Sangue de Arthur III

6- Capítulo, Abate


Arthuria, Alter

As pétalas não podiam alcançá-la por debaixo de toda aquela mana. As armas não podiam atingi-la. As criaturas que se punham no seu caminho não podiam pará-la.

O Merlim foi atirado para longe com um balançar da espada, a garota japonesa com a katana foi dividida ao meio e os dois de cabelos verdes foram varridos para longe por uma rajada preguiçosa de mana.

Arthuria se sentia invencível, imparável, furiosa. Tinha sido pisada por aquela fedelha e sua pífia determinação, tinha por um momento perdido sua família. Em troca disso o graal a dera ainda mais poder. E raiva e ódio.

A garota ruiva abriu a boca e ergueu as pálpebras em terror. Ela podia ver, Arthuria sabia, as batalhas, o sangue, os corpos que comporam a jornada do rei Arthur até a paz na Bretanha.

E então Bedivere atacou o antigo rei Arthur. A lâmina acertou a armadura negra de mana que cobria-lhe a cabeça e partiu-se. Arthuria ergueu a espada. Mas ele não recuou, manteve-se entre ela e sua nova mestra. Estava pronto para ir até o fim como a garota japonesa com a katana. Seus olhos mantinham-se desafiadores e determinadamente fixos nas íris submersas em lodo do graal da cavaleira negra.

Ele não mudou. Continuava sendo leal para além do bom senso, percebeu enquanto a pesada arma descia carregada de mana, e sentiu-se terrivelmente triste. Bedivere havia sido seu escudeiro e um membro dos cavaleiros da távola redonda que a serviram por tanto tempo.

Quando rira ele estivera lá, quando lutara suas batalhas Bedivere esteve ao seu lado, quando caíra de cama o escudeiro a fizera companhia. Eram amigos, companheiros, mais do que rei e vassalo. Trocavam presentes nos aniversários e o acompanhava em jogos. Dividiram histórias, risadas e montarias.

Agora voavam um no pescoço do outro como cães brigando por um osso. Aquilo era terrivelmente triste.

As lágrimas escorreram por seu rosto enquanto a lâmina destroçava até o pó a carne sob a armadura prateada. Quando acabou, a cavaleira negra ergueu os olhos até a ruiva mestra. Ela continuava ali, com a mesma expressão. Não fugira, não se movera, não chorara.

Por que não chorava? Ele havia acabado de se sacrificar por aquela garota, uma menina qualquer, sem coroa, sem força e sem determinação. E nem lágrimas recebeu em troca. Quão vil, quão desrespeitoso! Aqueles olhos, aquelas íris, iria arrancá-los. A faria chorar em carmim pelas ofensas que continuava disparando.

Bedivere, quão ruim tornou-se sua visão para servir tão bravamente alguém assim! E mesmo o Merlim…! Não posso perdoar essa criatura desprezível! Não irei deixá-la respirar nem mais um minuto!

Outra batalha se desenrolava a quilômetros dali, podia sentir. Dois servos e mais alguns milhares de fracos peões. Iria até eles depois que acabasse ali.

Deu uma passada longa, a terra cedeu com a força de sua pisada, e se pôs diante da garota ruiva. Ela virou-se, pronta para correr. Mas antes que desse o primeiro passo a cavaleira bloqueou sua rota de fuga pondo-se a frente dela.

A mestra de sete servos encolheu-se e enrijeceu os músculos. Havia suor escorrendo de seu corpo magro. Mas não tremia e seu semblante tomara uma postura diferente. Um esgar de alguém pronto para receber um golpe. Ao menos dessa atitude Arthuria não podia se ressentir.

Não uma completa covarde essa uma.

Pôs a lâmina horizontalmente na altura da cintura e a balançou. O golpe dividiria a pirralha ao meio. Um balanço completo, pondo todo o peso do corpo e tensão muscular nele além de uma gigantesca quantidade de mana. O corpo da ruiva seria estraçalhado.

Mas foi parada antes de avançar meio centímetro. As malditas correntes a prenderam, duas delas. A do rapaz de longas roupas brancas e do pequeno Gilgamesh. Uma veia surgiu na têmpora da cavaleira. Estava cansada daqueles servos, estava cansada daquela mestra e já sentia-se mais que irritada com as malditas amarras que a prendiam pela segunda vez naquela longa noite.

Gritou e a armadura de lodo do graal inflou. Crescendo como uma massa super fermentada.

A garota já estava longe dali, carregada pelo atirador de pedras. Mas as correntes começavam a serem rompidas, lascadas cada segundo mais. Não poderiam contê-la por muito mais tempo. Ela se libertaria e as trevas de sua espada sagrada engoliriam a luz num abate sanguinário de seus inimigos.

Por minha filha, por Bedivere e por Shirou, irei matar todos eles!

O Merlim caiu sobre ela, a espada rasgando superficialmente a espessa armadura que a cobria. Mas ele continuou desferindo golpes. O pequeno rei dos heróis também a alvejava lançando toneladas de tesouros que fincavam-se no lodo.

Inútil, inútil! Todo esse esforço é inútil!

E as correntes romperam soltando-a para o campo de batalha. Decepou o braço do Merlim num movimento rápido e em outro arrancou-lhe a cabeça, o frenesi raivoso a impedindo até de sentir-se triste por matar seu próprio tutor. Voltou-se para o de cabelos verdes longos e este aguentou-lhe os golpes. Era capaz de acompanhar a velocidade dela e até mesmo contra-atacar. Forte, pensou alguma parte dela que ainda mantinha-se longe da fúria. Mas também perdeu.

Uma estocada atravessou-lhe o peito e em seguida a cavaleira o arremessou ao fundo do rio.

Só mais dois, pensou quando parou por um instante. Só mais doise então terei a cabeça daquela maldita ruiva. O lodo se agitou ao redor dela e os músculos dilataram. O abate não havia terminado. Muito mais sangue ainda seria derramado naquela noite.

Rose, Moron

Reconheceu-o assim que suas íris caíram sobre a pele cristalina do personagem. Sentiu duas vezes mais frio nesse momento. Ele não tinha um nome nos livros, mas fora alcunhado na série televisiva. E olhando-o agora parecia ser um bom nome.

Sua postura, sua face dura e gélida, seus olhos claros, eram algo que se esperaria de alguém da realeza. Do maior entre eles. E o frio quase cegante que cobria-lhe como um manto, certamente é o que se espera de alguém considerado o monarca da noite.

Se aproximou dele devagar. Por mais monstruoso que fosse com o corpo que parecia feito de gelo e o semblante duro, ainda era seu servo. Tinha invocado-o e possuia os selos de comando como prova. Podia não ser um dos seus personagens favoritos, nem mesmo um dos com qualquer histórico de bondade, mas não deveria temê-lo.

Quando suas íris se encontraram, o corpo dela tremeu quase o suficiente para pô-la de joelhos. Estava com medo, muito mais medo do que conseguia controlar. Não importava que tivesse o invocado, algo nela gritou, você vai morrer como uma ovelha no abate! Fuja! Quase podia ver seu próprio corpo movendo-se sem vida sob o comando da criatura a sua frente.

Ele iria matá-la. Sem dúvidas. Aquela criatura fria, despida de qualquer humanidade arrancaria fora seu coração ou esmagaria seu crânio sem dar a isso um segundo pensamento. Quando a cabeça dele se moveu ela recuou um passo e perdeu o equilíbrio o que a fez cair de bunda no chão.

A mão gélida se ergueu em sua direção e o tronco inclinou-se até ela. A garota fechou os olhos com força e se preparou para a pancada tensionando os músculos. Mas ela não veio.

Suor escorria por seu corpo, frio e pesaroso, dando calafrios enquanto deslizava por sua pele. E então um toque frio acertou sua mão e a levantou do chão como se fosse uma boneca.

Não morrera, percebeu quando abriu os olhos, e a criatura não a matara. Estava olhando para ela com suas íris profundamente azul. O que aquilo significava? Talvez ele a respeitasse como sua mestra? Ou quem sabe não tivesse um objetivo naquele novo mundo onde fora jogado, sendo assim ficando desinteressado em matar?

Fosse qual fosse a resposta, sentiu-se grata por não ter sido morta. Isso significava que ainda tinha uma chance com a guerra pelo graal e que possuía um poderoso aliado. Embora não soubesse bem se ele ainda continuaria incapaz de ser machucado por metais comuns e armas que não a de um tipo específico. As leis de um novo mundo podem não seguir as de seu antigo lar.

Tentou falar com ele logo que se acalmou, mas foi em vão. A criatura não falava. Mas não significava que era inapto a comunicação. Ele apontou num mapa a cidade para onde deveriam ir. Fuyuki, no Japão. Tinha consciência do que estava acontecendo apesar de não proferir palavra ou a garota ter falado algo. Talvez fosse onisciente ou houvesse recebido informações durante a invocação ou compartilhasse dos conhecimentos de Rose.

Não importava. Agora que o tinha precisava ir a Fuyuki. Ignoraria a carta com manchas de sangue e focaria na guerra. Com um servo não precisava temer o conteúdo de um envelope e tão pouco ligar para ele. Estava envolvida em algo muito maior.

As preparações levaram o restante do dia, mas a noite já se encontrava no avião rumo a pequena cidade nipônica vizinha a que seria palco de uma luta entre as criaturas super poderosas chamadas de servos. Quando desembarcou já sabia para onde ir, em qual hotel ficaria e como agiria.

O quarto que alugara era pequeno, mas tinha todo o espaço de que precisaria para criar círculos de encantamento e outras magias de combate e suporte que requeressem preparo. Estava satisfeita consigo mesma por conseguir fazer tudo aquilo sozinha.

Sorriu quando seu servo se materializou e continuou assim mesmo quando teve o peito atravessado por uma lâmina gelada como mil noites de inverno. Não esperava por essa, mas devia saber, afinal, aquele era o maior mal de todo um universo cheio de pessoas. E pessoas podem ser muito más.

Tatsuo, Koji

Mordred parou o carro a poucos metros dos zumbis que corriam o mais depressa que suas pernas mortas podiam levá-los. E então o beijou. Foi rápido, superficial, apenas um toque de lábios que levou pouco mais de dois segundos.

Mas o mundo pareceu explodir numa torrente desenfreada de calor, excitação e batimentos cardíacos acelerados. Sentiu o rosto ficar quente e o membro se erguer.

Tentou abrir a boca para falar algo, mas faltou-lhe ar. E ela parecia ainda mais linda naquele momento com as bochechas tomadas por carmim.

— Nos despedimos aqui. - ela disse. - Decidi lutar sozinha.

O coração do garoto se apertou diante daquela declaração. Não queria vê-la partir para uma luta suicida. Não queria ter de chorar por ela. Não queria ter de viver, aquilo que lhe restava para viver, sem Mordred ao seu lado. Era muito cruel que quando finalmente encontrasse alguém para estar consigo, esse alguém escorregasse por entre seus dedos.

Se fosse para vê-la ir para uma batalha que culminaria na sua morte, desejava ao menos poder ir junto.

— Eu vou com você. - disse firme, mas sentiu as lágrimas descerem. - Então você não poderá perder.

Sabia que não podia fazê-la mudar de ideia com palavras e os selos de comando… a relação que construira com Mordred parecia intima demais para usar magia para controlá-la como um animal puxado pela coleira. Já passara a muito do só gostar e não queria que ela o odiasse.

Tudo a que podia aspirar era a honra de morrer lutando ao lado dela. Não por seu desejo arrogante ao graal, nem por Apolo ou mesmo pelo desejo da cavaleira. Mas pela garota que o salvou.

— Nahhh, fico melhor sozinha. - e então as íris viraram-se para ele, duras e selvagens. - Isso vai ser apenas serviço de açogueiro. Corpos de humanos vão ser abatidos e feitos em pedaços um após o outro tão rápido quanto você pisca. Não é algo agradavel e você não é um lutador. Se matenha no carro, aqui. Volto para te buscar antes de ir encarar meu pai.

A água escorreu ainda mais rápido por suas bochechas.

— E se você não voltar? - sentia-se uma criança tola e assustada com todo aquele choro e essa pergunta que assemelhava-se a de um garotinho questionando se a mãe um dia vai regressar para casa. Como um dia realmente questionara.

Ela sorriu e o beijou de novo, o mesmo toque de lábios, mas mais intenso e longo. Quando terminou o garoto estava sem fôlego outra vez.

— Eu sou a mais forte, é claro que vou voltar! - ela disse em tom alto e confiante. Mas por algum motivo Tatsuo Koji sentiu que Mordred mentia descaradamente.

— Prometa que irá. - disse sentindo-se impotente demais para tentar qualquer outra coisa.

Ela acertou o ombro do rapaz de leve com o punho fechado.

— Você faz parecer como se fosse uma missão suicida. - ela riu e Tatsuo Koji percebeu outra vez que aquela era a cena mais bonita do mundo. - É só o Caster, um bundão que se esconde atrás de um monte de cadáveres, não vai me derrotar.

— Então isso é uma promessa?

O semblante dela mudou, de descontraído para duro e irritado.

— Tá querendo brigar?

Engoliu em seco, sabia que Mordred não estava brincando, mas precisava ouvi-la prometer.

— Prometa. - continuou, fitando com determinação as íris verdes da cavaleira.

Por um momento pareceu que ela o atacaria. Tinha os punhos fechados e a ameaça de uma veia surgindo nas têmporas. E vermelho continuava a tomar-lhe as bochechas. Mas após um segundo instante tudo isso se desmanchou e um sorriso solene surgiu.

— Eu prometo.

E o abraçou. Tão apertado e firme que o garoto sentiu que seria esmagado sob o calor de seu corpo. Quando se separaram Mordred sorriu mais uma vez e saiu do carro para a noite repleta de mortos vivos e servos.

A armadura surgiu no seu corpo e logo a espada estava sendo balançada por suas mãos. E do carro ele viu, mesmo estando a uma boa distância que se tornava cada vez maior, que ela tinha razão, ao vislumbrar os membros decepados voando sob o ar noturno, aquilo era um abate.