou. Pois assim que chegavam, todos eram considerados novatos e treinavam juntos até serem escolhidos pelos seus mentores. Bem, todos exceto eu.

Depois de passar pelo bufê e pegar minha refeição, que consistia em uma salada de algas e água mineral, fiquei parada em meu lugar. Quando cheguei pela primeira vez aqui, fiz amizade com Dançarina e Smooth Hands automaticamente, depois conheci os outros. Porém dessa vez tudo estava diferente. Não poderia me sentar com os novatos, porque não conhecia nenhum deles por ser treinada de maneira diferente, e não poderia sentar com meus antigos amigos, pois oficialmente só conhecia Juniper. E ela não era do tipo que era simpática e animada com alguém que acabara de conhecer.

Depois de dar mais uma olhada no refeitório vi uma mesa que estava desocupada. Fui caminhando até ela com a bandeja em minhas mãos, podia sentir que alguns me olhavam. E quando a Passarinha entrou no refeitório e me lançou um olhar de ódio sentando em sua mesa, percebi o que deveria ter acontecido. A história sobre o “banho” que dei nela por causa de Batman deveria ter se espalhado.

Senti minhas bochechas corarem. Apesar de não me arrepender, não gostava daqueles olhares acusadores. Para eles eu só deveria ser a louca que tentou matar uma heroína que já vencera várias batalhas.

Sentei-me à mesa com certo desespero, e me inclinei deixando meus cabelos cobrirem parte do meu rosto. Não sabia ao certo como as garotas nerds se sentiam ao serem excluídas no ensino médio e terem de comer sozinhas, mas acho que era mais ou menos como eu me sentia agora.

–Tudo bem? – ouvi uma voz feminina ao meu lado.

Ou não tão sozinha assim. Levantei minha cabeça devagar e vi uma garota bonita, com cabelos castanhos longos e cacheados, e olhos verdes grandes e gentis.

–Sim. Está. –disse mais calma- Obriga por se preocupar.

–Não há de quê. –ela deu de ombros sorrindo e me estendeu a mão – Pode me chamar de Samantha ou Musa.

Cumprimentei-a:

–Sereia.

–Nossa, nem se achando no nome, hein? –ela falou com um tom cômico meio irônico.

–E você nem me diga né? Ó inspiração para as belas artes! – devolvi no mesmo tom e rimos.

É, não tinha maneira melhor para se começar uma amizade. Conversamos sobre nossas vidas dentro e fora da Liga, ela me falara de como fora maltratada pela madrasta depois que esta descobriu que o pai a traía, e eu lhe falei sobre minha casa na floresta. Ela ficou encantada sobre a vida reclusa que levava antes de conseguir meus poderes.

–E quem é seu instrutor? –ela perguntou comendo seu sorvete de chocolate.

–Bem...Hoje foi o Batman.

–Como assim hoje? –ela perguntou sem entender.

–Eu tenho...ou tinha... três mentores, e hoje tive meu primeiro...treinamento, podemos dizer.

–Como assim podemos dizer?

Suspirei me lembrando da “avaliação” de mais cedo.

Flashback on

Cheguei à sala de treinamento sem dificuldade. Arfei ao rever o local por dentro, estava do jeito dele, do jeito que era antes daquilo tudo acontecer.

–Como mostrou habilidade ao passar pelo sistema de segurança da liga, a sua tarefa é fácil. –Ele disse a minha frente- Você terá de mostrar se realmente sabe o que fez, então decidiremos se irá continuar a ter aulas comigo.

Pela primeira vez na minha vida resolvi pensar antes de agir, então invés de perguntar por que poderia não ter mais aulas com ele, apenas o segui para uma pequenina sala com várias telas e um grande teclado no centro. Assemelhava-se com o modelo que deveria existir na batcaverna, pensei sorrindo.

Sentei-me na cadeira em frente e logo uma voz começou a falar:

–Então finalmente tenho o prazer de te conhecer Sereia, devo dizer que não é qualquer um que burla o sistema da Liga. –reconheci a voz como sendo da Oráculo, minha antiga amiga Barbara Gordon- Então desenvolvi algumas pequenas simulações. Seu objetivo é simples, de acordo com o problema apresentado, deverá burlar o sistema de segurança sem que seja detectada e cumprir sua missão.

–Entendi. –falei já animada.

–Se precisar de ajuda, pode me chamar de Oráculo. –ela disse e então comecei a trabalhar.

A primeira simulação foi fácil, eu apenas deveria entrar no sistema de Internet usado pela Interpol e conseguir alguns dados. No segundo tive de conseguir entrar na linha que era usada pelos comunicadores da Liga e ativar o sistema de localização deles. Porém, a partir desse ponto diferentes desafios foram sendo apresentados, e os níveis de dificuldade aumentando até um nível em que comecei a demorar mais tempo, pensando, para acabar não errando e ser “descoberta”.

Depois do que pareceram ser horas, a tela se desligou, e junto dela as luzes da sala e da “arena” de treinamento.

–Oráculo? – a chamei pela primeira vez, mas não tive resposta.

Levantei-me com cuidado. Era raro, mas alguém poderia ter se infiltrado na Liga. Fui caminhando devagar até a arena, e então ouvi um bipe. A tela do computador ainda estava negra, mas um comando ainda era exibido nela:

LUTE!

–Lutar? Mas com quem? – perguntei, mas ninguém me respondeu.

Voltei a me sentar na cadeira em frente ao computador, talvez ainda existisse mais um desafio. Mudei a tela, de preto para branco, para enxergar melhor, mas então ouvi um barulho de vidro quebrando e uma das telas parou de funcionar. Estiquei minha mão até ela e descobri que na verdade só restavam cacos de vidro, e no meio deles, um morcego de metal.

Virei-me para identificar de onde o objeto viera, mas logo ouvi o barulho de vidro sendo quebrado mais algumas vezes, e tudo ficou novamente escuro.

Então o último desafio seria real? Mas pensei que eu aprenderia tecnologia com o Batman e com Oráculo. No entanto, não tive tempo de me distrair com outros pensamentos, pois logo outro morcego foi atirado, e esse acertou meu braço deixando uma fina linha de sangue.

Por um momento fiquei sem movimento. Ele estava me testando, não só minhas habilidades tecnológicas, mas as de luta também. E apesar de nesse universo ser totalmente sem sentido meu sentimento, isso não mudava a minha mágoa. Mesmo sabendo que todos os momentos que passamos juntos nunca existiram aqui e eu que era apenas mais uma possível ameaça para ele, eu não conseguia deixar de me lembrar do bom, gentil e amoroso Bruce Wayne que conhecia.

–Eu não irei lutar com você! –gritei para as sombras.

Ele jogou mais batarangues em minha direção, mas apenas me desviei, indo para onde achava ser a saída da sala e a entrada da arena. Não importava o que ele dissesse eu não iria lutar contra ele, nunca. Mesmo que ele um dia me odiasse e tentasse me matar, nunca o machucaria, nunca iria descumprir minha promessa. Que mesmo que tivesse sido feita em um futuro de um universo alternativo, ainda valia para mim. Quando o acertei com o chicote na floresta de gelo... Ainda sentia a culpa por isso me corroer.

Prometera sempre estar ao seu lado, não importando o que acontecesse. Prometera nunca lutar contra ele ou machuca-lo de qualquer forma, e assim faria. Pois apesar de ele não se lembrar de mim, eu ainda me lembrava do homem por trás da máscara. E mesmo não desejando, ainda o amava.

–Eu já disse que não irei lutar contra você, então pode me deixar sair, pelo menos? –falei frustrada. Aquela confusão de sentimentos e lembranças iria continuar me perturbando se ficasse perto dele daquele jeito.

–Não. – ouvi uma voz rouca e logo senti uma imensa dor no abdômen.

Coloquei as mãos aonde ele tinha me socado e olhando para frente, onde agora o conseguia enxergar vagamente, e repeti com os dentes trincados:

–Já disse! Eu NÃO vou lutar contra você!

Ele veio até mim correndo, e me jogou na parede fria de metal:

–POR QUÊ? –ele gritou irritado.

–Pois há muito tempo fiz uma promessa, e não irei descumpri-la. –disse sem me abalar pelo seu surto de raiva. Ele deveria estar mais do que desconfiado, ele estava realmente irritado e nervoso, não saber nada sobre mim, ou sobre o motivo de estar aqui deveria o estar torturando.

–O que você quer aqui? – ele perguntou ainda me encarando, como se tentasse ler a minha mente.

–Aprender, como todos os outros novatos. –respondi inocente.

–Mas você não é como todos os outros, não é? –ele falou com escárnio- Não. Você não esta aqui por isso, você já sabe bastante e mesmo que diga o contrário suas habilidades a desmentem.

Amaldiçoei-me. Eu realmente tinha de parar de mostrar a todos o quanto conhecia cada um e a Liga em si. Deveria parar de ser tão descuidada e começar a ser mais esperta, senão eles acabariam por me afastar e não conseguiria cumprir minha missão.

–Eu apenas sou boa com computadores, isso não é nenhum crime, ou é?

Ele ficou me encarando com suas lentes tecnológicas negras, semicerrando os olhos para mostrar sua desconfiança. Então, se virando e abrindo sua capa negra, se tornou novamente parte da escuridão.

–Considere-se dispensada de meus treinamentos. Pelo que parece sua “habilidade com computadores” –ele falou irônico- são boas o bastante para lhe deixar por conta própria.

E dizendo isso as luzes se acenderam, e ao olhar para os lados, percebi que ele já tinha ido.

–Se pelo menos você soubesse... -suspirei me levantando e decidindo ir comer alguma coisa, logo, logo teria mais algum treinamento e não queria lutar com a barriga vazia.

Flashback off

–Bem...-respondi para Musa depois de um tempo refletindo- Eu sou boa com computadores e sistemas, e ele concluiu que não precisaria de aulas.

–Sei. –ela disse com um tom irônico que dizia que sabia que estava escondendo alguma coisa.

–E quem é seu mentor? –perguntei querendo mudar de assunto.

–Ah! –ela corou- é o Superman.

–Nossa! E como você o conheceu? –perguntei, apesar de já saber.

Ela ficou brincando com seu sorvete, tentando não me olhar nos olhos:

–Eu estava correndo de uns caras na rua. Eles começaram a me perseguir logo depois de eu sair da casa de uma amiga, e mesmo pulando para tentar voar eu não conseguia. Uma hora, acabei num beco sem saída, então peguei meu spray de pimenta e falei para eles irem embora porque tinha um amigo que poderia acabar com eles. –ela riu para si mesma- Tinha inventado isso para tentar assusta-los, e quando vi que eles ficaram nervosos e começaram a correr pensei que fosse com medo do que dissera. –ela colocou um pedaço do sorvete na boca, ainda sorrindo- Fiquei toda orgulhosa de mim, mas quando me virei, adivinhe minha surpresa, ao ver o Superman voando baixinho ao meu lado.

Comecei a rir e ela me acompanhou realmente aquela era uma situação inusitada.

–“Muitas vezes mentiras podem-nos pôr em perigo.” Ele disse sério, mas então sorriu. “Mas que bom que você não mentiu ao dizer que tinha um amigo que acabaria com eles se fizessem alguma coisa com você.”

–Bem do feitio dele. –comentei.

Ela riu sem graça e voltou a brincar com o sorvete:

–Agradeci e comentei que eu estava tentando fugir voando, mas não tinha conseguido na hora. Ele achou interessante e pediu para eu ir ao departamento de policia central e conversar com um dos emissários da Liga. Fui até lá no dia seguinte, e então o homem me explicou sobre Brainiac e tudo mais e disse que se quisesse poderia treinar na Liga, para ajuda-los e quem sabe um dia eu teria uma estátua minha junto da dos outros heróis.

Essa última frase me pegou, e me lembrei das estátuas dela e de todos os outros ainda sendo erguidas na Praça Central, pelos seus feitos honrosos e pelo sacrifício que fizeram.

–Sereia, está tudo bem? –Musa segurou meu braço e me encarou preocupada.

–Sim. – disse terminando de tomar minha água.

–Que susto, fiquei preocupada.

–Está tudo bem, sério. –disse.

–E me diga, você está em qual quarto?

–Boa pergunta. Esqueci de pegar o cronograma e a senha.

–Então eu vou pegar com você! Tenho de ir até a Central de qualquer jeito para ver se fui escalada para alguma coisa. –ela disse se levantando e levando a bandeja até uma janelinha na cozinha.

–Escalada? –perguntei a acompanhando depois de fazer o mesmo que ela- Como assim?

–Depois que você atinge certo nível de treinamento, pode ser escalada para turnos ou missões. Algumas vezes você ajuda outros heróis a investigar algum crime que pareça não ter sido feito pelas pessoas comuns, outras apenas fica num departamento de polícia ajudando no caso que aparecer.

–Ah! –falei. Quando vim para cá, não existiam essas coisas de turnos ou missões. Todos eram apenas treinados e eram mandados para patrulhar cada área que escolhesse. E depois de Superman ficar...Não. Chega de me lembrar do que já tinha vivido. Tinha de recomeçar, e lembrar essas coisas não ajudaria em nada.

Caminhamos sem pressa até chegarmos à área de informações e designações de missões para heróis. Ela ficava na parte central do satélite da Liga, e contava com no mínimo duzentos computadores para atenderem diversos heróis ao mesmo tempo.

Ela clicou sobre a tela de um deles perto da porta e eu fiz o mesmo em um na fileira seguinte, já que todos estavam os outros estavam ocupados.

Nome?

Digitei Sereia, e então um quadro de opções mostrou as informações disponíveis para consulta.

–Quer uma bolacha? – ouvi alguém me oferecer ao meu lado.

–Não, obrigada. –respondi fuçando todas as minhas opções. Segundo a tela, eu ficaria no quarto 512 na área feminina para heróis medianos, e que estava sendo analisada para uma missão.

Nossa, eles realmente tinham me avaliado bem!

Ou apenas querem me matar.

Acho que vou ficar com a primeira opção.

–Que foi? Sereias não comem coisas industrializada e só frutos do mar? – ouvi a mesma voz me perguntar.

–Para seu governo, frutos do mar na verdade não são frutos e sim animais que são cruelmente capturados para depois servirem de alimentos para heróis idiotas fortões como você. –respondi me virando.

–Nossa, não precisa ficar estressadinha, só tava brincando. – um cara de mais ou menos dezenove anos e com um uniforme cinza feito de klevar que só deixava sua boca e seu queixo aparecerem respondei.

Fechei a tela, com as informações que precisava já na memória e fui atrás dele.

–Hey, desculpe-me! –falei tentando acompanha-lo, mas ele andava muito rápido.

–Por favor, eu só queria me...-o lugar ficou escuro e todos os barulhos cessaram- desculpar...

Eu não estava mais na torre da Liga. Disso eu tinha certeza, mas então aonde estava?

–Olá? - chamei, mas ninguém me respondeu- Olá?

Vazio. Essa palavra me veio a mente. Assim como existia o Infinito, existia o Vazio, e eu deveria estar nele. Mas por que alguém me traria aqui? Porque eu não tinha vindo por conta própria. Ou tinha?

–Catrina...-ouvi uma voz suplicante.

Caminhei em sua direção, e para meu horror, percebi de quem era aquela voz.

–Não!- gritei me afastando- Isso não pode estar acontecendo denovo!

Mas não adiantava. Como em um sonho, quanto mais eu corria para me distanciar, mais perto eu chegava dele. Até que me rendi ao desespero e ajoelhada ao seu lado, me agarrei em sua capa vermelha.

–Meu amor, meus amores, eu falhei...me perdoem...-solucei.

Então como em um cinema, uma tela gigante a minha frente surgiu, e nela foram exibidas desde a morte dela, até o início de tudo aquilo. Mas entre aquelas imagens, uma desconexa apareceu. A imagem de Lex Luthor se tornando presidente e abrindo um departamento de pesquisas.

–Você tem de impedir isso. –ouvi uma voz ecoar na escuridão e então a tela sumiu.

–Quem é você? – perguntei achando a voz familiar.

–Qual seria a pergunta mais certa.

–Qual? Qual do quê? –perguntei sem entender.

–Não importa. Tenho pouco tempo, e pelo que Ellerya disse você é a única que poderá nos salvar da destruição.

–Ellerya?

–Sim, a Vidente. -ela disse como se eu devesse saber- Mas ela mandou-me lhe dizer que você tem de iniciar como antes, para poder mudar o depois.

–Co-como antes?

–Sim, situações diferentes com finais iguais não adiantará em nada. Comece do mesmo jeito, com os mesmos aliados e inimigos, mas procure realmente conhecer quem é quem, pois senão estaremos destruídos, e dessa vez para sempre. –ela disse com uma voz rápida, como se estivesse tentando falar ao telefone antes que outra pessoa o pegasse de sua mão.

–M-mas como posso confiar em você se nem te conheço?

–Você me conhece, pelo menos a outra.

–Isso não faz sentido. –resmunguei.

–Pode me chamar de Yu...

E então um clarão surgiu e me senti perdendo a consciência mais uma vez.

***

Quando acordei percebi que não estava em uma cama de hospital. Estava deitada em uma cama com comum, com lençóis brancos com bolinhas vermelhas, amarelas e pretas. Que divertido, até o acaso estava zuando minha indecisão, mas quer saber, eu não tinha de ficar aqui deitada pensando em morcegos e pássaros. Eu tinha um mundo para salvar, afinal.

Apoiei meus braços na cama e tentei me levantar, mas uma dor forte no meu abdômen me fez deitar novamente.

–Por que você tem de bater tão forte, hein Bruce? –resmunguei para mim mesma, me lembrando do soco que levara mais cedo.

–Então parece que você realmente conhece o nome dele. – ouvi uma voz conhecida e então saindo das sombras um homem vestido de azul e vermelho apareceu na minha frente.

–Superman. –suspirei sorrindo, pois ao olhar seus olhos não vira o vermelho louco que fui obrigada a me acostumar, e sim o doce azul que me fazia ter esperança nas horas mais sombrias. Isso queria dizer que eu tinha tempo, que ainda existia um motivo pelo qual lutar, que eu ainda tinha uma chance.