Satanás gosta de cães.

Meus cães, minha família.


– Pega a bolinha, Ruby! Isso, traz ela de volta para mim! Boa garota!

Assim gritava a doce Ella à sua cadelinha. Ruby era uma dálmata de meia idade que não sossegava sem uma bolinha de borracha para brincar. É claro que todos os seus brinquedinhos e ossos roídos eram divididos com Rusty, um dálmata mais novo, mais hiperativo e mais espivetado.

– Sai daí, Rusty. Você sabe muito bem que é a vez dela de brincar com a bolinha.

Rusty olhou para um montinho de terra próximo às raízes de uma árvore e andou lentamente em sua direção, até Ella intervir em seus planos novamente.

– Não, não e não! Eu já falei para você que não é legal desenterrar os ossos da Ruby quando ela estiver brincando.

O cachorrinho tentou convencer Ella com um olhar triste e profundo, mas a garota não se deixava enganar. Ela conhecia todos os truques de Rusty.

– E não me olha assim, ouviu? Não me interessa se você já acabou com todos os seus ossos! Da próxima vez pense muito bem antes de roer quatro ossos em um dia só. Vai descansar, daqui a pouquinho eu brinco com você.

Ella era assim. Conversava com os seus cachorros como se fossem humanos e os tratava como filhos. Era uma garotinha extremamente gentil, e não ousava levantar a voz quando ouvia desaforos de alguém. Ela era dócil com todo tipo de criatura que encontrava, principalmente os animais.

Ruby e Rusty eram membros da família muito antes de Ella nascer, e sempre foram seus principais companheiros de aventuras. A garota tinha uma verdadeira loucura por aqueles dálmatas.

– Ella, pode vir aqui um minutinho, por favor? - perguntou sua mãe abrindo a porta dos fundos do casebre.

– Claro, mamãe. Rusty, Ruby, não façam bagunça no quintal! Eu já volto!

Evie ainda não estava preparada para contar à sua filha o que a triste realidade, sobre a qual ela fora atualizada havia cerca de um mês, guardava para a família Feinberg.

Era nítida a tristeza no rosto de Evie quando ela olhou para sua filhinha tão inocente e conduziu-a até o seu quarto. A moça fechou a porta e tentou arranjar a coragem necessária para dizer tudo o que precisava da melhor forma que pôde.

– Olha, filha... O que eu tenho para te contar não é nada fácil. Você precisa prometer para a mamãe que será forte e que não reagirá mal ao que eu vou dizer. Tudo bem?

Ella estranhou aquele jeito sério de sua mãe. Evie nunca falava dessa forma.

– O que houve, mamãe? - perguntou preocupada - Alguém faleceu?

– Não. Quero dizer... ainda não. Querida, você já sabe que a mamãe não tem passado bem nesses últimos tempos. A família inteira pensava que era apenas uma fase ou um mal-estar que ia e vinha. Antes fosse... há um mês eu fui à uma consulta com o Dr. Herbert para saber melhor sobre o meu estado. Eu esperava permanecer tranquila com a resposta dele, mas eu fui surpreendida. Ele constatou que o que eu tenho é muito pior que um mal-estar passageiro.

Ella olhou aflita para a mãe com medo das próximas palavras que sairiam de sua boca. Já imaginava o que poderia ser, e seus pensamentos a assustavam ainda mais.

Com muito peso no coração e lágrimas quase escorrendo, Evie falou. E mesmo já imaginando do que se tratava, Ella ficou pasma.

– Meu amor... O Dr. Herbert me disse que eu só vou ter mais seis meses de vida.

Ella não pôde segurar suas lágrimas. Aquilo para ela era como se o fim do mundo tivesse sido confirmado. O que faria sem a sua mãe? O que faria sem a mulher que a ensinou a viver, que a orientou desde os primeiros passos, as primeiras palavras, os primeiros momentos felizes de sua vida. Como seria dali para frente viver sem poder encostar a cabeça no peito de alguém confiável para chorar, sem poder compartilhar seus segredos, suas descobertas, seus medos... Toda essa felicidade e paixão estavam prestes a acabar. E dentro de seis meses.

Era tudo muito repentino e desesperador para a cabeça de Ella. A garota realmente não acreditava no que havia acabado de escutar. Ela pensou em várias perguntas para fazer à sua mãe, mas estava tão chocada que conseguiu apenas murmurar um:

– Mamãe, você vai morrer?

Os olhinhos cheios d’água da menina foram como uma facada no coração de Evie. Tudo o que ela menos queria era que a sua filha sofresse nas mãos do mundo acreditando que a vida na Terra é desprezível sem a presença de uma mãe. Ela abraçou a filha com força, acariciou os cabelos louros da menina e começou a chorar horrores.

– Minha filha... Por favor, me prometa que nunca vai deixar que a solidão tome conta de você. Você não merece isso, Ella. E eu sei que você será forte o bastante para impedir que o seu coraçãozinho fique vazio. Acredite em mim, eu não estarei aqui para ver, mas sei que você ainda vai vencer muito nessa vida. A chance de ser feliz está nas nossas mãos, e em hipótese alguma devemos jogar a felicidade para o ar achando que a tristeza confortará melhor o nosso coração. Você promete que será feliz, minha filha amada? Independente de qualquer coisa que a tente enfraquecer?

– Vai ser muito ruim tentar ser feliz longe de você, mamãe.

– Não diga isso, minha flor.

A duas passaram o dia abraçadas e as lágrimas escorreram como se fossem cachoeiras. Cachoeiras que desaguavam em um mar de tristeza.

Depois desse dia horrível, a vida de Ella havia perdido a cor, o brilho, a razão... Os dias passavam e eram cada vez mais tristes e vazios. Quase todos os dias a menina ia até o quintal e abraçava seus dois cães com força e o coração cheio de angústia.

– Pelo menos eu sei que vocês cuidarão bem do meu coração ferido. Eu amo vocês.

Ruby e Rusty também sentiam a dor de Ella. Eles a amavam tanto quanto ela. Eu sei que pode parecer um tanto engraçado saber que dois cães passariam a cuidar de uma garota de onze anos de idade, mas, afinal, é o que os dois sempre fizeram desde que Ella nasceu. O pai de Ella desapareceu em uma viagem a trabalho um ano depois do nascimento de sua filha, e foi dado como morto. Na ausência de seu pai, e de sua mãe quando não podia fazer-lhe companhia, Ella sempre esteve na companhia de Ruby e Rusty. Mas o que faria agora? Evie não tinha nenhum parente próximo vivo que pudesse ficar com a guarda de Ella. Será que seu destino era viver como mendiga nas ruas de Londres acompanhada de dois dálmatas? Porque se Ella fosse parar em algum orfanato, fugiria na mesma semana. Não suportaria ficar longe de Rusty e Ruby por tempo indeterminado.

Mas Londres era uma cidade grande demais para uma garota como Ella viver sozinha. Não era a melhor opção... Ella não conseguia pensar em nada eu não fosse o triste fim de sua mãe.

Três meses se passaram e a tristeza ainda morava naquela casa, mas a esperança foi restaurada quando Evie chegou com uma notícia que poderia reanimar Ella.

– Querida, o Dr. Herbert me deu uma ótima notícia ao telefone esta manhã! Ele me disse que se eu for até daqui a dois dias ao hospital onde ele trabalha, ele conseguirá agendar uma cirurgia que pode fazer com que eu fique viva por mais tempo!

– Cirurgia? Não, mamãe! Você vai se arriscar muito!

–Arriscar? Tudo bem, não vou negar, é um pouco arriscado, mas é ótimo! Não vê? Podemos ficar juntas por mais de três meses.

– Mas mamãe, e se os médicos não forem tão bons assim como a gente pensa? Eu já ouvi falar sobre muitas pessoas que morreram durante cirurgias, e são pessoas aqui mesmo de Londres. Não quero arriscar ficar sem você antes do esperado. Já dói muito saber que logo você vai partir...

Evie entendia a preocupação da filha, mas não queria fazer isso sem motivo. Sua intenção era continuar viva junto com Ella por quanto tempo conseguisse.

– Pensa bem, minha querida. Eu sei que é um risco que corremos... mas já imaginou que bom vai ser se a cirurgia correr bem? Vamos aproveitar cada momento que nos resta. Eu não estou em condições de escolher entre a vida e a morte agora... então quanto mais chances eu puder aproveitar para continuar do seu lado, mais feliz eu estarei. Ou melhor, nós duas estaremos.

Ella sentia tanto medo de perder a mãe cedo assim... Mas tinha que concordar, pelo menos em parte, que Evie estava com a razão. Tinha que aproveitar ao máximo as chances de vida, pois já era certo que iria morrer cedo. Mas a garota ainda não estava totalmente convencida dessa história de cirurgia.

– Filha, eu quero lutar pelo tempo que ainda temos.

– Tudo bem, mamãe! – ela respondeu – Faça a cirurgia... mas só com médicos de confiança! Nada de deixar qualquer médico mexer em você.

– Não se preocupe quanto a isso, meu amor. Tudo vai dar certo. Eu tenho absoluta certeza disso.

No dia seguinte, Evie saiu para agendar a cirurgia com o Dr. Herbet. Ela conseguiu marcar para o próximo dia, assim poderia descansar e se preparar psicologicamente para algo que podia ajudá-la ou arruiná-la.

Quando chegou a hora de ir ao hospital, o nervosismo tomou conta das duas. Evie não poderia negar que estava com medo dessa cirurgia, afinal, ela não sabia o que aconteceria depois.

Já Ella, estava quase aos prantos, com um medo que poderia fazer com que ela morresse antes mesmo que sua mãe.

– Está tudo bem, viu, minha querida? – disse Evie tentando tranquilizar a garota, apesar de também estar cabreira – Eu tenho certeza de que quando a cirurgia acabar eu estarei super bem nós não vamos precisar mais nos preocupar por um tempo.

– Eu sei, mamãe. Eu também acredito nisso!

As duas foram a pé até o hospital. Ella levava Ruby e Rusty na coleira e Evie os acompanhava.

O dia estava ensolarado e perfeito para uma caminhada. Tudo corria bem... Elas só não imaginavam que Evie não chegaria a fazer cirurgia alguma.

Quando atravessavam a rua, um homem bêbado vinha dirigindo descontrolado na contramão. Ella se assustou e puxou os cães na coleira para a calçada com a maior força que conseguiu. Mas com Evie foi bem diferente.

Evie estava distraída demais pensando na cirurgia que estava prestes a fazer, e não se deu conta do carro descontrolado que vinha em sua direção. Quando ela percebeu o carro se aproximando com toda a velocidade, foi tarde demais. Não havia mais o que fazer para salvá-la.

O acidente foi fatal, e acabou com todas as chances de Evie de conseguir uma vida mais longa ao lado da sua filha.

Todos na rua se juntaram em volta de Evie e do carro que a atropelou para tentar descobrir o que havia acontecido com ela ao certo. Muitas pessoas chamaram pela ambulância, pela polícia, e por todos os tipos de ajuda que conseguiram, mas nada adiantou. Realmente, era tarde demais para alguma tentativa de sobrevivência.

Ella estava sem chão. Ela sabia que além de nem ter tido a oportunidade de tentar lutar pela vida, a sua mãe estava ali. Toda ensanguetada no meio da rua sem poder se mexer, falar ou tentar procurar pela própria filha. Não foi possível ver e nem ouvir a respiração de Evie nenhum segundo após o acidente.

Aquilo para Ella era o fim. Quando a garota estava começando a ficar mais esperançosa torcendo para que a mãe sobrevivesse à cirurgia, as chances de fazer qualquer cirurgia acabaram ali mesmo, em cima do asfalto, em poucos segundos.

Ella não conseguiu chegar perto do corpo da sua própria mãe por conta da multidão. Só lhe restou sentar no chão da calçada e chorar como um bebê em pleno nascimento. A menina inconsolada olhou para Ruby e Rusty com o rosto todo vermelho e molhado e, mesmo sabendo que os dois não entenderiam, disse:

– Vocês são a minha família.

Ela os abraçou e rezou para que toda aquela tortura emocional acabasse logo.

Aquele com certeza foi um dos piores momentos na vida de Ella. A garota havia acabado de presenciar uma das piores tragédias que podem existir. Ela viu sua própria mãe morrer na desgraça diante dos seus próprios olhos.