Capítulo IX – Possessão

“Por toda a nossa vida nós esperamos,

Por alguém para chamar de nosso líder

Todas as suas mentiras, eu não estou acreditando,

Céus, ilumine-me”.

(Evanescence – The Only One)

Dirigi-me até o grande e chamativo ônibus amarelo. Aquele seria o nosso transporte.

Era uma quarta-feira de manhã, para ser mais específica, uma nevoenta e gélida manhã de quarta-feira. A névoa densa pairava sobre o imenso estacionamento da escola, parecendo impregnar na pele de meu rosto. Tornando o ar mais denso e mais dificultoso de penetrar até os pulmões.

Inspirei profundamente, e meus pulmões encheram-se de gelo. Seriam longas horas em uma floresta fria e isolada. Por que os professores adoravam torturar-nos daquela maneira?

Marchei debaixo da fumaça branca e pegajosa, postando-me ao lado de Tamara, que estava abraçada a Bryan devido ao frio, e um Peter muito presunçoso. Vi ele sorrir assim que me viu chegar, silenciosa.

Estaquei diante do trio, tentando forçar um sorriso nos lábios. Minha insatisfação com aquela excursão não podia ser contida. Todos vestíamos roupas pesadas, naquela manhã estava realmente muito frio. Não me surpreenderia se em alguns dias começasse a nevar. Com o inverno tão próximo, era de se esperar que o tempo sofresse mudanças bruscas de temperatura.

Vi Tamara fitar-me, os cachos ruivos sendo domados pelo gorro que ela usava. Ela sorriu-me e eu apenas me limitei a assentir. Abracei-me quando um espasmo violento agitou meu corpo. Esfreguei as mãos por cima do casaco, tentando apaziguar o frio que sentia naquele instante.

- Está tão frio. – murmurei, sentindo a ardência na pele de meu rosto.

Estava começando a ventar. Vi Peter aproximar-se de mim, parecendo um pouco encabulado, e então se postando ao meu lado, ele passou um braço seu ao meu redor, puxando-me para mais perto de si. Senti o desconforto inundar-me no mesmo instante. Só percebi que ele tentava fazer o mesmo que Bryan e Tamara, que se encontravam abraçados para amenizar a sensação cortante do vento gelado, quando sua mão afagou meu braço por cima do casaco. Suspirei, como faria para sair daquela situação agora?

- Er, tudo bem, Peter, eu estou bem. – murmurei, um pouco desconcertada, enrolando de forma nervosa uma mecha de cabelo no meu dedo.

- Ei, não precisa disfarçar, - respondeu-me ele, parecendo sincero – estou oferecendo-me como amigo.

Pude ouvir Bryan dar uma risadinha, seguida por uma cotovelada de Tamara em suas costelas. Como eu havia dito, seriam longas horas.

Visualizei a figura do professor de biologia com uma prancheta nas mãos, ao que parece conferindo os nomes dos alunos na lista. Ele ajeitou os óculos redondos, fitando a turma que se amontoava próxima ao ônibus. Depois, espalmou ambas as mãos, claramente indicando que devíamos entrar no veículo.

Preparei-me para desvencilhar-me do abraço de Peter e escapulir para dentro do veículo, seguindo Tamara e Bryan, mas quando estava preste a adentrar no ônibus, algo me deteve. Instintivamente, meus olhos varreram o local ao meu redor, procurando por aquilo que havia me detido. Até que eles o encontraram.

Era Christian, recostado de forma despreocupada no tronco de um salgueiro, do outro lado do estacionamento. Senti seus olhos azuis faiscarem na minha direção. E mesmo àquela distância, eu podia jurar que um sorriso debochado havia brotado em seus lábios. Franzi o cenho e perdi a noção de todo o resto ao meu redor. Despertando apenas quando Peter cutucou-me.

- Agatha, tudo bem? – ele perguntou-me.

Fitei-o, vendo que ele parecia zangado com algo. Os olhos verdes estreitavam-se nas pontas e seu cenho estava franzido.

Automaticamente, eu tornei a fitar Christian do outro lado, e Peter seguiu meu olhar, pude ouvi-lo claramente cerrando os punhos com força.

Detive-o imediatamente, toquei seu ombro, e ele voltou a encarar-me, parecendo um pouco confuso e desconcertado.

- Vamos, precisamos ir. – murmurei, calmamente, vendo-o assentir logo em seguida. Não consegui refrear meus atos, olhei uma última vez para a silhueta despreocupada do outro lado do estacionamento, meus olhos encontraram os dele mais uma vez e uma sensação estranha apoderou-se de mim.

Um calafrio percorreu todo o meu corpo naquele instante, mas eu decidi afugentar aquela sensação ruim e entrei no ônibus. Peter entrou logo atrás de mim, e foi inevitável que ele viesse assentar-se logo ao meu lado. Preferi sentar na janela, assim poderia distrair minha mente atordoada com a viagem. Relaxei no assento, tornando meus olhos para o que estava além do vidro. E a viagem pareceu um mero borrão diante de meus olhos. As árvores, a estrada, a névoa pungente que parecia envolver a tudo, dando um toque fantasmagórico ao ambiente.

Recostei minha cabeça no vidro da janela e deixei que o tempo avançasse silenciosamente. E algumas horas depois, nós havíamos chegado, após cruzar a imensa estrutura de concreto e aço da ponte que unia as duas margens do grande rio Suncook.

O ônibus estacionou em um pequeno trecho de terra, e nós fomos obrigados a descer, andando em uma fila desordenada até uma trilha que parecia levar ao interior da floresta silenciosa e sombria. Vi-me receosa novamente, com um mau pressentimento daquela excursão.

Sacudi a cabeça, definitivamente eu estava ficando paranóica. A entrada do sobrenatural havia surtido esse efeito colateral em minha vida? A resposta óbvia e sensata era sim.

Logo, o professor – que seguia mais a frente, guiando os alunos -, estacou, e todos paramos no meio da pequena trilha, sendo ladeados por ambos os lados pelas árvores imensas como salgueiros, cedros e pinheiros.

O senhor Meyers ajeitou os óculos mais uma vez, erguendo-se nas pontas dos pés para certificar-se de que todos estávamos ali. Depois bateu as palmas das mãos, esfregando uma na outra.

- Muito bem, pessoal, direi agora qual será a tarefa de vocês que contará como sua nota mensal. Quero que se espalhem, vasculhem essa beleza natural que vem sendo preservada da ambição e ganância do homem. Em mais ou menos três horas todos devem retornar para esse ponto – disse ele, apontando para o chão com o indicador -, com pelo menos cinco amostras minerais e cinco vegetais. Fiquem atentos e observem a tudo, afinal vocês estão cercados pela mãe natureza.

Um murmúrio verberou nos segundos seguintes, permeando por toda a floresta silenciosa que nos rodeava. O professor logo exigiu a atenção dos alunos novamente.

- Vocês serão divididos em duplas e trabalharão com o tão conhecido sistema de parceiragem. As duplas foram formadas a partir de suas notas e seus desempenhos em sala de aula. Agora, quero que os nomes que forem citados por mim venham para frente para receber as instruções finais.

Senti uma pontada de desconforto. Aquela situação novamente. Eu quase não conseguia acreditar. Há quase um ano, isso resultou em algo bom, eu jamais teria conhecido Aidan se não fosse por esse sistema de parceiragem que os professores adoravam colocar-nos. Mas hoje, eu já não tinha tanta certeza de que poderia resultar em algo bom disso.

- Parece que Tamara não ficou muito contente.

Pulei, sobressaltada. Mas era apenas Peter, engraçado eu nem o havia notado ali ao meu lado. Com o coração aos pulos fitei-o, desconfiada.

- Como? – perguntei-lhe, demonstrando minha confusão.

Ele deu um meio-sorriso e depois apontou para o inicio da fila, Tamara havia sido colocada ao lado de uma garota com quem nunca falara. Ela aparentava estar bastante irritada por isso.

- Ah, entendi.

Peter deu de ombros.

- Ela ficará remoendo isso por dias.

- Ela terá que superar isso. – acrescentei e ele concordou comigo.

Conforme os alunos avançavam na fila, comecei a sentir um frio no estômago. Quem seria o meu parceiro?

- Senhorita Bryce? – chamou o professor e eu senti o gelo penetrar minhas veias naquele instante. Aproximei-me dele um tanto cambaleante e extremamente nervosa eu devo acrescentar.

O senhor Meyers olhou para a ficha que tinha em mãos e semicerrou os olhos.

- Peter Sullivan? – chamou ele.

Permaneci petrificada por um tempo indeterminado, tentando absorver as palavras dele. Minha cabeça estava um pouco confusa, como se toda aquela névoa estivesse privando-me de meu raciocínio. Peter era meu parceiro?

Meus olhos desconfiados moveram-se até a figura sorridente que estava ao meu lado. Sem dúvida ele havia gostado disso. Eu, nem tanto. Principalmente quando ele está tentando levar nossa amizade para o “outro lado”.

A voz rouca do professor despertou-me de meus devaneios.

- Muito bem, vocês tem três horas, podem explorar a mata próxima da trilha, mas não extrapolem muito e não se distanciem muito dela. Não quero que vocês se percam na mata. O.k.?

- Sim, senhor. – concordou Peter, ainda incapaz de conter a sua satisfação por isso.

Eu nem mesmo pude assentir da forma correta. Parecia mais um robô pelo modo como estava agindo. Talvez, por ainda não ter digerido muito bem essa idéia.

Aproximei-me, um tanto hesitante dele, enquanto caminhávamos pela floresta silenciosa. E ele ainda sorria.

Suspirei, não escondendo minha insatisfação com aquela situação constrangedora. Por que os professores não nos atiravam aos lobos de uma vez? Era muito mais prático e fácil de se encarar. Pelo menos para mim.

Peter andava com as mãos nos bolsos, estava ainda mais frio ali. O vento que não chegava até ali sacudia os galhos das árvores no alto. E uma fina névoa ainda predominava. Talvez a névoa não fosse tão assustadora quanto aparentava, mas o fato de que ela era acompanhada por um silêncio mortal ainda conseguia causar calafrios no meu corpo.

Estaquei, observando a mata ao meu redor. Os topos das árvores desaparecendo na névoa fina, os musgos recobrindo as rochas e os troncos grandiosos da vegetação nativa. Peter parou bem ao meu lado, seus olhos buscando o objeto de meu foco.

- Acho que podemos começar. – sugeriu ele, gentilmente, observando-me para ter certeza de que eu concordaria de forma sincera. Bem, não custava nada tentar, ou dar-lhe uma chance. Afinal, eu precisava daquela nota tanto quanto ele.

Rendi-me com um longo suspiro, sorrindo-lhe da melhor forma possível que consegui.

- Tudo bem, eu acho que podemos.

Ele sorriu em resposta e instigou-me a fazer o mesmo que ele. Logo, vasculhávamos aquela área toda à procura de amostras minerais e vegetais.

Algum tempo depois de analisar cada amostra, eu cheguei a conclusão de que bastava. Estava tão “entretida” com a tarefa que nem mesmo percebi que Peter não estava mais ao meu lado. Eu nem mesmo me lembrava de quando o havia visto pela última vez.

Senti um calafrio subir a minha espinha, e o som de um bater de asas permeou meus ouvidos, sobressaltando-me. Virei-me imediatamente para o ambiente calmo e de certa forma morto no qual encontrava-me.

Eu arfei, embora não houvesse nada, aquela sensação ruim não me deixava. Era como se meu sexto sentido já tivesse detectado perigo e agora estava alertando-me de sua presença ali, a minha espreita.

Deixei que meus olhos vasculhassem o ambiente ao meu redor. A névoa ainda conseguia toldar tudo ao meu redor, mas ela parecia mais espessa agora do que antes. O silêncio parecia ser a minha única companhia ali. Mas onde raios estava Peter?

Automaticamente soltei as pedras, os cascalhos e as plantas que havia coletado. Avancei em direção ao manto branco e pegajoso que parecia impregnar em minhas roupas. Meu coração já se encontrava aos solavancos, martelando impiedosamente em meu peito.

- Peter? – chamei-o, gritando para o nada.

Eu estava assustada, era óbvio. Ia perder a calma a qualquer instante, mas não queria me dar ao luxo de deixar que meus temores dominassem-me. Eu odiava quanto minha razão sucumbia diante de meu medo, era naquele momento que eu demonstrava o meu lado mais volátil e desequilibrado.

Continuei avançando cada vez mais, desaparecendo na cortina branca que dominava aquela floresta sombria. Ouvi passos acelerados passarem bem ao meu lado esquerdo. E depois desaparecerem no silêncio novamente.

- Quem está aí? – perguntei para o nada novamente, completamente desnorteada e apavorada.

Minhas pernas estavam bambas e eu ainda me perguntava como conseguia permanecer de pé.

Uma silhueta passou correndo por mim novamente, seus pés chocando-se contra o chão de terra e rochas, uma silhueta magra desapareceu na névoa. Minha respiração tornou-se mais densa, mais pesada. Senti-me sufocando lentamente, quando uma mão repousou em meu ombro. Com um salto eu afastei-me da pessoa, o grito que eu estivera segurando em minha garganta não saiu, permaneceu entalado. E meus olhos quase saltaram para foras das órbitas tamanho o meu susto. Virei-me para quem quer que fosse, relaxando assim que encontrei aquela figura. Ele percebeu que havia me assustado e pareceu ressentido.

Era Peter.

Levei uma das mãos até o seio, tentando conter meus batimentos, a expressão “poderia pular para fora da minha garganta a qualquer momento” não parecia tão tola agora para mim.

- Desculpe se a assustei. – sussurrou ele, realmente ressentido.

Fechei meus olhos, ainda lutando contra meu coração. Qualquer dia eu ainda sofreria um enfarte.

- Tudo bem, não foi culpa sua.

- Você está bem? Parece assustada.

Procurei uma rocha para poder me sentar, minhas pernas ainda estavam bambas.

- Você só me pegou de surpresa. – murmurei, querendo pôr um ponto final naquele assunto. Peter entendeu o que eu queria imediatamente e abriu um sorriso. Depois mostrou o que em tinha em mãos.

- Olhe, encontrei muitas amostras, acha que já é o suficiente?

- Acho que é o bastante. – concordei, querendo sair logo dali. – Ei, quanto tempo falta até o prazo acabar? – perguntei-lhe, eu realmente havia perdido a noção do tempo ali.

Parecia que dentro daquelas cortinas impenetráveis e esbranquiçadas da névoa eu havia adentrado em um outro mundo, uma dimensão paralela.

Peter olhou no pulso direito, observando o relógio e depois de alguns segundos finalmente falou:

- Falta pouco mais de meia hora. Mas, já que temos o suficiente, podemos relaxar.

- Claro. Então vamos.

Eu mal podia acreditar que estava saindo daquele inferno branco. Era pavorosa a idéia de que eu não enxergava nada nos próximos três metros e meio a minha frente.

Levantei-me da grande rocha na qual estava, fitando Peter que se virou comigo, pronto para ir embora. Porém, assim que eu o fiz, estaquei, meus olhos detiveram-se naquilo e em mais nada. Porque a alguns metros à frente, estava William Campbell.

Reconheci o cabelo louro e desgrenhado, os olhos cor de chocolate e a pele de alabastro. William jogava no time, juntamente com Peter. Mas... De certa forma, aquele não era William, aquilo não era humano.

Senti um jorro de pânico invadir minha corrente sanguínea, e cada membro do meu corpo pareceu ter sido mergulhado em um lago congelado. Os olhos de William encontravam-se esbugalhados, os lábios entreabertos, os braços colados à lateral do corpo. Mas, embora ele parecesse completamente desperto, algo nele dava-me a sensação de estar em transe, hipnotizado.

Peter soltou as amostras que carregava, parecendo preocupado. Mesmo àquela distância, eu podia ver a face de William, sua pele brilhava pelo suor. Ele suava terrivelmente, em um dia frio como aquele.

Peter ameaçou ir até ele, ver o que estava havendo com o amigo, mas eu o detive, segurei em seu braço, deixando-o confuso, enquanto seus olhos pousavam em minha face.

- Não vá até ele... – sussurrei.

Havia algo errado ali. Algo não estava certo. Eu sabia disso. Tornei a encarar a figura sombria e perturbada de William. Seus olhos pareciam perder foco, enquanto pequenos gemidos escapavam de seus lábios.

- Por favor, ajudem-me... – pediu ele, suplicante.

Peter tornou seus olhos para mim, parecendo desesperado.

- Agatha, por favor, deixe-me ajudá-lo, ele está passando mal.

Aumentei a pressão de meus dedos em seu braço, agarrando seu casaco.

- Não! – gritei – Tem algo errado com ele! Confie em mim, Peter... – pedi-lhe.

Ele pareceu relaxar, desistiu da idéia de ir até William. Porém, moveu-se para mais perto de mim, no ímpeto de proteger-me.

- A-ajudem-me... – pediu ele mais uma vez e os olhos rolaram nas órbitas.

Ele gemia incessantemente, depois seu corpo sacudiu em um espasmo violento. Ele contorceu-se, visivelmente atordoado. Mais espasmos sacudiram seu corpo, como se ele estivesse levando vários choques e de repente, sua cabeça tombou, baixando sua face até o chão, onde assim permaneceu por longos segundos.

Assustada, busquei proteção junto a Peter. Eu não sabia mais o que fazer. Senti o corpo dele enrijecer ao lado do meu, tão apavorado quanto eu, enquanto William erguia a face lentamente.

Seus olhos encontravam-se cerrados, porém, assim que olhei novamente para seu rosto, eu sabia que aquele não era mais o garoto que jogava no time, aquele não era o amigo de Peter. Aquilo não nem mesmo humano. E minhas suspeitas confirmaram-se todas, quando, muito que deliberadamente, ele abriu seus olhos, as pálpebras revelando os olhos. Ou, o que poderia ser os olhos da criatura: dois orifícios negros, como um poço sem fundo.

- Peter, temos que sair daqui! – gritei, mas já era demasiadamente tarde.

Um rosnado bestial eclodiu da garganta da criatura, ensurdecendo a mim e a Peter, fazendo-me levar as mãos aos ouvidos no mesmo instante.

Um som perturbador que ecoou por toda a floresta sombria. E a fera avançou. William lançou-se na minha direção, correndo como um míssil. Mas antes sequer que ele pudesse alcançar-me, Peter lançou-se contra ele, seus corpos chocaram-se, e então, Peter o derrubou no chão da floresta, tentando imobilizá-lo. Mas, William parecia estranhamente mais forte, debateu-se até conseguir se libertar das mãos e dos braços de Peter que estavam ao seu redor.

Peter levantou com um salto, pondo-se a minha frente novamente, enquanto a criatura rosnava, os lábios recuando sobre os dentes, os olhos negros grudados em mim. Peter lançou-se contra ele novamente, tentando acertar-lhe um soco, que foi facilmente desviado por William.

Desesperado, ele tombou a face na minha direção, ordenando a mim que fugisse:

- Agatha, fuja, saia daqui agora!

Meu corpo girou lentamente, e antes que eu pudesse deixar aquele local, pude ver muito bem quando a criatura pegou Peter com a guarda baixa, desferiu-lhe um forte golpe, nocauteando-o, derrubando-o no chão, onde ele não se mexeu mais.

Ignorei meu desespero, soterrando-o no fundo de mim mesma. O alvo da criatura estava óbvio: eu. Então se eu deixasse Peter para trás, ele ficaria bem. Era a mim que a criatura queria. Era a minha morte que ia satisfazê-la.

Lancei-me em meio à cortina densa e esbranquiçada da névoa, desaparecendo completamente nela. O fato de que eu não conseguisse enxergar para onde corria era menos um ponto a meu favor e mais um à criatura.

Embrenhei-me na mata, sentindo o jorro de adrenalina fluir por minhas veias. Aquilo só atenuou meu desespero. Sentia que a qualquer momento poderia ser devorada por meus próprios temores. Meu coração espremia-se contra meu peito, meus pulmões eram impiedosamente esmagados. E eu senti a dormência latente despertar em cada centímetro do meu corpo.

Não olhei para trás para me certificar de que a criatura continuava a me perseguir. Mas senti a dor aterradora quando meu pé enroscou-se na fenda de uma rocha, eu o prendi e por conseqüência fui ao chão, mergulhando no chão de terra.

Ofeguei, havia torcido meu tornozelo. Tratei de empurras as lágrimas de volta para meus dutos lacrimais, e levei minha mão até meu tornozelo direito. Meu osso reclamava. Devia ser uma torção séria.

Trinquei os dentes e tentei não gritar, mas de que adiantava? Eu não conseguiria correr com aquele tornozelo torcido, a criatura me encontraria de qualquer forma, então de que adiantava facilitar ou não para ela?

Ainda gemendo de dor, apoiei minhas mãos no tronco do pinheiro atrás de mim, e usei para me levantar e ficar em pé novamente. Ainda me escorando nele, escondi meu corpo atrás de sua estrutura, rezando para que a criatura não conseguisse me encontrar no meio de tanta névoa.

Avaliei os danos em meu tornozelo e gemi. Realmente eu não conseguiria apoiar o peso de meu corpo nele. Manquei até outra árvore, mas caí novamente.

Cerrei os olhos com força e desejei que alguém me encontrasse naquele instante. Que tolice, o que eu estava pensando? Se tivesse alguém que poderia salvar-me agora, seria Christian. Mas nossa relação era tão conturbada e ele era tão irritante. Que escolha eu tinha? A não ser torcer para que ele tivesse levado a sério a sua própria advertência e tivesse me seguido até ali, cobrando-me de seu agradecimento.

O quão tola eu fui, deixei-me levar por minha raiva e por meu mau gênio. Ele havia salvado a minha vida, ainda que por razões meramente egoístas, mas era inegável esse fato.

Fitei o céu acima de mim, a névoa impossibilitava que eu vislumbrasse qualquer pedaço dele. E agora eu morreria nesse inferno branco. Céus, por que isso tinha que estar acontecendo comigo? Em dez vezes que o sobrenatural fazia uma aparição, em nove eu estava presente. E de alguma forma, eu estava relacionada a todas elas.

Sobressaltei-me quando uma silhueta aproximou-se de mim, revelando-se na névoa pouco a pouco. Senti o sangue fugir do meu rosto e o pouco de oxigênio que restava em meus pulmões esvaiu-se completamente.

Reconheci ser um rapaz, que caminhava de forma despreocupada até mim, havia... Algo de familiar no modo como ele andava. Ah espere, eu já sabia quem era. Mordi meus lábios, parece que alguém havia atendido a minha prece. Era tarde demais para arrepender-me dela? Talvez.

- Christian. – murmurei seu nome de má vontade. Ele deixou que os olhos azuis vagassem pelo ambiente aterrorizante ao meu redor, depois fingiu um sorriso nos lábios.

- Encontramo-nos de novo.

- Não acho que seja tanta coincidência. – contra-ataquei.

Ele soltou uma risada baixa, ele tinha prazer em me irritar.

- Está me acusando de segui-la até aqui? - ele parecia ofendido. Hunf, cínico.

Ignorei suas provocações, e também a sensação de alívio que me apanhou naquele instante. Tê-lo por perto causou em mim um estranho sentimento de... Relutei comigo mesma para conseguir concluir esse pensamento. Mas, estando perto dele, eu sentia-me estranhamente segura.

Christian ficou em silêncio, observando a forma como eu me encontrava: caída de forma desmazelada no chão da floresta, a mão envolvendo o tornozelo direito. Qualquer um conseguiria ver que eu estava com problemas.

- Você está bem? – perguntou-me ele, parecendo realmente preocupado. Revirei os olhos de forma dramática.

- Eu pareço bem?

Ele enfiou as mãos nos bolsos do jeans e deu de ombros.

- Eu a adverti de que isso voltaria a acontecer. – ele soltou um longo suspiro – E agora como ficamos?

Christian estreitou levemente os olhos azul-escuros e ponderou por longos segundos.

- O que houve, Agatha? – fiquei surpresa ao ver como sua voz havia se tornado séria e vincada pela preocupação. Ele não estava fingindo nada dessa vez.

Senti minha máscara de indiferença desmoronar naquele momento. Ele importava-se verdadeiramente comigo.

Sacudi a cabeça, não me daria o luxo de ficar emocionada por isso. Ainda estava para encontrar uma criatura mais egoísta do que ele. E arrogante também.

- Torci meu tornozelo. – sibilei de forma seca e rude.

Ele riu novamente, para o meu desgosto.

- Isso eu estou vendo. Estou me referindo a como.

Inspirei, tentando fazer o ar chegar até meus pulmões. Toda aquela névoa ao meu redor despertava o meu lado claustrofóbico. Sentia-me um pássaro engaiolado ali.

- Longa história. – murmurei de má vontade, querendo poupá-lo dos detalhes. Ele cruzou os braços e fingiu uma expressão de tédio.

- Não gosto de histórias longas, mas pode resumi-la?

Estava preste a contra-atacar novamente, mandando ele ficar fora da minha vida, fora dos meus assuntos, quando algo me deteve. Reconheci os traços de William, correndo na névoa em minha direção. Perdi o fôlego novamente. Será que Christian ia interferir dessa vez? Ele notou meu desespero e acompanhou meu olhar até a figura raivosa que vinha em nossa direção. Um sorriso de esgar brotou em seus lábios.

- Como eu disse, você é um imã para perigos. – murmurou ele.

Assim que William tentou passar por ele para chegar diretamente a mim, Christian agarrou seu pescoço, vi-me surpresa com o modo como ele agia. Tão frio e impassível. Lembrava-me de um caçador.

Com os olhos azuis semicerrados, ele impulsionou os joelhos, movendo-se como um fantasma, e chocou o corpo da criatura no tronco de uma árvore imensa, as mãos ainda estrangulavam-no e a criatura debatia-se debaixo dele, tentando se libertar.

Christian aumentou a pressão no pescoço dele e sibilou através dos dentes trincados. Ele realmente parecia furioso.

- Diga o que você quer! – exigiu ele.

A fera rosnou novamente, debatendo-se com todas as suas forças, mas Christian foi impassível em relação ao que queria: respostas.

Notei quando ele iniciou uma conversa em uma língua completamente desconhecida para mim com a criatura furiosa.

- Virtric calapdus omeron lavier?

A criatura baixou o tom de voz, adentrando a conversa. Pisquei, atônita, mas eu não estava sonhando. Eles realmente estavam conversando entre si!

- Amerius calavar hidai psiota trinadi garer.

A criatura fez uma pequena pausa, seus olhos negros voltando-se para mim. Depois, fitou Christian que ainda mantinha as mãos em sua garganta e prosseguiu.

- Ludubrus Hirei.

Christian pareceu-me confuso naquele instante, ele piscou várias vezes, parecendo tentar absorver as palavras da criatura. Seja lá o que estivessem conversando. Depois, franzindo o cenho, voltou a encarar a figura a sua frente.

- Juris gavier? – perguntou ele, parecendo querer confirmar algo.

A criatura mostrou-se completamente convicta no que dizia.

- Hidai.

Senti uma pontada de desconfiança naquele momento. Christian pareceu vacilar por um momento. Seu aperto no pescoço da criatura afrouxou e ele a soltou. Porém, antes que a criatura sequer pudesse dizer algo mais, ele a cortou, sua voz ganhando aquele toque de frieza e ameaça.

- Loverus calamar.

A criatura pareceu conformar-se, não o contestou, voltou-se para a névoa, caminhando rumo a ela e desaparecendo logo, sumindo de minha vista no manto espesso e gélido.

Vi Christian tornar a me fitar, seus olhos procurando pelos meus. E havia algo diferente em seus olhos, uma suspeita que precisava ser confirmada.

Senti um arrepio subir pelo meu corpo enquanto ele olhava-me daquela forma tão intensa. Ele caminhou até mim, em passos decididos. Franzi o cenho, não me deixando intimidar por seu olhar incisivo e intimidador.

- O que você disse a ele? – perguntei, da forma mais clara que pude.

- Disse para deixar o corpo do garoto. Não se preocupe, o espírito não o machucará.

- Deixar o corpo? – repeti, incrédula – Você diz isso, como se fosse uma espécie de... Possessão. – a última palavra foi pronunciada de uma forma estranha, mesclava surpresa e temor.

- E era. – confirmou ele, estreitando os olhos azuis. – Parece que alguém está tentando iniciar o Wayeb por aqui. Somente nele, os espíritos conseguem atravessar a barreira entre os dois planos e possuir um corpo. E também... – ele interrompeu sua frase, parando para me fitar de uma forma estranha. Em seus olhos parecia ter brotado uma espécie de ressentimento misturado a uma tristeza interminável. Mas antes que eu pudesse sequer deduzir se realmente era isso, Christian cerrou os olhos, trincou os dentes e sacudiu a cabeça, parecendo querer conter uma lembrança dolorosa que ameaçava dominar seus pensamentos.

- Você está bem? – perguntei a ele, de forma solidária.

- Estou ótimo. – respondeu ele, prontamente, ocultando qualquer vestígio daquela tristeza imensurável em seus olhos. Ele sorriu de canto, aproximou-se mais de mim e estendeu sua mão. – Venha, eu a levarei de volta.

Encarei-o, desconfiada. Eu poderia recusar?

- Acho que prefiro ficar aqui e esperar que o espírito retorne.

Ele riu novamente, e eu soube naquele instante que ele escondia algo doloroso em seu passado. Doloroso até demais. Seus olhos não podiam mentir, eles o delatavam. Aqueles mesmos olhos tão lindos, um dia já verterem incontáveis lágrimas.

Senti uma compaixão imensa por ele naquele momento. E sorri, um pouco apenas, enquanto pegava em sua mão. Christian surpreendeu-me no mesmo instante, puxou-me em um movimento rápido, fazendo-me chocar contra o seu corpo. Ele virou-se, aconchegando-me em suas costas, agarrei seu pescoço desesperadamente, temendo ir ao chão novamente. Mas ele sorriu e segurou nas minhas pernas. Enquanto me carregava névoa adentro. Eu não o questionei, também não o contestei.

Para ser franca, eu não me atrevi a abrir a boca uma vez sequer. Permanecer tão perto dele, sentindo o cheiro de sua pele, de seus cabelos ondulados e negros...

E contive-me apenas em deixar que meus olhos vagassem ao meu redor, o pouco que a densa névoa permitia-me ver. Porém, conforme os segundos avançavam, senti-me incomodada com o silêncio. Abri a boca, mas me detive em procurar por algo que pudesse conversar com ele sem que desejasse bater em sua cabeça.

- Você... ainda não me contou a sua história. – murmurei por fim, vendo que ele sorriu com meu comentário desesperado por romper aquele silêncio.

- Não há muito que saber sobre mim. – retrucou ele – Viajo muito pelo mundo, - ele riu, interrompendo-se – na verdade, acho que já estive em cada canto desse planeta. Nunca permaneço mais do que alguns meses em um lugar específico.

- E por que veio para South Hooksett?

- Assuntos... pendentes.

Senti sua última resposta um pouco hesitante, então ele não me falaria muito de seus motivos para estar aqui. Passei para o próximo tópico.

- E por que me salvou naquela noite?

Senti-o hesitar novamente, não tomando cuidado com o que devia me falar, mas sim com o que ele poderia.

- Foi uma coincidência eu encontrá-la naquela noite. Estava passando por perto quando ouvi o som de um automóvel capotando, e senti a energia de um Devorador de Almas. Eu sabia que estavam aprontando algo, e quando vi o que eles tentavam fazer a você, interferi.

- E o que eles estavam exatamente tentando me fazer? – perguntei de forma inocente.

Ele soltou uma pequena risada baixa, parecendo se divertir com minha pergunta.

- E não é óbvio?

Deixei essa passar. E decidi prosseguir com nossa conversa.

- E então você decidiu que ia me perseguir dia e noite para me cobrar o obrigado.

- Exatamente. – Descarado, ele concordou!

- Mas chega de falarmos de mim - interrompeu ele –, vamos falar de você.

Revirei os olhos novamente.

- Ah, que ótimo! O que em mim pode interessar você? – perguntei de forma despreocupada.

Ele riu suavemente, fazendo pouco caso de meu interesse em conversar sobre a minha vida.

- Digamos que muita coisa, por exemplo, como uma garota como você pode portar uma jóia como o Terceiro Olho?

- Simples, foi um presente de... – de repente, as palavras sumiram, percebendo que eu estava tocando naquele assunto doloroso novamente: a partida de Aidan. – de uma pessoa.

Ele riu novamente, interrompendo-me.

- E que tipo de caçador daria uma jóia como essa de presente para uma humana? Sim, porque apenas os caçadores de Sillentya portam essa jóia. – concluiu ele. – E então, qual era o nome dele?

De repente, tive medo de expor Aidan, ainda mais para um completo estranho como Christian. O que eu sabia dele? Quase nada. Além do que ele havia me dito.

- Não vou contar a você.

- Ah claro! Você quer protegê-lo. Entendi.

Fiquei grata por ele não insistir naquele assunto. Ainda doía lembrar a forma como ele partiu, deixando-me com seu adereço para que eu pudesse me proteger de qualquer Mediador. Estranho que eu permitisse que um me carregasse em suas costas de forma completamente constrangedora agora. Eu sabia o que estava fazendo, sabia perfeitamente onde estava me metendo, mas que opção eu tinha? Eu precisava romper a promessa que havia feito a Aidan e precisava buscar auxílio e proteção em um Mediador. Ainda que seu passado e origem fossem um completo enigma para mim.

- Mas e então... – falou ele, exigindo minha atenção novamente – Como exatamente você se meteu nessa situação?

- Começou no inicio do ano, um caçador chegou aqui para cuidar de um desertor. O problema era que o desertor já estava no meu encalço e esse caçador não teve escolha senão me proteger. Mas, mesmo depois dele ter sido detido, há algo estranho pairando sobre South Hooksett e agora alguém está tentando iniciar o Wayeb.

- Você está certa quanto isso. Realmente há alguém por trás disso. E há muito mais também, obviamente.

- Como o quê? – perguntei, mas de inicio não houve resposta, pensei que Christian não ia responder minha pergunta, mas ele surpreendeu-me novamente.

- Você. – ele confessou – Não consigo entender como você pode se encaixar nisso tudo. Mas tudo que sei, é que sua presença e seu... sacrifício é crucial para o ritual do Wayeb.

- Meu sacrifício? – repeti, apavorada.

- Foi isso o que o espírito que possuiu aquele garoto me disse. Ele disse que você era a chave para o Wayeb. Mas sinceramente, não consigo conciliar ambos os fatos.

- Nem eu. – acrescentei, confusa.

Eu queria contar mais a Christian, sobre meu passado, meus sonhos com meu pai e as Sete Tristezas, minha marca de nascença e principalmente, sobre Aidan. Mas eu não tinha certeza do quanto Christian era confiável. E se ele não fosse quem dizia ser? E se ele fosse... Não queria pensar nessa possibilidade, mas e se ele fosse mau? Se tudo o que ele realmente estava querendo naquele momento era ganhar minha confiança para depois me atrair para uma armadilha?

Aidan dissera-me, nenhum deles era digno de confiança. Nenhum deles merecia ter a minha confiança. Eu devia realmente seguir seu conselho? Parecia tão errado que eu fizesse esse tipo de julgamento dele, mas eu precisava ter certeza de quem ele era, qual era a sua origem e principalmente, se ele realmente poderia ser confiável.

Logo, ouvi murmúrios e um coro de vozes. Principalmente do professor de biologia. Parecia que o senhor Meyers estava iniciando uma busca para me encontrar.

Lentamente a névoa permitiu que eu visse a multidão de alunos, recebendo instruções do professor. Vi Peter, com um corte fundo na testa, olhar-me assustado assim que entrei em seu campo de visão. Ele chamou meu nome, franzindo o cenho assim que viu quem me carregava: Christian.

- Agatha?

Depois, ele corria até nós dois, estacando a uma boa distância, estava óbvia a sua opinião a respeito de meu salvador.

- Você está bem?

Assenti, muda e em seguida deixei que meus olhos pousassem na face de cada estudante ali. Todos me encaravam de uma forma estranha, e mais estranha ainda, era a forma como encaravam Christian. Finalmente, voltei meus olhos para Peter que ainda permanecia emburrado.

- E você como está?

Ele deu de ombros, por nenhum segundo olhando nos olhos de meu salvador, acho que ele preferiu simplesmente ignorá-lo. Era melhor do que arrumar confusão, eu tinha que admitir.

- Estou bem, - respondeu-me ele – só um corte na testa.

- Lamento por isso. – sussurrei, de forma sincera.

Ele abriu-me um sorriso no mesmo instante, demonstrando não dar a mínima para o que havia acontecido.

- Lamenta o quê?

Fui arrancada de minha conversa com Peter, quando o Senhor Meyers veio até nós três, averiguando o fato de que eu estava nas costas de um rapaz, e visivelmente impossibilitada de andar.

Ele ajeitou os óculos redondos na ponte do nariz e sua voz pareceu soou preocupada.

- Está tudo bem, Agatha?

Fiz que sim com a cabeça, mas depois decidi complementar:

- Perdi-me de meu parceiro na floresta e acabei por torcer meu tornozelo. Não consigo apoiar-me nesse pé agora.

O senhor Meyers encarou meu tornozelo direito, porém, antes mesmo que ele pudesse examinar-me, Christian sorriu de canto, depois, com um movimento abrupto, tirou-me de suas costas, passando-me para a frente de seu corpo. Permaneci agarrada a seu pescoço, temendo que ele deixasse meu corpo tombar no chão a qualquer momento. Mas, algo eu precisava admitir, as chances disso acontecer eram bem remotas.

Fitei os olhos azuis como lápis dele, que não escondiam a satisfação por me deixar sem graça daquele jeito, principalmente na frente da turma inteira.

O senhor Meyers encarou Christian pela primeira vez, então, parecendo ter se deparado com um ser muito mais superior e poderoso, ele afastou-se alguns passos. Por que todos reagiam daquela maneira na presença dele? Será que essa sua aura ameaçadora de poder só não funcionava comigo?

- E você, rapaz, quem é? – perguntou o professor um pouco relutante.

Christian não pôde deixar de abrir seu típico sorriso zombeteiro, gabando-se internamente.

- Estava passando por perto, quando a vi, completamente indefesa e incapaz de andar. Foi muita sorte mesmo. Ou, você pode chamar de destino. – essa última frase foi dirigida com uma piscadela.

Revirei os olhos, sorte era definitivamente o que eu não tinha.

- Muito obrigada, meu jovem. – agradeceu o senhor Meyers condescendente, mas ao mesmo tempo, desejando que Christian desse o fora dali o mais rápido possível.

Peter aproximou-se de mim, batendo de frente com Christian, ele parecia realmente furioso e disposto a iniciar uma briga ali mesmo. Sua voz foi fria e cortante ao falar com Christian.

- Eu posso cuidar dela agora.

- Claro que pode. – concordou Christian, com um toque de escárnio na voz. O clima ali estava ficando tenso. Peter estendeu os braços para mim e muito que deliberadamente – e hesitante – Christian entregou-me para os braços dele.

E eu fui passada de um colo a outro, como uma criança birrenta que não se cala nos braços de um e vai para o outro.

Só que eu era a madura ali e eles as crianças birrentas.

Peter aconchegou-me em seus braços e eu me senti constrangida por aquela situação. Novamente a sensação irritante de parecer aquelas princesinhas de contos de fadas apanhou-me, revirando algo no meu estômago.

Porém, antes mesmo que Peter deixasse aquele ambiente, comigo em seus braços, vi o senhor Meyers aproximar-se de nós dois. Ele ergueu a barra de minha calça jeans, avaliando os danos. Depois, arrumou os óculos novamente.

- É, realmente está inchando. Precisamos levá-la para um hospital, parece uma torção séria.

Argh, Pensei comigo mesma, hospital de novo não!

Suspirei, completamente desolada. Existiam horas que a presença do sobrenatural na minha vida irritava-me profundamente.

- Vamos então. – concordou Peter, já se preparando para partir e levar-me de volta ao aconchego do ônibus. Pelo menos, estaria mais quente lá dentro.

Porém, lembrei-me de que precisava fazer algo. Segurei no braço de Peter, fitando seus olhos esmeraldinos.

- Espere, Peter. – pedi-lhe de forma gentil e suplicante. Tornei meus olhos para a figura de Christian uma última vez, ele havia relaxado a postura, estava com as mãos nos bolsos e parecia um pouco distraído.

- Christian? – chamei-o, recebendo seu olhar penetrante no mesmo instante.

- Sim?

Eu me sentia uma tola fazendo aquilo. Mas, que mal havia? Ele havia me salvado três vezes. Eu precisava pôr um fim naquilo logo.

- Eu só queria... Bem, eu só queria agrade...

- Não, não faça isso. – interrompeu-me ele, abrindo um largo e... Lindo sorriso.

Deixei que a confusão tingisse meu semblante naquele momento.

- O quê?

- Não me agradeça, Agatha, pelo menos, não ainda. – respondeu ele de forma tranqüila.

- E por quê não?

Ele desviou os olhos, fitando a névoa densa que ainda nos rodeava. Depois, tornou a fitar-me, e pela primeira vez, ele pareceu-me completamente sincero no que dizia.

Christian mostrava um lado seu agora, que eu não havia visto. Um lado doce e gentil. E muito cativante, eu devo confessar.

- Não quero que nosso único elo seja rompido agora. Se você me agradecer, estará cortando ele. E, Agatha, eu não quero que isso aconteça, pelo menos, por enquanto.

Christian era mesmo uma figura. Ele despediu-se de mim com uma piscadela e lançou um olhar debochado para Peter, que não passou despercebido.

Peter carregou-me até o ônibus, cercando-me de cuidados – desnecessários, eu devo admitir – e ao fim da viagem, eu já havia compreendido um pouco dos mistérios que rondavam a vida de Christian. Embora ainda faltassem muitos para serem solucionados e desenterrados.

Mas, apenas dentro do ônibus, eu me toquei de algo. Onde estava William, o garoto que fora possuído? Tornei meus olhos para a figura de Peter, bem ao meu lado. E o chamei:

- Peter?

- O que foi?

- Onde está William? – perguntei da forma mais decidida que pude. Mas, ainda assim, era possível notar o temor em minha voz. Peter pareceu-me objetivo e categórico ao responder-me.

- Nos fundos do ônibus, dormindo.

Deixei que a confusão atravessasse todo o meu rosto.

- Como é que é? – repeti, completamente incrédula.

- Ele foi encontrado algum tempo depois que você sumiu, vagando pela floresta, sem rumo e sem se lembrar de nada, nem de como havia ido parar lá. Ele estava bastante abatido.

- Mas e você? – perguntei, demonstrando preocupação.

- Eu fiquei inconsciente só por alguns minutos, quando acordei você havia sumido. Eu voltei para o ônibus, na esperança de encontrá-la lá, mas como você estava desaparecida há muito tempo, o professor resolveu organizar uma equipe de busca para você. Mas, pelo que vejo, não foi necessário, você estava bem.

- Christian encontrou-me na floresta. – defendi-o com veemência. Peter trincou os dentes e cerrou os punhos, parecendo-me furioso.

- Não engulo essa história dele.

- Mas é a verdade. – contra-ataquei.

- Pode até ser, Agatha, mas eu sei que você está escondendo algo de mim, e de Tamara também. Eu não sei exatamente o que é, mas posso garantir que não descansarei até que você me conte tudo.

Senti-me acuada naquele momento. O que devia fazer? Mentir parecia a opção mais louvável.

- Não sei do que está falando.

- Ah não? E como explica o fato de saber que havia algo de errado com William? E ele foi atrás de você, Agatha. É isso o que eu não consigo entender, assim como não entendo porque Becki cometeu suicídio na sua frente e como seu carro capotou na mesma noite.

- Foram fatalidades. – rebati, nervosa.

- Seja lá o que for, Agatha, uma hora ou outra, você acabará me contando a verdade e abrindo o jogo.

- Não sei se concordo.

Ele pegou em minhas mãos, entrelaçando seus dedos aos meus. Perdi o fio do pensamento, e tentei em vão libertar meus dedos, mas Peter discordou de mim. E lançando seus olhos verdes e brilhantes até os meus, ele relaxou a postura, diminuiu sua voz para um fraco sussurro e finalmente falou:

- Eu já lhe disse antes e volto a repetir, estou do seu lado, Agatha, aconteça o que acontecer. Você sempre poderá contar comigo, como amigo, ou mais, se for da sua vontade. Posso ser seu confidente, seu parceiro, mas, por favor, prometa que não mentirá mais para mim.

Hesitei depois de ouvir seu discurso. Peter sabia que havia algo errado ali naquela história. Ele também não parecia disposto a abrir mão de saber da verdade. Então, franzindo o cenho, decidi-me, afinal.

- Eu prometo. Não mentirei mais para você.