03/10/2023

Complexo dos Vingadores, NY

16:11

A operação “Assalto no Tempo” ainda não estava pronta.

Enquanto cérebros mais capacitados se empenhavam em construir uma máquina, que mais parecia um palco com pequenos espelhos acima, Pietro se ocupava em ajudar aqui e ali, conhecendo cada um da equipe. Trouxera pouco para o Complexo, apenas roupas e… a tiara que pretendia devolver a Wanda, quando tudo enfim acabasse.

E ele como já desenvolvera certo relação com Natasha e Steve, então agora conversava com o guaxinim do espaço; Scott Lang, o tal Homem Formiga; Thor, Hulk,Rhodes, Nebula e até mesmo… Tony Stark.

Pietro não falava muito com Stark, não mais do que coisas banais e relacionadas ao trabalho que estavam fazendo. Com Banner, era a mesma coisa. Pensou que a situação seria mais caótica com os dois, mas… Não. Era uma dinâmica estranha e parecia funcionar. Tinha que funcionar.

O Instituto Xavier não foi avisado sobre aquela arriscada missão, nem mesmo a general de Wakanda, Okoye, e sua rainha Ramonda. Existia sim a possibilidade de tudo dar errado ou ainda piorar a situação, dessa forma era consenso que não era necessário dar falsas esperanças ou sólidas paranoias aos outros. As únicas além de Pietro que souberam o que eles faziam foram Psylocke e Mística, duas mutantes discretas… E que prometeram ficar em silêncio depois de Erik Lensherr fazer aquela sua expressão severa ao narrar o plano.

No Complexo dos Vingadores, Magneto ajudava a posicionar peças metálicas estupidamente grandes na estrutura, aguentando não só o imenso peso delas quanto as piadas tolas na voz rouca de Rocket. Era um senso de humor pior do que de Pietro, que por sua vez adorava ter uma companhia tão ruim. O jovem sokoviano partiria naquela tarde para uma missão particular e deveras importante:

Trazer Clint Barton de volta para o time.

Romanoff já havia descoberto seu paradeiro. Desaparecido desde o estalo de Thanos, ao que tudo indicava o vingador estava… em casa, ou melhor, na sua fazenda. Talvez tivesse se mudado durante esse intervalo de anos, embora fosse impossível saber com certeza o que tinha feito nesse tempo todo. E é claro que Natasha queria acompanhá-lo naquela breve viagem, no entanto seria simplesmente mais rápido se Mercúrio fosse sozinho. Desta forma, ela permaneceu acompanhando o desenvolvimento da Máquina do tempo, não raramente com Ebony no colo. Ela dissera que o bichano lembrava o seu próprio gato Liho, também desaparecido há cinco anos.

No pátio interno do Complexo, Pietro se alongava e o resto trabalhava ao fundo. O jovem vestia seu traje especial azul, que absorvia o atrito de suas pernas sem rasgar, e tênis capacitados a aguentar o impacto e a velocidade. E bem, ele gostou muito dos novos fones sem fio que Stark desenvolveu e lhe deu, cujo som poderia também seguir o mesmo ritmo que seus pés. Era uma boa adição ao equipamento… E quase um pedido de desculpas frouxo do engenheiro.

Pietro pôde aceitar isso. O Homem de Ferro seria o responsável por trazer sua irmã de volta, então estava disposto a deixar o ressentimento para trás. Havia muito mais em jogo.

— Leve isso, querido. — Natalya se aproximou. Tinha ficado depois de trazer Pietro e Erik através de magia para apoiar a equipe inteira, além de oferecer conhecimento místico sobre as Jóias do Infinito. No fundo, Pietro suspeitava que ela também estava ali por causa de Erik, mas deixou o pensamento passar. Apenas pegou os pacotinhos de barras de cereais que ela lhe ofereceu e guardou num compartimento num cinto sobre o quadril da roupa. — Vai ser uma longa viagem.

— Nada que eu não consiga fazer.

— Eu sei. Só não quero que passe fome no caminho.

Pietro lhe ofereceu um sorriso.

— Se preocupe mais em não deixar o Ebony quebrar alguma coisa importante. — O gato, sempre perto de sua tia, miou em protesto. — Embora eu fosse me preocupar mais com o mau humor do meu pai.

Ouviu-se um resmungo indistinto ao fundo, um ressoar metálico de alguma peça. Magneto tinha se distraído com o comentário do filho, quase deixando cair uma estrutura que sustentava no ar. Mais exclamações preocupadas explodiram dali, vindo de Scott e principalmente de Tony, talvez já suando apenas pela possibilidade de quebrar uma peça de milhões de dólares.

Natalya conteve sua gargalhada.

— Pode deixar que sei lidar com os humores dele.

O sorriso do jovem se alargou numa expressão ladina, sua sobrancelha arqueada.

— Ah, disso eu sei…

— Pietro! — Natalya lhe censurou, empurrando-o de leve.

— Volto logo.

Ele só deu um beijo na bochecha da tia e partiu num borrão azul e prata.

* * *

A poeira do terreno subiu quando Pietro enfim parou na fazenda Barton em Waverly, no estado de Iowa. Após uma viagem que durou algumas músicas no seu fone de ouvido, ele se curvou para se apoiar sobre os joelhos, recuperando o fôlego. As barrinhas de cereais tinham sido úteis no meio do caminho, tamanho era seu gasto energético e fome. Após inspirar e expirar dúzias de vezes, ele enfim se sentiu preparado para procurar o homem que tinha vindo ver, o Gavião Arqueiro.

Não era difícil imaginar o porquê ele tinha se recolhido ali, feito uma ave ferida que busca o ninho. Ali era o seu lar, não? Pietro sabia que Clint tinha família. Tivera. Uma esposa e três filhos, uma menina e dois meninos. E todos tinham virado cinzas, assim como a irmã de Pietro. Ele encarou a casa, o celeiro, a mesa de madeira ao ar livre… Apesar do vento, o pó e as teias cobriam objetos de jardinagem e um trator estacionado ali perto. Os rolos de feno à esquerda, junto com alvos de arquearia, pareciam estar ali há muito tempo e o campo de milho atrás necessitava de rega urgentemente. Poderia pensar que o local estava abandonado por definitivo… Até que ouviu um latido.

Virou o torso para encontrar a origem do som.

Era um cachorro grande, de pelo longo e loiro. Um labrador, muito amigável por sinal. Veio ao seu encontro com a língua para fora, cheirando-o e tentando lambe-lo. Pietro ajoelhou-se para agradar sua cabeça felpuda, perguntou o que aquele garoto bonzinho estava fazendo ali e tentou adivinhar seu nome. Quem respondeu foi uma voz distante e áspera.

— Lucky? Lucky, seu tonto. — A voz ficou mais perto. Vinha dos fundos da casa, num ritmo folgado e irritado. — Onde você tá?

Enfim, uma figura conhecida apareceu e o olhar dos dois se cruzou. Clint Barton estava lá, de regata e diferente do homem que Pietro conhecera. Tinha tatuagens no braço, um corte de cabelo ousado, quase um moicano. Também estava usando aparelhos auditivos, consequência do que o jovem imaginava ser o cotidiano do herói em presenciar explosões e tiros. Mal sabia Pietro que na realidade os problemas auditivos do outro datavam de golpes duros da infância. Mas, apesar da postura impassível, o rosto do Gavião Arqueiro estava lívido.

O velocista ficou de pé.

— Hey.

Pietro.

— Não me olhe assim. Você já sabia que… Que eu estava de volta. — Ele tinha que saber. Logo em 2020, três anos antes, Natasha havia lhe mandado uma mensagem por áudio, contando o que tinha acontecido e quem estava de volta. Existia apenas a notificação de que a mensagem havia sido recebida e ouvida, de resto silêncio. Pietro sorriu, tentando se livrar do ar desconfortável entre os dois, coisa que o cachorro ignorava completamente. — Não pode dizer que não viu isso chegando.

Clint apenas de um passo fraco para trás.

— Não parecia real. Nada pareceu real desde…

— É, eu sei.

Ambos sabiam desde o que. Desde quem. Thanos, mais aliens, Joias com poderes absurdos.O silêncio seco preencheu a quietude. Pietro havia pensado em inúmeras formas de seguir com a conversa antes de vir e em todas elas o desenrolar do assunto parecia mais fácil, mais leve. Tão distante da realidade. Ao fim, o arqueiro sacudiu a cabeça e o convidou para tomar algo, pois o jovem parecia afoito e Clint já ia comer alguma coisa naquele momento.

Pietro não esperava o refrigerante e a pizza fria na mesa da varanda; talvez houvesse alguma cerveja, cigarro e alguma outra porcaria em algum lugar dentro da casa bagunçada. Ou não…

Não recusou, porém. Comeu logo duas fatias enquanto Barton despejava mais ração no pote de Lucky ali perto, mas seu olhar deve ter sido intrigado o suficiente para que o mais velho sentisse necessidade de se explicar:

— Ontem foi sexta-feira. — Deu de ombros, tomou mais um gole de refri. Depois se sentou.— Era o dia de pizza aqui em casa, sabe? Tradição.

— Um excelente tipo de tradição. — Recordou-se dos shabats, embora não comesse pizza neles. — Talvez meu pai tenha algo a aprender com você.

Mais quietude. Não era simples conversar com o Gavião, não depois de tanto tempo e lá estavam ambos sentados em móveis de madeira na varanda, apreciando a visão nada agradável de um campo de milho seco. Queria perguntar sobre as suas tatuagens, sobre seu cabelo engraçado e o que afinal ele tinha feito nesses anos todos, fora do radar dos Vingadores e pior, fora do radar de Natasha, sua melhor amiga. Existiam alguns boatos de um estranho nômade perseguindo bandidos que ainda se aproveitavam do povo, no entanto não havia como confirmar se o Gavião Arqueiro e esse estranho, apelidado de Ronin, eram a mesma pessoa. Só sabiam que ele apareceu após o estalo, atuou aqui e ali, parou na Ásia e de repente desapareceu tão súbito quanto surgiu. Nos meses seguintes, Romanoff identificou atividade na fazenda Barton.

— Natasha estava preocupada com você. — Disse, sem mencionar todos os seus pensamentos. — Todos estavam.

— Depois do estalo, eu… Eu fui atrás do meu irmão.

— Você tem um irmão?

Clint terminou de mastigar o próprio pedaço de pizza antes de responder.

— É. Tive. — Suspirou. — Eu também tentei encontrar minha aprendiz, uma moça pouco mais velha que a minha filha. Kate Bishop. Eu disse uma vez que Wanda se daria bem com ela.

Pietro anuiu em silêncio antes de comentar:

— Me disseram que Wanda esteve aqui.

— Várias vezes. A primeira foi em… 2017, se não me engano. Logo quando ela descobriu essa loucura toda do pai de vocês e Outer Heaven foi lançada no ar. Minha esposa adorava quando ela vinha e Cooper e Lila pediam toda hora pra ela mostrar algum truque de magia. — Uma pausa. Os olhos claros de Clint viajavam à memórias antigas, à risos que ele já não mais ouvia, até que ele piscou, retornando à realidade. — Quando você voltou e descobriu sobre ela… Sobre essa merda inteira que o mundo está, o que você fez?

— Surtei. — Disse, simples e sincero. — Eu não deveria estar aqui, vivo, e no fim estou, sem a minha irmã. Meti alguns socos no Steve. Sai correndo. Chorei igual um desgraçado.

— Hmf, é a sua cara. Eu… Fiz algo semelhante.

— Você não parece fazer o tipo que chora.

— Ah, — Ele soltou uma exclamação genuína e amarga. — Mas eu chorei. E sai por aí, tentando encontrar sentido em alguma coisa. Não encontrei o Barney, nem a Kate.

Apesar da tensão do momento, Pietro não pôde deixar de questionar:

— Seu irmão se chama Barney?

Charlie Bernard Barton. — Clint lhe deu meio sorriso. Não era a primeira pessoa a achar o apelido, no mínimo, inusitado. — Mas só chamavam ele de Barney. Pegou.

— E então… Por que não voltou para os Vingadores depois?

— Porque eu também surtei. — Um longo suspiro. — Descontei em alguns bandidos. Na real, em muita gente.

— Eu… — Pietro coçou a barba que começava a crescer. — Ouvi dizer.

Então era verdade. O Gavião Arqueiro havia feito coisas pesadas até enfim voltar a fazenda, assumindo a identidade de Ronin. Vários focos de eliminação completa de gangues foram identificados pela polícia e pelos Vingadores, a última chacina em Tóquio.

— Ainda acha que vale a pena conversar comigo? — Clint relaxou os ombros, resoluto com o horror em suas costas. — Não sou mais o herói que costumava ser, garoto.

— Estou conversando com um amigo. Isso basta.

O arqueiro desviou o assunto:

— Wanda não gostava de pepperoni. Você gosta?

— Não.

Gêmeos.

Os dois riram um pouco.

— E Lucky? Qual é a história dele?

— Adotei no final de 2016. Um bobão. — Ele fez sinal para o cachorro, que prontamente correu até colocar as patas em seu colo. Arfava de um jeito animado, sem bem entender o diálogo melancólico que se arrastava entre os dois. Clint coçou as orelhas do cão, suspirou de novo. Sua voz estava vazia. — O único que não virou pó.

— Clint, eu… — A garganta de Pietro estava seca. Não existiam palavras certas para aquele momento, nenhuma frase que lhe servisse de consolo. Claro que não. E Pietro sabia disso porque tinha perdido mais do que se achava capaz de suportar perder. — Eu sinto muito.

O arqueiro soltou o cachorro e manteve a cabeça baixa por alguns segundos. Pareceram horas para Pietro, milênios sem resposta e sem ação. Então Clint endireitou a postura e lhe encarou, vulnerável, destruído e franco:

— Sabe que eu dei o segundo nome do meu filho de Pietro, não? Porra, eu… — Passou as mãos na cabeça num gesto nervoso, incapaz de se desviar das lembranças. — Eu vi você morrer, sabe-se lá com quantas balas no corpo.

Pietro absorveu as afirmações com cuidado. Saber que Clint havia feito uma homenagem ao seu nome era uma coisa, ouvir diretamente da sua boca era algo diferente. Ele empurrou de leve o prato acima da mesa, brincou com o copo enquanto o silêncio falava por si. Clint se sentia culpado pelo o que tinha acontecido com ele em Sokovia, isso era óbvio e tolo. O arqueiro não tinha culpa de existirem robôs em Novi Grad querendo matar a todos e não podia se culpar também por salvar a vida de um menino sokoviano. Se sacrificar pelos dois tinha sido uma escolha consciente de Pietro. Não se arrependia disso.

E, ainda assim, lhe desconcertava ver que ele era importante para Clint Barton. Um fantasma, um rapaz que não merecia tudo o que lhe aconteceu. Uma lembrança ambulante. Seus devaneios foram quebrados pela pergunta dele:

— Doeu?

— Eu senti as balas, mas… Não me lembro de mais nada. — Deu de ombros. — Reviver, por outro lado, doeu mais. Respirar queimava.

— Caralho. — Clint sacudiu a cabeça. — Tô te perguntando isso porque...

— Porque quer saber se eles sentiram. — Pietro concluiu e o outro confirmou com um aceno, o rosto desprovido de qualquer emoção. O questionamento era válido… Não se sabia ao certo o que as pessoas desintegradas sentiram no momento em que se foram. Não existia uma resposta, mas ele se esforçou para falar o que pensava: — Acho que não. Meu pai disse que… Disse que só quem tinha algum poder sentiu algo estranho antes. Algo prestes a acontecer. E de repente... Nada.

— É… — Ele voltou o rosto para o vazio. — Nada.

— Clint. Você recebeu outra mensagem do Complexo. Entende que estou aqui por um motivo.

— Já aconteceu muita desgraça, garoto. Eu só… — Ele se levantou, sem conseguir terminar sua frase imediatamente. O cachorro acompanhou seus movimentos com o rabo abanando, já Pietro aguardava com estranha paciência. — Porra, eu não sei se tem como piorar as coisas, mas eu não queria… Você sabe.

Clint não queria sofrer mais.

— Eu sei.

Ele se apoiou nos balaustrada da varanda, inspirou fundo e riu de sua própria situação.

— Eu comecei esse trabalho achando que poderia melhorar alguma coisa no mundo. Deixei dele exatamente porque nada adiantou. E no fim? — Virou o torso. — Eles estão todos mortos, Pietro. E não sabemos se toda essa história vai dar certo. Eu não… Eu não aguentaria falhar de novo.

Foi a vez de Pietro se levantar.

— É uma chance. Talvez a única.

— Não. — Clint sacudiu a cabeça de leve. — Não me dê esperança.

— Eu não estou te dando esperança. Tô te dando uma opção. Nós vamos seguir com o plano, independente do que aconteça com a gente. — Riu. — É claro que tentaremos não morrer, mas você entendeu. A questão é: Você vem junto?

Silêncio. Clint passou a mão no rosto, no cabelo.

— Só se puder levar o Lucky.

O riso do jovem sokoviano foi sincero.

— Espero que ele não tenha problemas com gatos.

* * *

Os olhos totalmente negros de Nebula observavam Ebony e Lucky brincando na parte externa do Complexo dos Vingadores. Parecia uma atividade estranha para a andróide que todos julgavam sem coração, mas era agradável ver os dois animais perseguirem um ao outro sem realmente se machucarem de propósito.

A comparação era imprópria, mas ela se recordava da infância nada feliz dela e de Gamora. Ela se feriam porque eram obrigadas e, a cada derrota, uma parte de Nebula era removida, modificada e trocada. Era praticamente sempre ela que perdia e chegou a um ponto que ela notou que seu pai gostava de vê-la sofrer.

O pior, no entanto, era encarar sua irmã e não encontrar quase nada.

Quando Gamora sumiu para se juntar aos autoproclamados Guardiões da Galáxia e o caminho das duas se cruzou novamente, foi patético ver o horror estampado no rosto de sua irmã. Ela sentiu aversão, pena e raiva ao ver a irmã androide reduzida a uma máquina movida a ódio, mas o que ela tinha feito todos aqueles anos para amenizar a situação? Nada. Hoje, Nebula compreendia que ambas eram vítimas, por mais que algo dentro dela ainda quisesse que sua irmã tivesse lhe oferecido a mão enquanto ainda eram crianças.

Adiantava refletir sobre isso agora? Não. No final de tudo, somente Nebula sobrevivera para contar o triste legado dos Filhos de Thanos.

Pensou no rosto da irmã e na ocasião em que ela pedira para ficarem juntas.

Deveria ter ficado.

Deveria ter ficado.

Deveria ter ficado.

Deveria ter ficado.

A mesma sentença passava de novo e de novo em seus circuitos.

Em breve, eles executariam o plano e voltariam no tempo. Nebula faria o seu máximo para que toda aquela miséria não fosse uma dor sem sentido.

Voltou a encarar o gato e o cão se perseguirem à esmo sem parar, e de novo o rosto esverdeado de sua irmã invadiu seus neurônios sintéticos. Mesmo com peças mecânicas e sem vida dentro de seu corpo, o sentimento dentro dela era bem vivo e orgânico:

Saudades.

* * *

Natasha sorria com as idiotices que aconteciam dentro do Complexo dos Vingadores. O local estava cheio como não ficava em anos e os pedidos de comida pronta eram cada vez maiores, sem falar na playlist aleatória de Pietro que costumava tocar no sistema de som ou na bagunça que Lucky e Ebony aprontavam. Outer Heaven, por motivos de segurança, foi removida para quilômetros de distância. Pairava o espaço aéreo de outra cidade, a fim de não sofrer quaisquer danos que o “Assalto no Tempo” e as Joias do Infinito pudesse causar.

Tony, Steve, Thor, Banner, Rhodes e ela, somados a Lang, Nebula. Rocket, Natalya, Erik Lensherr e Pietro. Um time extenso e que poderia ter sido ainda maior com o Instituto Xavier, Wakanda e o resto de Genosha, caso os Vingadores não tivessem decidido manter o plano em segredo. Talvez não fosse sábio esconder coisas da telepata Emma Frost, porém eles tinham conseguido contornar a situação com maestria.

Tudo isso, as conversas, o trabalho, as piadas e barulho, faziam com que Natasha dormisse melhor à noite, geralmente quando pesadelos assaltavam seu sono. No entanto, ela ainda acordava de madrugada, se perguntando se aquilo não passava de um sonho febril, de uma alucinação terrível e doce.

Esperança.

Era isso que ela sentia no peito enquanto rascunhava os planos em cadernos, ouvindo detalhes sobre o que cada um sabia das Joias do Infinito. Pensava em Yelena, em Wanda. Suas irmãs que o destino escolhera, uma mais velha e a outra mais nova; ambas transformadas em cinzas. Natasha sempre se questionava a razão do universo deixá-la viva em vez das duas. Por que? Yelena e Wanda eram melhores do que ela. E ela faria de tudo para tê-las de volta, mesmo que significasse anular a si própria.

Esperança era o que se derramava por sangue ao ver Tony e Steve se dando bem de novo, unidos para dar o maior apoio possível ao deus nórdico, Thor, ao mesmo tempo que conduziam os experimentos da Máquina do Tempo com as partículas Pym.

Era aquele sentimento verde e tolo que tomou seu corpo inteiro quando Pietro voltou com Clint.

Esperança. No dia anterior, o teste final da Máquina do Tempo havia sido concluído com sucesso.

Eles voltariam no tempo e resolveriam toda aquela tragédia.

É claro que ela não era a única pessoa infectada por essa euforia. Steve trazia consigo um semblante sereno que há muito tempo Natasha não enxergava nele. Se forçasse um pouco mais a imaginação, ela poderia até falar que estava vendo coisas, auras, como Wanda, e desta forma observava a cor azul tomar cada contorno e forma do Capitão América. Ele tentava não transparecer tanto para, quem sabe, não aumentar ainda mais as duas próprias expectativas e as do resto time, mas aquela sua expressão jamais poderia enganar a espiã russa.

Principalmente não depois que ele voltou a desenhar ao longo daqueles dias.

Os rascunhos eram simples e certeiros, captando as emoções de cada um da equipe, como por exemplo, o rosto de Erik Lensherr a cada bobagem inócua que Pietro fazia ou como os músculos da face do líder mutante se alteravam sutilmente quando Natalya Maximoff se aproximava. E como deixar de reparar no retrato fiel dos momentos absurdos entre Tony e o guaxinim? Ou então Lang e Thor tomando uma Blood Mary?

Natasha nada comentava, com receio de Steve se sentir inseguro por voltar a desenhar. No fundo, ela gostava de vê-lo assim, com aquela expressão serena enquanto ilustrava alguma coisa no tempo livre ou então quando achava um desenho espalhado por aí.

Os dois trocavam sorrisos confidentes e discretos de tempos em tempos, feito cúmplices de um crime tolo e benéfico. Eles salvariam o mundo juntos, de novo.

Às vezes, ela questionava a natureza de seu relacionamento com Steve. Se antes era apenas divertido flertar com ele aqui e ali, gradativamente as coisas mudaram; Embora isso também já fizesse muitos tempo. Podia dizer que era amigos. Brincavam um com o outro, certo, fóssil? Eram parceiros. Talvez um pouco mais, ou então poderiam ter sido. O fato é que Rogers tinha conquistado seu respeito e o mais absurdo é que em troca ela podia ver ternura por parte dele. E apesar de aceitar bem a esperança se instalar em seu coração, outros sentimentos eram mal resolvidos.

Natasha era uma adulta com uma missão. Não podia se dar ao luxo de certas coisas e Steve era igual, portanto entendia-a completamente.

E, ainda assim, na noite anterior eles quase se beijaram.

Era tarde da madrugada e todos já tinham descansar após um longo dia e um farto jantar. O dia seguinte seria mais extenso e difícil ainda, então era mais sensato que descansassem. Natasha levantou da cama depois de algumas horas sem conseguir pregar os olhos, coisa que não era exatamente incomum e que ela supôs que acontecia com quase todos naquele instante. Caminhou pelo prédio, foi até a cozinha para conferir se sua garrafa de vodka ainda estava no lugar. Encontrou Steve comendo o resto de uma torta de maçã comprada. Ela prometeu não contar quem tinha acabado com a sobremesa se ele dividisse um pouco com ela e foi deste modo que os dois terminaram no terraço, sentados em bancos próximos e com uma embalagem vazia entre eles. Após comerem, rirem e encararem a escuridão do céu noturno, Natasha puxou os próprios cabelos vermelhos para trás e suspirou:

“Nós conseguimos.”

Steve a encarou com os cantos dos olhos, naquela sua cara debochada que reservava a poucas pessoas e raros momentos.

“Ainda precisamos voltar no tempo, Natasha.”

Ela empurrou o ombro dele com o seu.

“Ora, não seja ranzinza. Me deixe comemorar.”

“Nat.” Disse ele, paciente e humorado. “Como se eu pudesse te deixar alguma coisa.”

“O que isso significa?”

“Você sabe.” Deu de ombros. “Você faz o que quer, quando quer. Não precisa que eu te deixe fazer alguma coisa.”

A ruiva retrucou com uma postura falsa e requintada, olhando para frente como quem não quer lhe dar atenção:

“Isso não é verdade.”

“Então me diga uma coisa que você quer, mas ainda não fez.”

Eles se encararam em silêncio. Natasha poderia dar exemplos ruins, óbvios e verdadeiros: ela não podia ter os poderes cósmicos de Carol Danvers mesmo que quisesse, não podia se declarar rainha de um lugar qualquer ou fazer mais do que 30 fouettes exigidos em “O lago dos cisnes”. Mas a verdade era mais doce e simultaneamente amarga, não? Natasha não podia ignorar o que sentia por ele para sempre, por mais que assim fosse seu objetivo. E não podia ficar com ele, mesmo esse fosse seu desejo.

Ela pensou por tempo demais, refém de seu instinto incontido de encarar o rosto dele, na direção de seus lábios adoráveis e rosados. Ainda se lembrava de como era beijá-lo, mesmo que o ato em si não tenha sido exatamente verdadeiro em 2014. Mas por que as orelhas dele tinham ficado vermelhas de vergonha na ocasião?

A pessoa que ela encarava agora era diferente. Steve estava mais velho assim como ela, tinha cuidado das feridas de Natasha do mesmo modo que ela amparou as suas e… Ele parecia entender cada nuance daquela quietude, o que significava o olhar demorado de Romanoff. Não podiam ter um ao outro, sempre houve muito mais acontecendo no mundo. E, mesmo assim, Steve se inclinou lentamente em sua direção, as pálpebras se fechando devagar. A reação dela foi imediata e natural. Natasha se inclinou de volta com o coração gelado e os olhos fechados, apoiou-se no tórax dele. Podia sentir a respiração de Steve sobre si, bem como estava muito ciente do arrepio que se alastrava pelo seu próprio corpo.

E de repente se afastou.

Ainda segurava-o pelo tecido da roupa, perigosamente próxima dele, mas agora encarava o chão. Sentiu-o respirar mais fundo e engolir seco, também atordoado com a situação. No entanto, ambos sabiam: Não podiam se beijar agora. Ainda não.

“O que acontece depois?”

Depois daquela loucura impossível: Uma volta no tempo em inúmeros locais.

“Acho que…” Ele suspirou. Não havia mágoa ou confusão em sua voz. “Teremos que descobrir.”

Era difícil pensar o que aconteceria em seguida. O objetivo, é claro, era trazer de volta aqueles que se foram em 2018, mas e depois? O que mais mudaria? Natasha só desejava que tudo afinal ficasse bem e esperava que as palavras de Steve fossem verdadeiras: Ela era livre e fazia o que queria, sem mais renúncias.

E sem mais perdas.

Esperava talvez beijá-lo de novo, dessa vez de verdade. E mesmo que isso não acontecesse — ou quem sabe se não passasse disto, de um único beijo — Natasha ficaria satisfeita com todo o time inteiro de volta, tudo como era antes. Metade do mundo restaurado e seu coração no lugar.

Naquele momento estavam todos reunidos e prontos sobre a plataforma, trajados em uniformes especiais em vermelho e branco. Natalya e Erik Lensherr aguardavam atrás da parafernália inteira e serviriam de suporte fora viagem no tempo, já Pietro — após uma sequência de protestos de seu pai — voluntariou-se para acompanhar Thor e Rocket na missão em Asgard. Os focos de cada um já tinham sido decididos e repassados anteriormente, então não sobravam dúvidas entre eles.

A ocasião era importante e solene, de modo que cada um dos dez integrantes da equipe podia sentir a tensão, a expectativa e a incerteza no ar. Steve deu um passo para frente, encarando o time. Apesar de toda a pose do famoso Capitão América, um arquétipo construído em muita propaganda, Steve na realidade era um homem discreto, simples — mesmo com violenta vontade de fazer o bem mesmo em absoluta desvantagem. No entanto, isso não significava que não sabia usar de seu tom sério para elaborar falas carregadas de retórica e carisma.

Sem acordo prévio, todos esperaram pelo o que ele iria dizer:

— Cinco anos atrás nós perdemos. Todos nós. Nós perdemos amigos, perdemos família. Perdemos uma parte nossa. — Suspirou brevemente. — Hoje temos a chance de ter tudo de volta. Conhecem sua equipe, conhecem sua missão. Peguem as Joias e tragam elas de volta. Uma viagem pra cada um, não podem errar. Só uma chance. Muitos de nós estão indo para um lugar que conhecem, isso não significa que sabemos o que esperar. — Sua voz era severa, grave. Poderia ser a última vez que o ouviria discursar assim e Natasha tentava beber da coragem das palavras dele. — Tomem cuidado. Cuidem uns dos outros. Essa é a luta de nossas vidas. Vamos vencer, custe o que custar. Boa sorte.

Os olhos escuros do guaxinim brilhavam.

— Ele fala tão bonito.

— Né? — Scott Lang respondeu com entusiasmo, sempre tão fascinado por cada um do grupo.

— Deu até vontade de me alistar. — Pietro completou.

— Tá legal, vocês ouviram o homem. — Tony bateu palmas, atraindo atenção para si. — Digita aí, chuchu bombado. — Ele instruiu e Banner arrumou as coordenadas, retornando em seguida para o círculo da plataforma. — E cuida de tudo aqui pra quando a gente voltar, Magnético.

Erik Lensherr se limitou a fechar a expressão e dizer:

— Rastreadores ligados.

Sem se conter, Natasha piscou um olho para Steve, oferecendo-lhe um sorriso antes que o capacete cobrisse seu rosto.

— Te vejo num minuto.

Quando Steve sorriu de volta para ela, Natasha sentiu de novo uma pontada no coração, algo ao lado daquela esperança crescente em seu peito, pois no rosto de Steve Rogers havia algo mais do que aquele riso perfeito: Havia uma promessa.

O que aconteceria depois?

Ele a beijaria. Certamente a beijaria.