\"Aquele que luta com monstros deve acautelar-se

para não tornar-se também um monstro.

Quando se olha muito tempo para um abismo,

o abismo olha para você.\"

Friedrich Nietzsche - Além do Bem e do Mal

West End, Londres, outono de 1948.

Era uma noite fria e enevoada de outubro em Londres, e a umidade perene que ascendia do rio Tâmisa tornava reluzentes os calçamentos de pedras escuras das ruas e se imiscuía por entre as frestas das janelas e orifícios nas paredes das casas e prédios, e se infiltrava até nas roupas fazendo as pessoas tremerem regeladas. Abraham Souzanitzky tinha ido visitar seu bom amigo Charles Harper, morador de Westminster, tal como o fazia uma ou duas vezes por semana, para discutir metafísica medieval e ciências naturais. Deixara seu MG-TC num estacionamento perto da extremidade da Abingdon Street para prosseguir a pé até a casa do amigo no início da Alderney Street, donde agora regressava. O brilho amarelento das luzes de rua pareceu-lhe um tanto desagradável, lembrando archotes surreais tremeluzindo na névoa que ficava mais cerrada e densa à medida que se entrava nela. Um cenário de romances e contos de mistério como só um Edgar Allan Poe ou um Arthur Conan Doyle saberiam descrever com precisão.

Abraham, o queixo enterrado no peito, levantou a gola do sobretudo, escondendo a boca e parte do nariz, numa vã tentativa de escapar ao frio onipresente. Enfiou o chapéu até a testa.

Enquanto isso, um casal que voltava da Royal Opera House, na Lupus Street, desceu do cab (táxi) e começou a andar em direção à Alderney Street, onde presumivelmente residia, sendo engolfado pelo denso nevoeiro e afinal sumindo de vista.

Subitamente, ao atravessar a Saint-George\'s Hanover Square, Abraham sentiu um frio gelado na espinha e um medo inexplicável que o levou a apertar com força a coronha do revólver que sempre trazia no bolso do paletó, ao sair à noite, desde que uma família que passeava pela Grosvenor Road fora barbaramente trucidada por uma criatura desconhecida que drenara todo o sangue das vítimas, deixando a Scotland Yard completamente desnorteada. E agora Abraham pressentia que uma coisa horripilante estava prestes a acontecer. Nesta noite, neste lugar.

Fechou os olhos e tentou relaxar, respirando fundo, para mentalizar uma luz violeta a envolver-lhe o corpo todo, acima e abaixo e aos lados, para cortar vampirismo astral, negatividade, em seguida uma luz branca pura, e recitou trechos do Salmo 91, Yoshev besseter, no hebraico original - proteção contra os terrores noturnos.

Exatamente quatro minutos após o Big Ben tocar as doze badaladas da meia-noite, um grito estridente de pavor saído da névoa noturna cortou o ar frio, e no mesmo instante Abraham sacou o revólver e correu o olhar acuado em derredor, pronto para se defender. Era sem dúvida voz de mulher. Seguiu-se então uma confusão horrível de gritos de socorro misturados com sons de passos de alguém correndo dentro da névoa espessa e branca, uma forte vibração de asas membranosas, gritos lancinantes de dor, um som surdo como o de um corpo batendo no chão, e, sobrepujando a todos em horror absoluto, o urro bestial indescritível de ALGUMA COISA que parecia ter irrompido diretamente das cavernas primordiais ou das entranhas do Inferno.

- Shemá Israel! - exclamou Abraham, de arma em punho, mirando o vulto escuro de estatura enorme e grotesca e olhos em brasa que emergia do mar de névoas com um misto de repulsa e fascinação. - O que, em nome dos Céus, vem a ser essa... Essa coisa?!

O fedor que exalava era tão intolerável que Abraham torceu o nariz e recuou enojado.

Diante dele, saindo das brumas com seu andar balouçante e quase de quatro, apresentou-se um asqueroso ser rastejante que outra coisa não era senão uma decadente e terrífica perversão do desenvolvimento evolucionário, uma afronta ímpar ao Criador. Abraham calculou que sua altura, se caminhasse ereto e não encurvado para a frente, devia ser de uns três metros. Entretanto, apesar de todo o terror que sentia, o cientista que havia nele procurou observar bem os detalhes da estranha criatura sob as luzes lúgubres dos postes de iluminação.

Era indubitavelmente humanoide, se bem que caracterizada por medonhas distorções.

Uma pele coriácea de um cinza-chumbo muito escuro, quase negro, revestia os ombros largos e maciços, o tórax grosso e largo, a cintura relativamente fina, as pernas musculosas terminadas em pés digitígrados e os braços pesados anormalmente longos - num lampejo, Abraham pensou em \"pernas dianteiras\" - terminados em mãos providas de garras poderosas, e, pior de tudo, a cabeça repugnante com um perfil que transgredia todos os princípios aceitos na biologia e na zoologia. Era comprida e estreita demais para um ser dotado de inteligência, com a testa baixa, grandes orelhas de abano, pontudas, focinho cônico afilado e boca enorme, redonda, armada com uma dupla fileira de dentes cortantes e pontiagudos, sendo o par de incisivos centrais superiores proeminente como o dos morcegos hematófagos, ou vampiros. Com a língua pegajosa de meio metro de comprimento chicoteava o ar. Os olhos amarelados de tonalidade dourada, incandescente, oblíquos e sem pupilas, pareciam adaptados para funcionar em ambientes de pouca luminosidade, sugerindo tratar-se de um predador notívago. Por fim, para arrematar sua estranheza, a pele cor de chumbo se esticava para ambos os lados do corpo gigantesco, partindo do dorso e do ventre, para formar uma capa membranosa similar ao patágio dos quirópteros noturnos. Mas Abraham duvidava de que uma criatura daquele tamanho fosse capaz de voar nas condições rarefeitas da atual atmosfera terrestre com asas tão irrisórias.

O monstro parou. De sua boca escorreu uma baba espessa e amarelada, nojenta, misturada com o sangue de suas vítimas humanas mortas, e de sua garganta escapou um bramido ensurdecedor. No mesmo instante Abraham descarregou todos os seis tiros de seu revólver na torva criatura, perfurando-lhe a pele couriácea. Porém, para espanto do naturalista, as feridas abertas no couro grosso da besta quiropterana foram se fechando lentamente, como por encanto, até não sobrar nenhuma. As células dos tecidos daquele animal - se é que era um animal - possuíam uma extraordinária capacidade de regeneração. Abraham ficou paralisado de terror, ali, no meio da rua, alucinado de pavor... prestes a gritar... prestes a morrer. Sentia-se como um personagem de H. P. Lovecraft, ou de Robert E. Howard, cara a cara com horrores cósmicos. Inútil tentar correr e fugir. Tinha certeza de que a criatura o apanharia num piscar de olhos, e que conseguiria rasgá-lo ao meio apenas com as garras de suas mãos semelhantes a patas.

O monstro virou-se repentinamente noutra direção, levantou a cabeça de focinho alongado, dardejando sua língua gosmenta de ponta afiada como se farejasse o ar. E gritou. Pareceu a Abraham que o ruído saído da garganta bestial foi um grito furioso de medo e ódio.

E foi então que ela apareceu.

O olhar acastanhado de Abraham Souzanitzky deslocou-se do monstro antediluviano para a silhueta aparentemente frágil e delicada que emergia das névoas leitosas como uma aparição espectral, caminhando com passos precisos e firmes em direção ao bicho vampiresco que tinha quase duas vezes o seu tamanho e quase vinte vezes o seu peso.

- Meu Deus, é uma garota! - Abraham não cabia em si de perplexidade.

Era inconcebível... Mas mesmo à distância, sob as luzes elétricas dos postes, dava para ver que a figura delgada e esguia que do nada se aproximava era uma garota. Humana. Estava vestida com uma espécie de casaco roxo sombrio e usava botas negras de cano curto, deixando as pernas de fora. Na sua mão direita pendia uma longa espada cuja ponta se arrastava ao chão produzindo um suave ruído estridente no atrito da lâmina com as pedras do calçamento.

A boca pequenina, rígida, de lábios firmes extraordinariamente vermelhos, emprestava ao rosto juvenil uma expressão fria e compenetrada.

Abraham fitou a desconhecida que parou a uns dez metros do local onde ele se achava, muito ereta, as longas pernas esguias e nuas separadas num \"V\" invertido, encarando impassível o monstro que perdera todo interesse pelo judeu magro e alto. A face angelical, pálida, envolta pelos curtos cabelos negros, lisos e desalinhados, o fazia lembrar de uma boneca de porcelana chinesa, marcada pelos grandes olhos amendoados. E que olhos!

\"Esta garota tem olhos vermelhos que brilham no escuro\", pensou Abraham apavorado. Tornou a olhar para a besta-fera quiropterana e constatou que os orbes amarelos incandescentes da criatura adquiriram um tom rubro, idêntico ao do par de olhos vidrados da misteriosa jovem que, indiferente ao frio da madrugada londrina, trazia em si o fascínio de uma deusa das trevas ou anjo caído. A bela e a fera. Ela posicionou sua espada na horizontal, à altura dos olhos, e, com a palma da mão esquerda aberta sobre a lâmina, rapidamente deslizou a mão pelo fio da espada sem pestanejar. Abraham teve a impressão de que um filete escarlate começou a correr ao longo de toda a extensão da lâmina afiada de aparência perigosa.

Pareceu-lhe testemunhar uma paródia grotesca do embate de Davi contra Golias.

Rugindo feito um demônio, o monstro lançou-se voando sobre a antagonista.

Nenhum som escapou de seus lábios rubros quando ela ergueu no ar a espada tingida com o rubor de seu próprio líquido vital e lançou-se vertiginosamente em direção ao ser abominável como um piloto kamikaze numa missão suicida. Numa explosão estonteante de velocidade e furor brutal, o gume da espada da garota \"samurai\" literalmente rasgou e desmembrou o corpo quase negro da besta-quiróptero e dele arrancou uma torrente sanguinolenta vermelho-escura, que derramou-se na forma de chuviscos de fagulhas de sangue em rápida cristalização sobre a figura sombria e fria que inda segurava em suas mãos a katana de lâmina prateada manchada de escarlate e púrpura. Seus movimentos foram demasiado rápidos para que o olho humano pudesse acompanhar, compreendendo uma insignificante fração de segundo. Antes que Abraham se desse conta do que acontecera, a carcaça plúmbea da aberração quiróptera antediluviana jazia morta, despedaçada, e, pior de tudo, metamorfoseada em um tipo de substância petrificada, ou cristalizada, como que inexplicadamente atingida por algum pavoroso processo de fossilização aumentado e acelerado um milhão de vezes. A mente de cientista de Abraham pelejava para enquadrar tudo aquilo no esquema das coisas e suas regras, encontrar uma explicação lógica, racional... mas não conseguia. O princípio da Navalha de Occam falhava, a menos que lhe ocorresse duvidar da própria sanidade e concluir que estava ficando louco.

Um novo rugido arrancou o judeu de suas reflexões. Virou-se, de súbito, a tempo de ver uma segunda besta quirópterana, similar à primeira, surgir das sombras distantes, detrás do gasômetro, e correr na sua direção com a voracidade de um tiranossauro e a feroz agilidade de um tigre-de-bengala. Por uma fração de segundo seus olhos castanhos visualizaram a bocarra escancarada eriçada de caninos amarelados, as mãos enormes em forma de garra abrindo-se para tentar agarrá-lo, e ele sentiu o sangue em suas veias congelar. Sua única reação foi fechar os olhos. Foi quando ouviu o barulho de aço se chocando contra alguma coisa dura, áspera e pesada. Ao abrir os olhos de novo, deparou-se com a garota de olhos vermelhos que se interpunha entre ele e o monstro, aparando o ataque furioso das garras assassinas com sua lâmina prateada revestida de sangue. Os lábios tingidos de encarnado apertavam-se e contorciam-se dando mostras dum extremo esforço físico. Abraham se perguntava por quanto tempo ela resistiria àquela queda de braço.

\"Humana ou não, essa moça me salvou\", pensou Souzanitzky nervosamente. Ele queria ajudá-la e sentia que podia, mas como?

De repente, lembrou-se do revólver vazio em sua mão direita. Sem pensar duas vezes, arremessou-o com toda força no olho escarlate do monstro-morcego, atingindo-o em cheio. O bicho piscou, afrouxou a pressão que fazia na katana (e nos braços) da jovem guerreira, que aproveitou a folga para decepar a pata de seu medonho oponente. O bicharoco urrou de raiva e dor, mas sua executora não sabia o que era piedade, e, deixando escapar um grito extático - na realidade o único som produzido por ela durante a refrega - , enfiou com toda a força a espada reluzente na barriga do monstro vampiro e rasgou-a de alto a baixo, e o sangue e as tripas voaram ao chão, cristalizando logo em seguida. O resto da carcaça também cristalizou-se pela ação de forças desconhecidas, rachou e ruiu em questão de segundos.

Bela e fera. Ela é ambas.

Abraham Souzanitzky viu a garota tropeçar e cair de joelhos, para soerguer-se a seguir, apoiando-se com as mãos na katana ensanguentada que apoiava no chão de pedras úmidas. Depois de um longo momento de estupefata hesitação, cresceu nele uma necessidade irresistível de proteger aquela garota inumana de olhos de rubi que salvara sua vida. Ele correu ao encontro dela, que estava de pé, ofegante, apoiando todo o peso em ambas as mãos sobre o cabo da espada apoiada no chão. O rosto delicado e pálido, assim como o vestido roxo, ostentavam feias nódoas de sangue seco, dos monstros que matara. Abraham ajeitou os óculos sobre o nariz adunco e grosso, tirou o chapéu, passou a mão pela cabeleira castanha encaracolada e tornou a pôr o chapéu, todo atrapalhado e nervoso, estendeu a mão para ela, timidamente, e tocou-a no ombro, dizendo:

- Moça... Senhorita... Posso ajudar?

Seus olhos acaramelados encontraram os dela, vermelhos como sangue. Os cabelos da nuca de Abraham se arrepiaram de tensão. Era estranho e aterrador fitar aquelas íris rubras, lembrando um par de luzes de alerta, em cujo redor espreitava a alma escura de um predador assassino, alienígena, inumano. Esse ser que tinha a forma de uma moça adolescente não era nem poderia ser uma mulher humana, não era uma membro da família do Homo sapiens sapiens. Ele retirou a mão e, por alguns segundos, imaginou uma grande bola de luz rosa brilhante envolvendo os dois. Então ela falou com voz baixa, trêmula:

- Sangue... Eu preciso de sangue...

Ela o encarou como se olhasse através de um vidro fosco. De um instante para outro as suas íris perderam a vermelhidão resplandecente de antes, adquirindo um tom achocolatado absolutamente humano. Agora parecia uma jovem normal, uma garota como outra qualquer. Com um suspiro quase inaudível, ela perdeu os sentidos e desmaiou, aparentemente de cansaço e fome, sendo de pronto amparada por Abraham, que a apertou em seus braços com carinho. Observou, admirado, que ela era uns quinze centímetros mais baixa que ele. Uma leve garoa começou a cair, mansa, tímida, molhando seus rostos e suas roupas.