Sangue de Arthur III

3- Capítulo, Exército de sete servos


Arthuria, Alter

Primeiro passou no rio onde o servo da classe Berserker dormia. A aguá estava verde e a correnteza calma, dançando suavemente em direção ao mar. O vento balançava os cabelos dourados da cavaleira e fazia o negro vestido tremular.

Um golpe.

Ergueu a espada até que está tocasse o limite da sua envergadura e a da pessoa que a empunhava juntas. A mana sombria se reuniu na lâmina rodopiando em torno dela, como um furacão de ventos negros.

Então a enorme montanha de energia despencou, movida pelo movimento do braço da cavaleira. Esmagando tudo em seu caminho, da borda do asfalto a própria água que tornou-se neblina diante ao toque daquele poder descomunal.

O golpe explodiu numa profusão de negro e carmim. A terra tremeu e uma árvore que via-se próxima no aclive despencou. Então cessou. A água do rio preencheu o buraco deixado pela evaporação de uma parte de si e do nascimento de uma cratera. Mas antes que o rio cobrisse-o, ela viu, o manto verde desgastado ainda pairando sob as águas e aquilo que era coberto por ele também. Um esgar de irritação tomou a face da cavaleira, mas esta logo respirou fundo. A energia dele havia diminuido drasticamente, mais outro acerto e seria apenas cinzas.

Dois golpes então.

Subiu a Excalibur negra outra vez. Mas parou subitamente ao percebê-los. Oito presenças, sete servos.

— Alter-chan, e ai, tudo em cima?

Virou-se para figura ruiva usando uma camisa branca de mangas longas e uma saia negra junto a sapatos escuros. Não a conhecia. Mas soube imediatamente que não era uma civil comum. Sete servos, aquilo era por si só perturbador o bastante para sentir-se ameaçada.

— Se tem amor a vida não se meterá no meu caminho. - a voz soou fria, poderosa, como quis que fizesse. - Leve seus amigos para casa e talvez eu esqueça que os vi. - disse apertando o cabo da espada.

A garota ruiva deu de ombros.

— De boa, é só entregar o cálice e a gente tá fora. Não é Enki-chan?

Os servos se materializaram. Dois ao leste e dois a oeste, dois ao sul e um junto a pirralha.

O que estava junto a garota assentiu.

— Então escolhe a morte? - perguntou a cavaleira sem se deixar intimidar.

— Não, mas se insistir meus amigos a trarão até você. E eu não quero ter que chegar a isso, Alter-chan. Não quero ser sua inimiga. - ela disse e Arthuria pôde sentir a honestidade em suas palavras.

Mordred, Pendragon

Aquilo foi bem herege da parte do garoto. Assassinar os mensageiros de Deus não era como matar o próprio? Deicídio, não é?

— Ata, cê matou os caras. - disse como quem pergunta sobre o tempo. - Foda-se, vamos logo refazer o contrato.

Ele parecia tenso e fazê-lo falar mais sobre a forma como Apolo movera seu corpo para matar os soldados que o papa mandara para rastrear o cálice não soava útil ou agradável. Deixaria o evento de lado e… só tentaria resolver o que pudesse.

— Mordred, você aceita ser meu servo? - ele perguntou sério, tirando-a de seu breve devaneio, com uma expressão estranhamente solene e digna para alguém que carregava um aspecto de um quase morto.

— É, tá bom, como quiser… - disse desdenhosamente e assitiu os selos de comando se formarem e ascenderem na mão do garoto.

Quando terminou se levantou abruptamente da mesa e se dirigiu até o lado do rapaz. Iriam para a batalha contra o Caster e também contra o sombrio rei Arthur balançado uma versão negra da Excalibur. Ele poderia morrer de novo, ela provavelmente morreria e aquele momento poderia vir a ser o último.

Olhou no fundo das piscinas negras que eram os olhos do garoto. Viu o corpo dele se retesar e sentiu o próprio ficar tenso. As palavras ao pouco subiam à garganta enquanto o cérebro lenta e ansiosamente as organizava.

Mas…

Mas... porque ela deveria dizer? Por que o garoto não falava nada? Ele era homem não era? Se alguém deveria dizer algo esse seria o que estivesse em posição inferior e Mordred claramente não estava abaixo dele. Sim, decidiu, Tatsuo Koji é quem devia declarar seu amor antes de partirem para a batalha e a cavaleira iria simplesmente responder a isso com sinceridade enquanto fita o horizonte.

O silêncio do rapaz começou a fazê-la ficar irritada. Os lábios sequer tinham afastado-se numa tentativa de falar.

Diga logo!

O ergueu pela gola da camisa. Seus rostos ficaram a centímetros um do outro, as bochechas do garoto ficaram vermelhas e as íris dilataram. Mordred sentiu o coração bater impaciente.

— Não vai dizer, bastardo? - perguntou deixando a irritação transparecer. - Não gosta de mim, é isso? Só porque…!

Porque não sou uma mulher como se deve. Não sou gentil, educada ou recatada. Não colho flores ou teço vestidos. Estou suja de sangue e por vezes gosto mais do som da batalha que dos bardos.

Engoliu as palavras e soltou o rapaz. Virou-se para o horizonte sentindo a raiva correr mais devagar pelas veias. Não era culpa dele se ela não se fizera amável.

Que seja, eu nunca precisei disso mesmo…

— Mo-san, eu gosto de você.

O coração dela bateu mais forte.

— Tá, eu também… - começou sentindo as bochechas ruborizarem. - não odeio você.

Então num súbito impulso girou sobre os calcanhares e envolveu o rapaz em um abraço. Apertou com tanta força que o ouviu gemer. E ele retribuiu depois de um instante de hesitação.

Passaram-se alguns segundos antes que se soltassem e começassem a caminhar rumo a batalha que provavelmente os levaria a morte.

— Ah, você sabe para onde ir? - a voz não era a do garoto. - Sabe, estava até quase esquecendo, com todo aquele momento emotivo e tudo mais…

— Hã? - o interrompeu irritada. - É óbvio que até meu pai, será minha batalha final, idiota. E não apareça de novo, eu te mato.

Ele riu.

— Se eu ainda tivesse meus poderes divinos, você seria uma porca numa travessa nesse exato instante.

Mordred sacou sua espada e pôs-lhe a ponta no pescoço do deus que possuía o rapaz.

— Mas não têm e é bom que se lembre disso e suma da minha frente.

Viu a face dele mudar, do sorriso confiante a seriedade ofendida num lento segundo. E ela soube que havia feito um inimigo entre os imortais gregos.

— Precisa de mim, sei de uma batalha que pode vencer.

— Não me importa.

— Em Osaka, no subsolo, um exército.

— Traga-o de volta.

— O Caster irá trazer um milhar de mortos, ele é sua batalha.

A espada pressionou-se contra a garganta dele fazendo um filete de sangue escorrer.

— Tatsuo Koji, agora. - falou encarando firmemente as íris douradas.

Elas davam-no um estranho toque de poder e beleza que tornava o garoto atraente, mas não trocaria isso pela voz fraca e insegura do rapaz ou pelo olhar firme que às vezes recebia dele. Gostava do pequeno e fraco mestre, levara um tempo, mas aprendera a apreciá-lo.

Quando as íris negras voltaram abaixou a espada e seguiu caminho.

Lutar contra o pai ou lutar contra o mago? Ambas eram batalhas essenciais para que pudesse pôr as mãos no graal e provavelmente não poderia evitar nenhuma. Não era uma questão de um ou outro e sim de qual enfrentar primeiro, percebeu. O pai certamente a daria uma batalha dura e a vitória a cavaleira não teria certeza de poder alcançar. Já o Caster, ela ouvira sobre um exército.

Clarent poderia varrer um milhar de homens num único balanço. Um mago não poderia competir com a cavaleira em combate a curta distância. E Mordred, como um bônus da classe Saber, tinha um bom nível de resistência a magia.

Posso vencer o mago… mas ainda sobrará meu pai não importa o que eu faça.

— Qual nosso plano? - ele perguntou quando desceram até a estação subterrânea.

— Osaka. - falou lentamente tentando reafirmar para si mesma aquela decisão. - Irei chutar a bunda do Caster primeiro.

O lendário rei dos cavaleiros teria de esperar. Já haviam tido seu duelo uma vez, não existia pressa por um segundo.

— Então vai seguir o conselho de Apolo… - ele respirou fundo antes de continuar. - Podíamos tentar negociar com seu pai.

— Não vai funcionar, ela não é a mesma de antes. - respondeu enquanto se aproximava da borda da passarela e fitava a direção por onde viria o trem. Estava escuro e o ar corria como um tênue fantasma pelo tubo de tijolos que era o túnel. - E eu preciso derrotá-la.

Se o rei Arthur a odiava, se no fim não podia haver amor entre elas, que fosse o aço então. Que Camlann às aguardasse para outro confronto, que Clarent e Excalibur chocassem-se e que Arthur e Mordred lutassem. Uma delas morreria, apenas uma dessa vez. A cavaleira sabia disso.

E conhecia o terror da força do pai o suficiente para não acalentar esperança de vê-lo derrotado.

Nossa luta será outra vez a última batalha, como foi um dia, no passado.

— Podemos fugir. - aquelas palavras soaram como o toque inesperado dos sinos de uma igreja. Os pelos do corpo da cavaleira se arrepiaram. - Apolo já tem os direitos sobre meu desejo ao graal e você… poderia abrir mão do seu desejo para ficar comigo?

O ar faltou-lhe por um instante. Seu corpo gemeu e tremeu, um calor subiu por entre suas entranhas e o peso de meio mundo pareceu quase físico. Quase capaz de ser removido.

E podia. Ela podia. Fugir para longe, correr com a pessoa que gostava e conhecer o mundo novo. Das terras que um dia foram o grande império de Roma as estranhas cidades das Américas. Ver o Cristo redentor e chutar bundas sob o pão de açúcar. Assistir a corrida de touros na Espanha e presenciar o ano novo Chinês. Toda uma vida nova e dourada, longe de tudo que fizera, uma vez, da sua existência uma merda.

Quase podia sentir a brisa das praias, do topo da torre Eiffel e do monte Everest.

Os lábios tremeram, o ´´sim`` forçava sua passagem e a mente tentava segurá-lo. Não podia. Ela não foge de uma luta, não era da sua natureza.

Só eu e ele… uma parte de si sussurrou com prazerosa expectativa.

— Isso… - começou sentindo o peito doer. - Não dá. Preciso lutar, não posso fugir.

O trem chegou assobiando sobre os trilhos. As portas se abriram, mas ninguém desceu.

— Você vem comigo, até a morte?

Pôde vê-lo engolir em seco.

— Se é até onde você vai. - disse a seguindo para dentro do transporte.

As portas se fecharam e a possibilidade dourada com elas.

Quando chegaram à estação de Osaka, um choque atingiu a cavaleira. Pessoas indo de um lado para o outro, sem grande pressa, sem urgência em seus rostos. Ternos e vestidos intocados por láminas, humanos apenas vivendo instante após instante sem preocupação com uma possivel morte. Até mesmo haviam crianças brincando, correndo em torno de pais que as mandavam parar.

Ela deu passos frágeis e trêmulos, olhares e cochichos seguiram cada um. Estava suja, em quase completo desalinho. Enquanto subia as escadas acompanhada pelo garoto não pôde deixar de fitar cada rosto e barraquinha que fluíam tão em paz que não soava possível que estivessem a apenas algumas horas do caos onde a cavaleira estivera.

Era um mundo completamente diferente do sangue e ação que tivera em Fuyuki. Nada de lutas contra servos capazes de te pôr em transe ou pessoas que atiram espadas ou pais sombrios. Ali não existia guerra alguma. Paz, por mais que gostasse de uma boa batalha aquilo lhe caía terrivelmente bem naquele momento.

Segurou a mão do garoto e fitou-lhe as íris negras. O cabelo do rapaz já voltara ao normal e as olheiras tinham regredido também junto a palidez e as feridas. O poder de Apolo, pensou levemente impressionada com a velocidade com que curara-o. E felicidade. Não gostaria de fazer o que tinha em mente com uma versão danificada do rapaz.

— Para onde? - perguntou Mordred.

— Eu não sei, talvez tomar um banho em um hotel ou banheiro público. - ele respondeu com um certo ar de estupidez.

— Não estava falando com você. - respondeu enquanto andavam em meio a pequena correnteza de pessoas.

Sentiu a mana no rapaz crescer e se tornar quente antes de ouví-lo.

— Ele já está aqui.

Escutou os primeiros gritos, uma mulher e três homens. O som não era de medo. Não totalmente. Havia dor, a agonia de ter a carne dilacerada. Mordred conhecia bem o som.

— O exército de mortos? - perguntou para confirmar e antes mesmo da resposta avistou as criaturas pálidas.

— Ainda precisa que eu responda? - Apolo disse fitando-as.