Oito anos antes

Gotham city ─ Torre das aves de rapina

"Se lembra de todas as coisas que queríamos?
Agora todas as nossas memórias estão assombradas
Nós sempre fomos destinados a dizer adeus"

O relógio de madeira tinha a pintura descascada e o cuco seria o único tique monótono ressoando no interior da sala, se não fosse o trin-trin incessante do telefone. Depois de acumular as sacolas no sofá, Dinah veio até minha mesa e o atendeu.

Não, não faça isso.

Eu gosto, ela disse.

E livrou-se do casaco, curvando o corpo meio de lado, sem tirar o fone da orelha. Fiquei observando, de braços cruzados, balançando o corpo para frente e para trás. Entre invadir contas eletrônicas e hackear bancos de dados, atender o telefone era mais uma das coisas que faziam eu me sentir útil, atualmente naquela condição. A luz do entardecer, que entrava lateralmente pelo vitrô, incidiu no rosto dela, bem no espaço entre duas mechas soltas do arranjo em seu gorro. Devia estar uma tarde fria lá fora, de clima agradável. Um astral perfeito para jantar com a família e os amigos, aproveitando também para presentear os membros da liga nesta noite de ação de graças. Um dia, enfim, difícil de ver passar, penso. Aqui, presa nessa cadeira.

"Mesmo sem punhos levantados
Nunca teria dado certo
Nós nunca fomos destinados a lutar ou morrer"

– Alô ─ ela disse e ficou em silêncio por um instante. Bocejei. Minha cabeça procurou repouso na mesa, apoiada nos braços cruzados. Depois de horas trabalhando no computador e anotando telefones, incansavelmente, eu já me sentia pescando peixes. Nem me lembrava da última vez em que tinha ido ao banheiro. Ou atacado o sorvete na geladeira, como fazia nos momentos de monotonia. Relutante. Mais uma hora. Só mais uma horinha e eu vou dormir mesmo no sofá, decidi, enrolando no dedo uma mecha de cabelo. E pensando que, afinal de contas, cada um tem a sua maneira de se sentir útil.

É um amigo... e quer falar com "Babs".

"Babs", pensei. Olhei para Canário: ela apoiava uma mão na cintura, e me passou o telefone com um risinho vitorioso se armando nos lábios.

Quem será? ─ perguntou maliciosa.

"Mesmo sem punhos levantados, sim
Nunca teria dado certo, sim
Nós nunca fomos destinados a lutar ou morrer"

Sorri meio aflita, sabendo muito bem quem estava na outra linha. Canário foi até a cozinha, me deixando a sós com o telefone e não sei porque achei isso formidável.

─ Oi Dick... Sim estou bem...

Ao ouvi-lo, uma sensação de alívio reconfortante me percorreu todo o corpo, até se tornar audível minha satisfação. É loucura dizer isso, mas eu sempre achei o timbre da sua voz agradável e convidativa. Um não sei o quê entre o paternal e o confiante. Eu seria capaz de passar horas o ouvindo cartear monólogos sobre quadros numa exposição futurista no Louvre, em Paris, sem a menor pressa. Pelo telefone. Imaginando que seria engraçado: ele com aquele ar indisfarçável de quem não está entendendo nada muito bem.

"Eu quero que você saiba
Que não importa
Onde tomamos essa estrada
Alguém tem que partir"

Dinah afofou uma almofada lilás e acomodou-se no sofá. Na mão, trouxe o pote de sorvete de misque, e uma cor de felicidade caseira nos lábios. Fico imaginando se foi somente efeito do doce, ou se tem alguma história a mais que ela queira me contar amanhã. Isto é, se gostasse de falar da sua vida pessoal ─ quanto a isso, Helena sempre foi a mais aberta. Assim, talvez eu só possa imaginar essa história.

Ou quem sabe eu deva ter a minha própria história? considerei, por um segundo, ao ouvir Dick me convidar para uma "surpresa". Eu tinha certeza de que ele faria isso. Por isso minha felicidade em revê-lo sempre dividia-se com um punhado de borboletas voando no meu estômago, à espera dele insistir num relacionamento que nós sabíamos que não daria certo. Eu, agora, seria nada mais que um peso nas costas, saudosa de um passado que nunca mais teria de volta. Dick merecia uma mulher por inteiro. Eu queria dizer-lhe isso. Mas dizer-lhe também que eu não aguentaria deixá-lo ir, não de novo.

"Olhar para você torna tudo mais difícil
Mas eu sei que você irá encontrar outra pessoa
Que não irá fazê-lo sempre querer chorar"

Amar nunca foi fácil.

Olhei para minha mesa cheia de coisas por fazer, correndo os dedos pelos cabelos. Minha nossa, estavam gelados! Será que está tão frio lá fora ou são os cabelos de uma solitária convicta? Ri disso, um sorriso desiludido. A melhor maneira de aprender que até mesmo um grande amor pode não bastar.

─ Desculpe Dick, olha não... hei!

Dinah tomou o fone de minha mão, com uma cara de indignada.

─ Anh? Nem pense, Babs ─ e começou a limpar a mesa, empilhando papeis/cadernos/documentos com uma das mãos ─ até mesmo heróis tem direito a um pouco de descanso.

Esbocei reação, mas foi inútil. Dinah me fitou com olhar de quem realmente se preocupava. Achei sincero: ninguém pode dar o que não possui, nem mais do que possui.

─ E você anda precisando ─ ela disse.

─ Haaam, quer saber Dick?! ─ peguei o telefone calmamente, tomando coragem ─ Eu vou sim. Ok. Daqui a uma hora. Beijo ─ e desliguei.

Dinah acompanhou cada sílaba, com ar de satisfeita.

─ Huuum, parece que alguém tem um encontro hoje!!!

A longa e intensa história de amor de Robin e Batgirl não me permitia ruborizar diante do comentário de Dinah, afinal, eu já havia passado dessa fase. Mas admito que ao ouvir a palavra "encontro", fiquei completamente entusiasmada... e eu não sabia se isso era bom.

─ Não é um encontro... Só vou ver um velho amigo. Eu também mereço um pouco de descanso, não foi o que você disse?

─ Um amigo? ─ ela perguntou ─ Pois é... foi assim que ele se auto-referiu, mas nós duas sabemos que não é só isso.

Rimos. Lá fora o crepúsculo dava lugar as primeiras estrelas, e quanto mais anoitecia, mais a brisa ficava gélida. Dinah tirou o gorro, soltou os cabelos loiros e agitou-os, seu rosto ficou semi-encoberto, e, no espaço entre duas mechas, capturei o brilho de seus olhos. Levei essa imagem comigo quando me olhei no espelho do closet, Deus... eu estava ficando descuidada. Não vou passar nem por uma funcionária do saneamento com esse cabelo.

Resolvi por sua blusa de manga com uma gola em V. E com alguma dificuldade, vesti a calça jeans escura. Será que Dick preferia estar com uma garota que parecesse confortável naquelas roupas? me perguntei, alisando as laterais da calça amarrotada. Ok, chega de atacar o sorvete de misque da Helena esse ano. É muito difícil se manter em forma quando se não pode treinar quase nada numa cadeira de rodas.

Coloquei uma jaqueta de couro cor de vinho antes de sair da torre do relógio.

"Começou com um beijo perfeito
Então, nós pudemos sentir o veneno entrando
A perfeição não conseguiu manter esse amor vivo"

Dick estava no lugar combinado, na hora certa. Na verdade parecia estar ali há mais de vinte minutos antes da hora. Ao ver-me, ele sorriu como se fosse o adolescente nerd e desajeitado da escola que consegue sair com a garota mais bonita e popular, e não escondia isso. Não escondi como isso me encheu de emoção. Dinah tinha razão, eu estava precisando.

Dick era três anos mais novo, teimoso e rebelde, mas também era um cara maduro.

"Você sabe que eu te amo muito
Eu te amo o suficiente para deixá-lo ir"

─ Você não vai acreditar aonde nós vamos! ─ ele disse animado depois de depositar um beijo na minha testa.

─ Deixa eu ver... ─ pensei ─ Não me fale de ópera, por favor.

─ Bárbara, olha minha cara de ópera!!

Olhei bem no fundo dos seus olhos. Em vez de ópera, vi nascer uma emoção bem devagar. Não tenho dúvida, era com ele que eu queria viver. Mas outras dúvidas eu tenho. E elas atrapalham.

Amar nunca foi fácil.

─ É uma surpresa na verdade. Feche os olhos ─ disse ele.

O fiz. Querendo ou não, fui empurrada, afinal, ele tinha uma surpresa. Ao abri-los, avistei uma grande lona de circo, luzes coloridas, pirotecnia, e várias pessoas gratas, de astral natalino e roupas listradas nas cores do Harley.

─ Aí está! ─ ele parecia orgulhoso ─ esse é o circo onde eu trabalhava com meus pais acrobatas... eu o comprei.

─ Sério, Dick? ─ comentei. Circo, palhaços, era tudo o que eu não queria ver. Outra vez eu tive que fugir, eu tive que correr. Pra não me entregar. Fingi não me abalar com aquilo. Apesar do quê, ver os lindos olhos azuis brilhantes de alegria foi maior, foi algo surreal. No dia a dia, um grande amor abrange o sonho e vida real.

─ Sério ─ ele sorriu ─ vamos entrar?

─ Sim ─ retribui-lhe o sorriso.

A coisa poderia terminar aí, mas como eu disse, amar nunca foi fácil. Não é um conceito meu, nem um defeito. É só o meu lado triste de ser. Até a terra dura vira lama, depois que a chuva alaga. E eu já cansei de fugir, de fingir, de mentir e sumir.. pra não ter de encarar. E depois daqui, talvez ele nunca entenda, essa forma de fazer acreditar... talvez eu também nunca entenda que meu amor não será passageiro, e mesmo assim tenhamos de seguir em frente, definitivamente.

Estou caída na espiral desse picadeiro.

Ainda ficamos conversando nos assentos da arena, depois que todos foram embora, e Dick dispensou os funcionários. Penelope e Ulisses se resolvendo em um circo, depois de tanto tempo longe. Ulisses estava dizendo que achava que nunca pisaria de novo em um circo, sem lembrar o trágico acidente que havia levado seus pais. Penélope, olhava toda a extensão do lugar, pensativa. Ulisse estava dizendo que deixou-se dissiparem os fantasmas do passado, e que agora olhava aquele lugar como um círculo feliz. Depois encarou-a como se estivesse esperando a moça se pronunciar. É, ele queria ajudá-la. Na madrugada, o destino conspira ao som do jingle silencioso do Harley's.

─ Eu ainda não me livrei dos meus fantasmas, Dick...

Não sei medir o quanto foi difícil confessar esse trauma. A dúvida do que definiria nossas vidas depois daquela noite me corroía a alma. Dessa vez não bastava simplesmente dizer mais uma vez "eu te amo". Só eu sei o quanto desejei que nada mais, além do seu amor, pra minha dor fosse o remédio. Mas eu sabia, dessa vez, até mesmo um grande amor pode não bastar.

"E eu quero que você saiba
Que você não poderia ter me amado melhor
Mas eu quero que você siga em frente
Então, já fui embora"

Fechei os olhos, tomando coragem para a exumação daquele fantasma. E senti Dick tentar me consolar em um abraço, Deus!, quem sabe sentindo-se o maior dos idiotas? Me esperar tanto tempo para essa amostra patética de pena de mim mesma.

─ ... Toda noite eu tenho o mesmo pesadelo... Eu abrindo a porta pra alguém e logo em seguida levo um tiro de um cara com rosto de palhaço ─ afundei o rosto em seu peito, para que ele não visse que eu estava desmoronando ─ Eu sou Oráculo agora... Mas sinto falta da Batgirl, de combater o crime sem estar por trás dos computadores, usar meus punhos pra bater num babaca... sinto falta do vento batendo no rosto ao pular de um prédio, com o trânsito caótico de Gotham lá embaixo... Mas...

Ele se levantou, de súbito. Meu coração parou ali, naquele momento. Um segundo que eu sempre tentei adiar. Não o culpo, era inevitável acontecer, óbvio. Apenas seria grata por ele não ter visto isso antes, e só espero que um dia possa me perdoar. Eu não poderia mais ver o brilho do sol.

Condenada, no fundo eu estaria para sempre te esperando. Assim como você me esperou ─ o destino tem um senso de humor entorpecente. Então ele perguntou:

─ Babs, sente falta mesmo?

Limpei um olho com o dorso da mão.

─ Claro, porque está perguntando? ─ sentiria sua falta também. Talvez até mais.

O silêncio se instaurou entre nós, não sei quanto tempo. Mas foram longos segundos. Eu já não ouvia a musiquinha jingle do Harley, apenas os batimentos de meu coração, agitados pela emoção triste do nosso castelo a ruir. Até que Richard se ajoelhou a minha frente, e lentamente estendeu o braço, prendendo alguns fios de cabelos ruivos que tinha sobrado atrás da minha orelha. Seus dedos, ásperos, se demoraram sobre meu pescoço, olhando-me sem piscar, como se quisesse ver a verdade dentro de mim.

E sem avisar me pegou com cuidado e tirou-me da cadeira.

─ Dick, o que é isso? ─ perguntei, incrédula.

Fechei os olhos. Essa era a melhor surpresa.

No momento seguinte, estávamos num dos pontos mais altos do circo, frente a frente com um trapézio.

─ Você tem certeza? ─ perguntei num misto de felicidade com medo.

─ Você não quer voar?

Eu disse "quero".

Mas céus! O que havia acontecido? O espírito estava pronto, mas as borboletas pareciam mais agitadas do que antes. Faltava algo em mim. Faltava coragem para redimir, para dissipar aqueles fantasmas. Era o que eu precisava.

Foi quando Dick nos segurou firme, e eu escutei que lá fora começava a chover. Lama vira até a terra dura quando a chuva alaga.

Fechei os olhos, pensei. Batgirl.

Nós estávamos voando. Eu estava voando, mais uma vez, como antes, sobre a cidade de Gotham. Ele de volta à companhia de seu instrumento de trabalho quando era criança, e mais uma vez eu sentindo o vento em meu rosto enquanto confio nas cordas que me fazem flutuar. Estavamos ali naquele lugar em que perdemos tudo o que valia a pena, mas ainda assim estavamos felizes.

Quanto à exposição em Paris, na volta, aprendemos o segredo daqueles artistas. O amor abrange o sonho e a vida real, no dia a dia, mas seja onde for, não há lugar melhor quando se está ao lado de quem se ama. No ponto mais alto do Harley, em vez de beijar-me na bochecha, Dick me surpreendeu ao passar os braços à minha volta e amarrar uma fita na minha testa.

─ Eu te amo ─ disse ele.

Sorri-lhe e puxei-o mais para perto. Pressionei meus lábis nos dele e, por um instante, não pensei em nada a não ser o calor de seu corpo. Mas, ao também puxar-me mais forte pela cintura, o comichão do seu toque em minha pele havia sido substituído por um calafrio de terror.

"Eu já fui embora
Eu já fui embora
Você não pode fazer isso parecer certo
Quando sabe que isso é errado"

Nós tínhamos tudo para ser felizes. Ou quase tudo. Não tenho dúvidas de que ele me amava, mais que tudo, já havia provado isso. E eu também não tinha dúvidas. É por isso que eu acho que ele merecia uma mulher de igual patamar - ele é claro discordava fervorosamente, e deixava claro em todas as nossas discussões. Mas e a minha opinião? Richard viveria pela metade, comigo ao seu lado, um fardo presa numa cadeira. Além disso, para ele era tão natural falar do passado; ele era o meu passado. Um que eu nunca mais teria de volta. E mesmo que eu o queira para sempre, e o ame com todas as minhas forças, temos que encarar a verdade. E seguir em frente. Não dá mais.

"Se lembra de todas as coisas que queríamos?
Agora todas as nossas memórias estão assombradas
Nós sempre fomos destinados a dizer adeus"