Capítulo XII – Caçada

“Observando-me, querendo-me,

Eu posso sentir você me colocando para baixo

Temendo você, amando você,

Não vou deixar você me puxar para baixo”.

(Evanescence – Haunted)

O último sinal ressoou em alto e bom tom, irrompendo pelos longos corredores, avisando a todos os alunos de que estes deviam entrar na sala de aula, ou certamente estariam em maus lençóis.

Lutei contra o mar de alunos que abarrotavam aquele corredor, eu estava atrasada, e certamente, encrencada também. Empurrei dois garotos que tagarelavam na porta e entrei na sala como um furacão. Mas, para o meu alívio – e espanto – o professor ainda não havia chegado.

Dirigi-me até os fundos da sala, sentando-me na carteira e tombando a cabeça para trás, completamente ofegante e exausta. Inspirei, vendo a figura do professor de história irromper pela sala, encarar-me, os braços cruzados, o cenho franzido.

Encolhi-me na carteira, percebendo que Tamara chamava-me, em um “psiu” sibilado através dos lábios semicerrados.

- Ei, Agatha! – ela sussurrou, exigindo minha atenção.

Voltei-me para ela antes que o professor percebesse nossa conversa paralela.

- O que foi? – sussurrei, inclinando-me em sua direção.

- Eu soube do que houve ontem, sinto muito mesmo...

- Obrigada.

Logo o professor exigiu a atenção da turma, explicando sobre a matéria que seria lecionada. Eu quicava, impaciente em minha carteira pelo término da aula. Tamara logo rasgou uma folha de seu caderno, escreveu nela e depois, de forma discreta, passou o bilhete dobrado para mim.

Abri a folha de papel, lendo seu conteúdo.

Mas o que houve afinal?

Dizem que tem uma espécie

de maníaco a solta pela cidade.

Peguei minha lapiseira, apagando o que Tamara havia escrito e escrevendo por cima.

Eu também não sei,

o delegado Percy diz que não

possui provas suficientes para levar

a um suspeito.

Passei o bilhete para Tamara, que fez um biquinho no mesmo instante, apagou o que eu tinha escrito, escrevendo novamente. Ela repassou o pedaço de papel para mim segundos depois.

Pensa que eu não sei que

você não está escondendo algo?

Você e o palerma do meu irmão

andam de segredinhos...

conte-me tudo, ou serei capaz

de dar um chilique!

Passei a borracha novamente, sendo rápida e discreta enquanto escrevia novamente.

Você está imaginando coisas.

E eu o Peter não estamos escondendo

absolutamente nada!

Passei o pedaço de papel para ela, vendo o sangue arder em suas bochechas, ela estava irritada, muito irritada por estarmos ocultando-lhe a verdade. Ela passou a borracha e escreveu freneticamente no pedaço de papel.

Mais cedo ou mais tarde,

um dos dois terá que me contar!

E isso é sério!

Meneei minha cabeça para os lados, quando Tamara fincava pé em algo ninguém a demovia de sua decisão. Seria complicado.

Escondi o pedaço de papel no meio de meu caderno e foquei-me novamente no que o professor explicava-nos, mas precisei me esforçar muito, minha cabeça parecia querer explodir a qualquer momento. Então, simplesmente desliguei a minha mente daquele ambiente e torci para que as horas avançassem.

Quando finalmente o sinal ressoou, eu levantei-me com um salto, correndo para a porta, tentando evitar Tamara ao máximo, ou ela acabaria por me pressionar por repostas. Cruzei o corredor estreito, ladeado pelas duas fileiras de carteiras, porém, antes mesmo que pudesse deixar a sala, uma voz interrompeu-me, pelas minhas costas, detendo-me em meu trajeto. Estremeci imediatamente.

- Agatha, poderia esperar um pouco, por favor?

Virei-me, receosa, vendo que se tratava de Stevan Blake. Sua expressão embora me parecesse amistosa, sugeria-me outra coisa, cautela. Ele estava sendo muito cauteloso.

Inconscientemente, meus dedos apertaram a alça da mochila em meu ombro direito. Senti a tensão enrijecer vagarosamente cada membro do meu corpo, até que eu petrificasse de medo.

Stevan fez um sinal para que eu me aproximasse de sua mesa, vacilante e hesitante, eu dei o primeiro passo. A sala esvaziava-se, os alunos migrando para os seus próximos tempos, mas ele parecia ter um motivo para me segurar ali, sozinha, com ele, estremeci ao pensar nisso.

- Er, o senhor me chamou? – indaguei, com um pé atrás ainda, desconfiada de sua atitude.

O professor soltou um longo suspiro, cruzou as mãos sobre a mesa e direcionou seus olhos intimidadores até meu rosto, fazendo-me gelar dos pés à cabeça.

- Eu soube do que houve com Bill Packson ontem, Agatha, e queria lhe dar os meus mais sinceros pêsames, sei que ele era amigo de sua mãe há muitos anos.

Eu devia ter permitido que minhas pernas bambas fossem ao chão naquele momento. Eu não acreditava no que aquele homem estava falando-me! Eu tinha ouvido mal?

Arfei, completamente descrente do que tivera ouvido. Recompus minha expressão, ou pelo menos, tentei recompô-la.

- Er, obrigada, professor.

Ele sorriu de forma simpática, recostando-se na cadeira, voltando-se inteiramente para mim.

- Disponha, Agatha, e eu também queria lhe dizer que se precisar de apoio ou de alguém para desabafar, estou às suas ordens.

Tudo bem, dessa vez eu não fui ao chão, mas recuei, pisei em falso e tropecei, piscando, atônita, tentando recuperar a minha sanidade.

- O-obrigada, pro-professor...

Ele lançou-me um olhar de como quem diz “não estou fazendo nada demais”. Sacudi minha cabeça, tentando reordenar meus pensamentos, se é que isso era possível depois do que conversamos.

Saí da sala, ainda um pouco confusa e cruzei com um Peter mal humorado. O motivo era bem óbvio: Tamara. No caminho para a outra sala, ele contou-me que ela o pressionara por respostas. E que batera o pé com veemência para tomar conhecimento do que nós dois estávamos segredando.

Ainda bem que Peter negara-se até o fim a contá-la. Suspirei, um pouco mais aliviada, eram problemas demais para um dia só.

Enquanto caminhávamos pelo corredor apinhado, olhei sugestivamente para ele, ao que parece o episódio com Christian ainda não estava completamente esquecido.

- Peter? – eu o chamei.

Ele não me olhou, estranho de sua parte, continuou com os olhos fixos a sua frente, mas não pôde deixar de me responder.

- Sim?

Hesitei um pouco, mas que mal havia?

- Você disse que... – suspirei, recomeçando – Você disse que queria me ajudar, então... Estava me perguntando se a sua proposta ainda está de pé.

Ele sorriu, claramente empolgado e fitou-me, parecendo realmente estar contente por eu estar lhe pedindo ajuda em algo.

- Claro que está! O que quiser, ou no que precisar, pode contar com a minha ajuda. E então, o que está planejando?

- Não é nada muito complicado, preciso verificar algumas coisas na biblioteca da escola, alguns registros históricos, jornais velhos. Você poderia ficar depois da escola e me ajudar?

- Estou a sua disposição. – murmurou ele, sorrindo ainda mais.

Baixei meus olhos e assenti, sem poder dizer mais nada, a não ser um obrigado reverente.

- Obrigada Peter.

O sinal ressoou e nós dois corremos para nosso próximo tempo, uma aula tediosa e longa com a senhora Ambers com trigonometria. Ao menos, eu podia contar com a ajuda de Peter no que precisava fazer: verificar a história dos Hamilton.

Havia algo que não se encaixava ali, Christian dissera-me que eram cinco sacrifícios iniciais e cinco sacrifícios finais. Mas, em 1949 foram assassinadas seis pessoas, então algo não estava certo ali. Algo havia sido enterrado e esquecido, algo crucial estava sendo deixado de lado, e era isso o que eu precisava descobrir. O que realmente houve na noite do massacre da família Hamilton.

As temperaturas ainda estavam baixas quando o período encerrou-se. Guardei minhas coisas dentro da minha bolsa e caminhei até a porta estreita da sala, esperando por Peter. Não demorou muito para que ele aparecesse.

- Não encontrei Tamara para lhe dizer que não voltaria já para casa. – murmurou ele, sacudindo algo branco e ralo dos fios desgrenhados cor de bronze do seu cabelo. Reconheci serem flocos de neve.

- Está nevando? – perguntei a ele, um pouco preocupada.

- Está sim. – respondeu-me ele, ajeitando seu casaco.

Mordi meus lábios, insatisfeita. Com tantos dias para nevar, tinha que ser logo hoje! Olhei para o fim do corredor, e meneei a cabeça, fitando a figura de Peter.

- Vamos?

Ele assentiu mudo e postou-se ao meu lado enquanto caminhávamos em direção a ala sul do prédio da escola, onde ficava a biblioteca da escola, e o laboratório de informática – eu precisaria de um computador, ou do microfilme.

Passei pela pequena porta, deparando-me com as estantes abarrotadas de livros de todas as cores. No balcão, recostada de forma despreocupada, e folheando de forma tediosa as páginas de uma revista de fofoca, estava a senhora Alisson.

Reconheci os olhos pequeninos por trás dos óculos redondos e as unhas cintilando em um vermelho vivo. Ela ainda trajava aqueles vestidos bregas com estampas florais, que lhe caíam de forma horrorosa.

Ela encarou-me, perdendo foco no que lia na revista, depois encarou Peter, os lábios torceram-se. Ela jamais superaria o meu passado rebelde de brincadeiras de mau gosto. Aproximamo-nos do balcão, encarando-a em completo silêncio.

- Posso ajudá-los? – perguntou ela em uma voz extremamente rude e anasalada.

- Precisamos utilizar o laboratório de informática. – pediu, gentilmente, Peter.

- E também precisamos de jornais antigos em microfilmes. – acrescentei.

Ela arqueou uma de suas sobrancelhas para mim, e eu reprimi o riso.

- De que ano? – ela perguntou-me.

Minha resposta foi objetiva.

- 1949 e 1950.

Ela soltou um longo suspiro.

- Os Hamilton.

A senhora Alisson virou-se, dando-nos as costas e desapareceu entre as estantes abarrotadas de livros. Peter e eu dirigimo-nos até o laboratório de informática, que se situava nos fundos da biblioteca, separado por uma pequena divisão em placas de madeira, recentemente pintadas em branco.

Acomodei-me na banqueta em frente ao leitor de microfilme, e logo eu já buscava pelas manchetes referentes ao massacre dos Hamilton, acontecido há mais de cinqüenta anos. Peter pegou uma cadeira, sentou-se ao meu lado, os olhos tão fixos na tela quanto os meus.

- Por que está procurando por isso afinal? – ele perguntou-me depois de algum tempo. Rolei mais um jornal na tela, vendo que a data já se aproximava. E respondi-lhe, ainda com os olhos grudados na tela.

- Descobrir o que realmente aconteceu naquela noite é a chave para desvendar o que está havendo hoje em South Hooksett.

- Mas, pesquisar sobre algo que já aconteceu há mais cinco décadas? Como isso pode estar relacionado?

Soltei uma risada curta, rolando outra manchete, dessa vez da véspera do crime.

- Você verá.

E logo a manchete que eu procurava surgiu na tela.

- Aqui está, “Assassinato de família choca cidade e seus moradores” – disse-lhe, lendo o título da matéria e depois, começando a ler o texto antigo -, Na noite passada, os membros da polícia local e os moradores viram-se em uma situação chocante e assustadora, cinco pessoas foram encontradas mortas em sua própria residência, um chalé, na floresta próxima à rodovia que corta South Hooksett, NH, depois de relatos de desaparecimento de seus moradores.

“As vítimas pertenciam à mesma família, os Hamilton, e todos foram assassinados da mesma maneira, entre as vítimas estão uma mulher e três crianças, dois garotos e uma menina”.

“O mais assustador, porém, é que o acusado do crime é o próprio pai e marido das vítimas, Anthony Hamilton, que segundo relatos de moradores da cidade, já possuía histórico de agressões físicas e comportamento perigoso”.

“A arma do crime foi uma velha espingarda, utilizada pelo mesmo para caçar, que depois de alvejar todos os membros da própria família, cometeu suicídio”.

Interrompi a leitura, inclinando-me para trás, Peter ao meu lado, pareceu impressionado.

- Uau, que tragédia!

Mantive-me em silêncio e rolei para a próxima matéria.

Na manchete dizia: “Polícia ainda suspeita de assassinato local, pistas sugerem o envolvimento de um segundo assassino”.

Estremeci depois de ler isso e segui para o texto logo abaixo.

- A polícia investiga o possível envolvimento de uma segunda pessoa no que está se tornando o pior crime de todo o histórico de South Hooksett, os Hamilton. Segundo indícios, Anthony Hamilton não teria agido sozinho ao assassinar os membros da própria família, a esposa, Sarah Hamilton, e os três filhos, Jullian, Patrick e Claire Hamilton. Além disso, o misterioso desaparecimento de Lílian Stewart - a sogra de Anthony, está levando a polícia a crer que uma segunda pessoa possa estar envolvida no massacre. A polícia procura pelo homem, que segundo ela, pode ter ajudado Anthony a amarrar e amordaçar a toda a família, e que possivelmente possa ter dado fim ao corpo de Lílian.

“Jeremias O’Connel está sendo procurado pela polícia, mas nenhuma pista que possa levar ao seu paradeiro foi encontrada, ele era conhecido na cidade por seu o melhor amigo de Anthony, e provavelmente seu cúmplice no crime”.

- Jeremias? – eu repeti, aturdida, nunca havia ouvido falar nesse homem, muito menos que ele poderia ter sido cúmplice no assassinato dos Hamilton.

- Isso está ficando interessante. – murmurou um Peter empolgado ao meu lado.

Rolei para a próxima matéria, lendo seu título: “Corpo de Lílian Stewart finalmente é encontrado”.

Prendi meus olhos na tela, lendo atentamente ao texto.

- Nesta manhã, o corpo desaparecido há mais de três semanas, de Lílian Stewart foi encontrado pelos policias, nas redondezas do chalé da família. O corpo foi encontrado há mais três metros de profundidade, enterrado no quintal do chalé, onde a polícia já vistoriava atrás de um possível corpo.

“Testemunhas afirmaram que Lílian estava desaparecida há mais de um mês. Os legistas confirmam que a vítima teve os lábios costurados e logo em seguida foi enterrada viva”.

“Com as buscas pelo corpo encerradas, a polícia espera poder se concentrar em procurar o homem que teria sido cúmplice de Anthony Hamilton no planejamento e execução do crime em questão”.

Rolei para a próxima manchete, minhas mãos estranhamente encontravam-se trêmulas e pegajosas e eu tive de engolir em seco para poder prosseguir.

Peter não disse nada, então ele devia estar tão perplexo e pasmado quanto eu.

E a próxima manchete dizia: Corpo de Lílian Stewart desaparece do necrotério.

Meus olhos percorreram as linhas, as letras embaralhavam-se e minha vista estava um pouco embaçada. Tive que piscar várias vezes para que aquela sensação irritante passasse.

- Menos de dois dias depois do corpo de Lílian Stewart ter sido encontrado no quintal do chalé da família, ele desapareceu misteriosamente da sala do necrotério, onde os legistas afirmam não terem visto ou ouvido nada.

“O que é realmente estranho são as pegadas que foram encontradas no local, indicando que a própria vítima teria se levantado da mesa de autópsia e deixado o prédio. Nenhuma pista mais foi encontrada, mas a polícia cogita a hipótese de Jeremias O’Connel – possível cúmplice de Anthony Hamilton - ter retornado a cidade e levado o cadáver de Lílian”.

“A cidade continua em alerta, e os moradores permanecem assustados, com a probabilidade de um assassino estar à solta e vagando livremente pela cidade”.

- Isso é loucura! – exclamou Peter ao meu lado – Quem levaria um cadáver de recordação por um crime cruel como esse?

- Um assassino cruel e sádico. – respondi-lhe, sem desgrudar meus olhos da tela onde uma foto de Lílian aparecia, ao lado do texto. Ela era uma mulher completamente comum, provavelmente beirando os cinqüenta, os cabelos eram ondulados e curtos, várias rugas despontavam de suas feições, enquanto ela sorria de forma simpática. E os trajes típicos de senhoras daquela época vestiam-na, como camisas de seda com estampas florais, e um colar de pérolas adornando seu pescoço fino e enrugado.

- Mas por que você estava pesquisando sobre isso? – perguntou-me ele, ajeitando-se no encosto da cadeira.

- E não é óbvio? – devolvi sua pergunta com outra – Tudo está relacionado, esse crime cometido há mais cinqüenta anos está conectado aos suicídios e as possessões, e a todos os desastres e desaparecimentos misteriosos que vem assolando South Hooksett. Essa maldição começou naquela noite, quando os Hamilton foram assassinados.

- Isso é sinistro... – confessou-me ele, e eu não pude evitar lhe sorrir.

- Tem razão, mas existem peças que ainda não estão se encaixando. Como o fato desse tal de Jeremias nunca ter sido encontrado, e o cadáver de Lílian ter desaparecido do necrotério.

- E agora? – perguntou-me ele, erguendo as sobrancelhas. Apoiei meu queixo em meu punho e apertei meus olhos contra a tela do microfilme.

- Precisamos descobrir o que de fato houve com Lílian Stewart, ela parece ser a chave para tudo.

- Você pode estar certa. – murmurou ele, encarando a tela com a mesma fixação e intensidade que a minha. Peter olhou o relógio em pulso e pareceu-me preocupado.

- Caramba! Não acredito que já são seis horas!

Sobressaltei-me, o tempo havia voado ali de fato.

- Já são seis horas, não acredito! – exclamei, levantando-me da banqueta e desligando a tela do microfilme. Apanhei minha mochila, pendurando-a em meu ombro.

Peter aproximou-se da grande janela, nos fundos daquele cubículo, usando os dedos abriu uma fresta na cortina de persianas e encarou o ambiente lá fora.

- Isso não é nada bom, está nevando ainda lá fora.

Não me surpreendi com seu comentário, era comum nevar naquela época do ano em New Hampshire. Eu só não podia evitar que o descontentamento aflorasse em mim, eu odiava aquela época do ano.

Peter apanhou sua bolsa também, e quando estávamos prestes a deixar o laboratório de informática, as luzes do teto falharam, piscando várias vezes, para depois apagar por completo, deixando-nos na negridão completa.

Arfei, percebendo que a luz fugira de meus olhos. Procurei algo para que pudesse apoiar-me no mesmo instante, temendo tropeçar em algum objeto.

- Peter? – eu o chamei, vendo que sua silhueta desaparecera na negridão. O ar moveu-se ao meu redor e eu gelei dos pés à cabeça, incapaz de mover um músculo sequer.

Mas, assim que ouvi sua voz, o alívio inundou-me, e eu soltei o ar que havia prendido.

- O gerador deve ter pifado.

- Eu espero que seja mesmo isso... – confessei-lhe, escorando-me através da beirada da mesa na qual me apoiava.

- Eu vou procurar pelo zelador. – murmurou ele, e em pânico pela idéia de ficar sozinha, pelo menor dos segundos que fosse, agarrei seu pulso, meus lábios entreabriram-se, eu ofeguei.

- Não, nem pense em me deixar aqui!

Mesmo no escuro, eu podia ver o sorriso projetando-se em seus lábios.

- Agatha, não vou muito longe, eu prometo.

Soltei seu pulso, ainda hesitante e permiti que ele partisse, permanecendo sozinha nos fundos da biblioteca, sem qualquer tipo de iluminação.

Procurei pela beirada da mesa novamente, agarrando-a com meus dedos. Um arrepio desceu através da minha espinha, e a sensação de não estar sozinha dominou-me.

O único som presente ali eram meus batimentos acelerados, e minha respiração entrecortada.

- Acalme-se, Agatha... – sussurrei para mim mesma, tentando impedir que o pânico me dominasse.

Aquilo não era nada. Uma simples queda de energia, uma falha do gerador. Inspirei lentamente, e aos poucos eu consegui fazer com que a razão prevalecesse sobre todos os meus temores.

Passei a mão nos fios de meu cabelo de forma nervosa, e cerrei meus olhos, mergulhando-os em uma negridão ainda mais densa e aterradora.

Foi quando o som de algo caindo no chão e produzindo um baque surdo sobressaltou-me, despertando-me de meu estado de transe e trazendo-me para uma realidade assustadora e sinistra.

Respirando dificultosamente, eu dei o primeiro passo, esgueirando-me junto à estrutura da parede, meus sentidos atentos a qualquer movimentação estranha.

Deixei que a palma de minha mão me guiasse através da escuridão, medindo cada passo, controlando cada respiração, cada movimento meu.

Quando a parede terminou, usei as estantes para continuar guiando-me, e depois eu já estava no balcão, logo na entrada da biblioteca. A pedra fria do mármore entrou em contato com minhas mãos, e eu estava preste a chegar à porta e sair dali quando senti uma presença atrás de mim.

Eu petrifiquei, fiquei completamente estática e inerte, sentindo cada músculo meu enrijecer pelo medo. Um jorro de pavor preencheu minhas veias, fazendo com que minha respiração tornasse-se mais lenta, enquanto eu virava-me vagarosamente para trás.

Meus olhos logo focalizaram uma silhueta, sendo delineada suavemente pelas sombras menos densas, destacando-se contra o fundo preto. E a confusão tingiu todo o meu semblante.

- Agatha, o que está fazendo aqui?

Arfei, completamente incapaz de fazer outra coisa.

- Tamara? – pronunciei seu nome, incrédula.

Era Tamara ali comigo, nada sobrenatural, e eu finalmente pude relaxar.

- Eu é que tenho que lhe perguntar isso. – murmurei, incapaz de esconder o meu alívio e a minha felicidade por encontrá-la ali, e não uma entidade mal intencionada que quisesse me matar.

- Eu decidi ficar estudando hoje até mais tarde para o teste de geografia amanhã – defendeu-se ela -, mas não sabia que você estaria aqui!

- Muito menos eu! – contra-ataquei, e em seguida lancei-me em sua direção, abraçando-a, o que ela certamente estranhou, aquele comportamento era completamente atípico para mim e para ela.

- O que houve afinal? – ela perguntou, parecendo-me extremamente curiosa.

- Peter e eu estávamos no laboratório quando as luzes apagaram todas de uma vez...

Só então notei que ela havia cruzado os braços, claramente emburrada por minha recente proximidade com Peter.

- Arrã, Peter, sei... – murmurou ela, e eu tive que rir, estava tão contente por tê-la encontrado ali. – Vocês dois ainda estão de segredinhos...

- Não é nada disso, boba! – tratei de tranqüilizá-la – Mas é estranho – comentei -, Peter já devia ter retornado, ele disse que ia procurar pelo zelador.

- A senhora Alisson também sumiu. – acrescentou Tamara, parecendo ansiosa.

Peguei em sua mão fria como gelo e a puxei com determinação dali.

- Venha, vamos sair logo daqui e encontrá-lo.

Ela não me contestou, e eu conseguia rebocá-la até a porta da biblioteca, estacando na soleira, completamente imóvel, os olhos esbugalhados, os lábios escancarados, e eu tremi.

- O que foi, Agatha? – sussurrou Tamara, parecendo-me preocupada.

Agindo por instinto, levei minha mão até seus lábios, tapando-os e recuei da porta, vendo a silhueta no corredor mover-se lentamente, parecia andar um pouco agachada, um pouco curvada, como um animal.

Retornei para onde as sombras predominavam com maior eficiência, ouvindo um rosnado baixo ao fundo. E passo por passo, eu recuei, mantendo Tamara próxima a mim, minhas mãos ainda cobriam seus lábios e ela assentia, não me contestando novamente, ela também sabia que havia algo de errado ali.

Retornei para a biblioteca, recuando ainda, e então me meti atrás da primeira estante que vi, sentando-me no chão, tentando ao máximo ocultar minha presença ali.

Sons de passos permearam meus ouvidos, mas não qualquer tipo de passos, pés descalços roçavam no assoalho, evidenciando a chegada de alguém.

Olhei incisivamente para Tamara, e lentamente minhas mãos deixaram seus lábios, coloquei meu indicador na frente de meus lábios, indicando a ela que houvesse o que houver, para que não gritasse. Ela assentiu, os olhos esmeraldinos cintilando na negridão, esbugalhados e tão apavorados quanto os meus.

A atmosfera tornava-se mais densa e pesada ali a cada segundo, enquanto que o invasor aproximava-se, passo por passo, parecendo estar vasculhando toda a biblioteca.

Eu mesma tive que conter um grito quando o som de um livro batendo contra o piso lustroso e escorregadio daquele local permeou meus ouvidos atentos.

Engatinhando no chão, fazendo o mínimo de barulho de possível, eu cheguei até a ponta da estante a atrevi-me a espiar, ocultando minha face nas sombras ainda.

Vi, do outro lado da biblioteca, uma figura sinistra esgueirar-se, rastejando-se um pouco, o som de seus pés nus ainda se chocavam contra o piso.

Um cheiro estranho predominava no ar. Franzi o nariz, lembrava-me de carne podre, um odor tão forte que me fez recuar no mesmo instante.

Retornei para o lado de Tamara, que permanecia completamente apavorada. O que faríamos agora? Estávamos encurraladas ali, sem saída.

Fiz um sinal com minhas mãos para que ela me seguisse, ela assentiu, os olhos verdes ainda esbugalhados.

Engatinhei pelo chão frio e liso novamente, olhando para trás, certificando-me de que Tamara estava bem atrás de mim. Porém, quando tornei a olhar para frente, congelei, incapaz até mesmo de respirar.

A criatura encontrava-se bem diante de mim, o dorso curvado, a face tombada na minha direção, os olhos dois orifícios negros, como poços sem fundo, os lábios pareciam estranhamente deformados, como se tivessem sido costurados e depois descoturados, eles recuavam sobre os dentes apodrecidos.

Mas o que realmente me apavorou foi sua pele, em um tom verde-escuro, como carne apodrecendo lentamente, exalava um forte odor, o mesmo odor que me incomodava.

Meus olhos fixaram-se nos da criatura, enquanto seus lábios estranhamente alargavam-se e ela baforava em meu rosto, um hálito gélido como o da própria morte, o sopro que poderia pôr fim a minha vida a qualquer momento.

Meu coração martelava violentamente em meu peito, lutando pela vida, impulsionando-me a fugir dali, e com o sangue sendo bombeado a toda velocidade pelo meu corpo, um jato de adrenalina preencheu minhas veias, enquanto uma voz gritava ao fundo de minha mente: mova-se, mova-se!

Levantei-me com um salto, lançando-me através da negridão, tentando desesperadamente fugir dali.

- Corra, Tamara, corra! – berrei, encaminhando-me em direção a porta.

Passei pela frente da biblioteca, mas tropecei em algo, indo ao chão. Levantei-me com um pulo, nem mesmo parando para ver no que havia tropeçado, na verdade eu já sabia do que se tratava, ou melhor, de quem... A senhora Alisson.

Lutando veemente contra as lágrimas eu consegui alcançar a porta, cruzando-a como um furacão, mas parei abruptamente ao perceber que Tamara não estava atrás de mim.

Virei-me, a respiração pesada, dificultosa, como se tudo ao meu redor estivesse fluindo de forma lenta. Mas tudo o que eu pude fazer, foi ver a porta de madeira da biblioteca fechar-se sozinha violentamente, produzindo um baque que ecoou por todo o corredor vazio e escuro.

Desesperei-me no mesmo instante, lançando meu corpo com violência contra a porta, mas estava emperrada, e não parecia querer ceder aos meus esforços.

- Tamara! – berrei, aos prantos – Tamara!

Soquei a porta com meus punhos, chutando-a desesperadamente, bati a lateral de meu corpo, mas nada parecia dar resultado. Até que ofegante e com as forças completamente extirpadas, parei.

Minha respiração arfante denunciava o meu cansaço, enquanto que as lágrimas em meu rosto, evidenciavam meu pavor e desespero.

E então, a porta abriu-se novamente, sozinha, revelando o ambiente enegrecido e inóspito da biblioteca, tudo estava silencioso, envolto nas trevas e em um silêncio mortal.

Meus pés hesitaram em cruzar a soleira, mas e se Tamara precisasse de mim?

Apenas ameacei dar o primeiro passo, quando meus ouvidos captaram o som de um rosnado baixo, mas ainda sim bestial. E depois, a criatura surgiu diante de meus olhos, movendo-se como um fantasma, pronta para me matar.

Não pensei em mais nada.

Corri, movendo-me através do corredor longo e vazio, virei à esquerda, passando através das fileiras de armários e senti um jorro de alívio preencher minhas veias quando me deparei com a porta de saída nos fundos da escola.

Passei por ela, empurrando-a com violência e saí para a tarde mortalmente gélida. O branco tingiu meus olhos no mesmo instante, ao mesmo tempo em que eu atravessava o gramado agora completamente coberto por toda aquela neve.

Corri através dele, parando apenas quando não possuía mais fôlego, ou forças para me mover.

Eu não agüentava mais correr nem mesmo um centímetro que fosse. Minhas pernas doloridas e trêmulas dobraram-se e eu fui ao chão, sentando-me em cima de toda aquela neve.

Senti a neve acumular-se em meu casaco, em meu cabelo, mas não me importei.

Porque a criatura ainda estava atrás de mim, e somente quando ela saiu para aquela tarde esbranquiçada e fria, foi que eu realmente pude reconhecê-la, embora sua aparência agora fosse muito mais assustadora e apavorante, como um zumbi ou algo parecido, as roupas ainda eram as mesmas, mesmo que aos trapos, encardidas, recobertas como uma crosta grossa de sujeira e lama. O cabelo estava estranhamente desgrenhado, repleto de folhas. Os pés encontravam-se descalços, e a pele apodrecida recoberta por mais sujeira ainda.

Aquela era Lílian Stewart! Ou pelo menos, algum dia foi Lílian. Então ninguém havia roubado seu cadáver, ela levantara-se por conta própria, retornara do mundo dos mortos, ou talvez, a verdadeira Lílian realmente estivesse morta, mas seu corpo apodrecido agora era uma casca vazia, morada de entidades maléficas, espíritos, que utilizavam seu corpo para realizar seus objetivos mais obscuros: matar e destruir.

Vi a figura apavorante curvar-se até o chão branco como papel, os lábios recuaram sobre os dentes mais uma vez, e um som doloroso aos meus ouvidos eclodiu de sua garganta, ardido, fino.

Tive que tapar meus ouvidos, enquanto via a criatura elevar-se, assumindo uma postura ereta e então se preparar para me atacar, enquanto eu permanecia completamente inerte no meio de toda aquela neve...