SPIN OFF - Carta Para Você

Quando Kelly Teve Que Tomar a Decisão Mais Difícil


— E como foi a reunião do partido? – Perguntei para Henry assim que acabei de cumprimentá-lo com um beijo.

— Acho que você vai querer se sentar antes de ouvir. – Ele me disse, indo para a cozinha.

— Henry... – Chamei.

— Os meninos já estão dormindo? – Questionou quando me encontrou no meio do caminho.

— Não estão aqui. Soph veio nesse final de semana e resolveu que levaria os dois para casa e faria uma festa do pijama, para nos dar uma folga.

— Então eles já foram?

— Sim. Mas eu quase tenho certeza de que Sophie terminou com o namorado... só isso para justificar que uma garota às portas da formatura no Ensino Superior queira levar os sobrinhos para casa, para tomar conta em uma sexta-feira à noite, perto do verão.

Henry riu.

— Sua irmã tem uma maneira estranha de lidar com o fim de um relacionamento.

— Mas não é sobre Sophie que temos que conversar. Como foi a reunião?

Henry andou de um lado para o outro. Parou na minha frente, voltou a andar, deixando até o pobre do Nemo tonto.

— Bem, me escolheram para o Senado.

— Você vai sair para Senador?

— Sim... as pesquisas apontam que, em uma situação hipotética eu ganharia, Kells. E o Partido não quer perder a chance de ter a maioria.

Mordi o lábio. Essa mudança era bem drástica. Não que Henry sendo Deputado era fácil, não era. Mas eu ainda podia me ausentar do país para cumprir com as minhas rondas no Daniel Webster e até mesmo em outras missões, mundo afora.

Agora, ele saindo com Congresso e indo para o Senado?! Com a popularidade que eu sei que ele tinha. Seria basicamente impossível que eu pudesse seguir com a minha carreira militar.

— E você concorda com eles? – Perguntei depois de um tempo.

— O que você acha disso? – Me devolveu a pergunta.

— Para você, para o Partido ou para nós? – Questionei.

— Sobre todos os tópicos, Kelly.

— Para o Partido é um sonho. Você tem sido elogiado desde que foi vereador em Washington. Foi o prefeito com a maior taxa de aceitação da história. Governador nem se fala. O número de votos de delegados que você recebeu nas últimas eleições explicam a sua ascensão meteórica, Henry. Você é tudo o que eles pediram. – Terminei.

— Você não falou do restante.

— Para você? É claro que é excelente. Um mandato de Deputado e está sendo alçado para o Senado. Fantástico! E eu estou muito orgulhosa de você! – Fui sincera.

Henry começou a falar sobre como seria a campanha. Tudo o que estavam planejando para levá-lo ao Senado e, como já estava sendo articulado para que ele, assim que assumisse a cadeira, fosse eleito o líder do Partido Democrata, e, quem sabe, fizesse parte da mesa.

Ele falou por horas. E eu escutava uma ou outra palavra. Perdida em pensamentos. Pensando no que seria da minha carreira.

Porque era inviável que ele seguisse como Senador comigo fora do país. Era inviável que nossos filhos sofressem com uma ausência dupla. Pois o cargo de senador, e toda a campanha, iriam exigir que Henry ficasse horas fora de casa. E, em alguns casos, dias. Eu me lembrava do pai dele. E, como seria quando isso coincidisse com as minhas designações? Will e Jack ficariam com quem? Meus sogros? Nem pensar, não quero Caroline Sanders tentando criar meus filhos e depois sair falando que eu não era uma boa mãe.

Deixar a dupla com meus pais? Impossível. Papai ainda é o Líder da MRCT e Jenny, bem, ela, mal teve tempo para criar a Sophie, como vai se responsabilizar pelos netos??

Então, só via uma possibilidade. Uma que, no fundo, eu não estava nem um pouco preparada para aceitar.

Eu teria que ir para a reserva. Eu mal havia sido promovida para Comandante, mal tinha ganhado a minha própria equipe de médicos e teria que abandoná-los.

Porém, acontece, que eu não estava preparada para isso, eu ainda não estava pronta para dizer adeus à Marinha em definitivo. Eu sei que mesmo tendo dois filhos e um marido com uma carreira política de dar inveja a qualquer um, o mais certo seria eu já estar pensando em sair, em parar, em virar médica de consultório.

Só que eu não queria. Eu não podia! Eu ainda tinha muito o que fazer na Marinha. Eu ainda tinha vidas à salvar. Muitas vidas. E ser uma médica comum... eu não salvaria todas as vidas que eu poderia se ainda estivesse ligada à Marinha.

Eu precisava conversar com meus pais. Precisava ouvir um conselho urgentemente.

— Kelly... você ainda está aqui? – Ouvi Henry me chamar, no exato instante em que senti que ele pegava a minha mão.

— Sim. Me desculpe eu só...

— Só? Você está distante há um tempo.

— É... sim. Me desculpe. Estou pensando.

— Seria algo que você gostaria de dividir comigo agora ou quer esperar e amadurecer a ideia?

Era incrível como meu marido conseguia saber até onde os meus pensamentos me levavam.

— Sinceramente, Henry. Não sei. Eu, simplesmente não sei.

— Poderia, ao menos, me falar sobre o que é?

— Meu futuro.

Ele me olhou de lado, absorvendo e analisando as minhas palavras.

— Seu futuro como? – Ele parou e esperou.

Meus olhos se encheram de lágrimas. Era uma escolha difícil. Era basicamente escolher entre meu casamento e minha carreira. Os dois começaram no mesmo ano. Com uma semana de diferença, e até então estavam andando lado a lado sem problema algum.

Até hoje.

Até que a carreira de Henry se tornou um obstáculo.

Eu tinha acabado de entrar em uma encruzilhada e não sabia como sair dela.

Encarei os olhos verde-escuros de meu marido, ele estava tenso, creio que pensava e mesmo que eu. Ou pelo menos uma parte. Ele sentiu que a carreira dele chegou a um nível que o nosso relacionamento teria que mudar.

Porque quem teria que mudar era eu.

E sempre detestei mudanças. Ainda mais mudanças drásticas. Chame isso de trauma de infância, chame de frescura, chame do que quiser.

Contudo, a verdade era só uma: minha vida sempre me colocava em posições onde ou não poderia escolher ou a escolha era complicada demais.

Henry ainda segurava a minha mão. Segurava com força e passava os dedos em cima dos quatro anéis que ele tinha me dado. Os três em minha mão esquerda, minha aliança de casamento, o anel de noivado e um anel que ele me deu logo que Will nasceu, e na minha mão direita, no primeiro presente que ele me dera, tantos anos atrás.

Soltei suas mãos, me levantei de uma só vez. Corri para o escritório, peguei minha bolsa e saí para a garagem, sem olhar para trás.

Eu precisava pensar.

Precisava respirar.

Precisava ficar sozinha.

E ao mesmo tempo precisava de um abraço.

Rodei por mais de duas horas à esmo por Washington, passei na frente de vários monumentos que agora estavam vazios e quando passei na frente do Capitólio, as lágrimas que eu segurava até então começaram a cair. Eu quase não enxergava nada na minha frente. Parecia com uma tempestade de verão, só que não do lado de fora do carro, a tempestade estava dentro do carro.

Um filme passava na minha mente. Desde o momento em que eu conheci Henry, ainda no ensino médio, com quinze anos, passando pelo dia em que ele havia me pedido em namoro, o dia em que o apresentei para meu pai, para Jen, o dia em que brigamos – por conta da minha carreira e da dele. – quando nos reconciliamos e ele me pediu em casamento.

A cada lembrança eu chorava mais. E não parei por aí, não, eu voltei no dia em que anunciamos o nosso noivado, como meus pais descobriram a data do casamento, o dia em que comprei o vestido, e o dia de nosso casamento.

Nossa lua de mel mágica na Grécia, meu primeiro embarque, minha primeira volta... a gravidez de Will, o tanto que eu ri da cara dele por ele ter desmaiado no dia do parto, passando para a segunda gravidez e para cada vez que ele ascendia na política e para cada vez que eu era mandada para fora.

Até que eu parei nessa noite.

Nas palavras dele, no sorriso dele, no orgulho de ter sido escolhido pelo partido. Henry sabia onde iria parar. Eu também sabia até onde ele iria.

Até a Casa Branca.

Mas será que eu iria com ele?

Porque para que ele, Henry, pudesse ter o seu sonho realizado, eu teria que abrir mão do meu.

Era ele no Capitólio, como líder e eu fora da Marinha.

Ou era ele no Capitólio, eu na Marinha e uma briga judicial pela guarda e custódia de nossos filhos.

Briga que eu perderia. Briga que levaria nossos filhos a um trauma sem precedentes. E que acabaria com a minha vida e com a vida de Henry.

Diminui a velocidade do carro, e só notei onde estava quando escutei as risadas e a gritaria.

Tinha parado na frente da casa dos meus pais em Alexandria.

Desliguei o motor e tentei me concentrar na felicidade despreocupada que estava lá dentro. E, por um momento, eu quis ser que nem a Sophie.

Ela sim, sempre dona de si. Sempre independente no quesito de relacionamentos. Já tinha tido o que, uns três namorados? Não diria namorados sérios, mas pelo que ficamos sabendo, eram três, para o desespero de meu pai. O primeiro saiu correndo quando conheceu o meu pai, o segundo, ela terminou, e olha que meu pai gostou ele, mas ela o achou melado demais, grudado demais, terminou em um sábado à noite, por mensagem, e depois ligou para Emilly Fornell e foi para a balada. E pelo visto, o terceiro tinha ido embora também... e me pergunte se ela estava triste ou deprimida? Ela estava era aliviada. E quando eu perguntei a ela como ela poderia estar tão tranquila com o fim do relacionamento, Sophie deu uma risada e só soltou:

— Ele até que é bonito. Inteligente, vai ter uma carreira de sucesso na engenharia...

— E por que você terminou? – Me lembro de questionar a ela nessa tarde, quando foi buscar meus filhos para a tal festa.

Ele é perfeito demais. E isso me incomoda em níveis que eu não entendo! Sabe, Kells, ele é compreensivo demais. Ele aceita tudo o que eu falo, tudo o que uso está lindo, eu estou linda. Se eu digo que não gosto da roupa dele, ele vai e troca. Ele nunca bateu de frente comigo, nunca me questionou uma opinião minha, nunca me provocou para me testar ou testar o nosso relacionamento. Eu não posso conviver com um capacho. Eu quero um namorado que me entenda, que goste de mim, mas que também tenha uma opinião forte, uma presença forte, que me faça querer ficar do lado dele e, ao mesmo tempo, me desafie a seguir do lado dele, que seja inteligente e que teste a minha inteligência. Quero alguém para viver comigo e me mostrar coisas que eu nunca vi, e não só alguém que vai fazer o que eu quero e como quero.

E quando ela terminou de falar isso, eu não pude deixar de notar que a meta de relacionamento de minha irmã era, simplesmente, o mesmo relacionamento de meu pai e Jen. De Tony e Ziva. Pessoas que se amam perdidamente, mas que ao mesmo tempo se provocam para que o relacionamento não caísse na rotina.

Tão diferente do meu. Completamente o oposto. Pois eu gostava da rotina. Da certeza.

Minha irmã, com vinte e três anos, sabia o que queria, só não tinha encontrado ainda.

Eu aos vinte e três, tinha encontrado o meu parceiro ideal e já estava noiva, com metade dos preparativos do casamento prontos, para hoje, aos quarenta, estar balançando na corda bamba do divórcio ou da infelicidade completa.

Apoiei minha testa no volante da minha Mercedes, e antes que eu pudesse pensar em me decidir se descia do carro ou se ia embora, a porta da frente da casa foi aberta, a luz do hall de entrada iluminou o gramado e o caminho, e uma sombra foi se assomando na janela do passageiro. Não precisei conferir quem era, eu sabia muito bem, só pela altura.

Destravei a porta e desci, encarando o par de olhos azuis que me encaravam curiosos, preocupados.

— Oi, papai. – Falei. – Acho que preciso de seus conselhos de pai, de novo. – Corri para seu abraço, chorando. Como se eu tivesse quinze anos e tivesse tido o meu coração partido pela primeira vez.

Ele não falou nada, apenas tirou a chave da minha mão, trancou o carro, me levou para dentro e, antes que subisse comigo, assobiou.

Sophie apareceu correndo, estava de shorts, um tanto descabelada, descalça e sua camiseta estava toda empoeirada, nem queria saber que espécie de brincadeira ela estava fazendo com meus filhos.

— Manobre e guarde o carro da Kells. Sem perguntas. – Meu pai disse, respondendo ao levantar de sobrancelha da filha mais nova.

Minha irmã, passou do meu lado, apertou de leve meu ombro, como que me confortando, pegou o controle da garagem que fica dependurado perto da porta e saiu para a rua, do mesmo jeito que estava, escutei o portão ser aberto e meu carro ser ligado. O motor roncou alto, assim como os pneus, logo escutei o portão ser fechado, Sophie trancando o carro, e, já na porta da lavanderia, ela arremessou a chave para meu pai, que ainda estava parado na porta da casa, para então sair gritando:

— Eu falei para me esperarem, seus pilantrinhas! Tali, comigo. Vic, não se mexa ou esse balão estoura. E Jack, nada de tentar dependurar o Adam pelo pé! Meg e John, isso não é um experimento científico! É só uma brincadeira! Mon Dieu! — Terminou exclamando em francês.

— Eu acho...

— Ela dá conta de todos eles. Daqui a pouco a brincadeira volta a ficar controlada. Já você, vem comigo. – Papai me guiou até o segundo andar.

Passamos pelo quarto de Sophie e lá tinha cabanas espelhadas, muito provavelmente onde ela e as crianças dormiriam, e depois entramos na sala de leitura. Um cômodo à parte, longe do barulho do quintal de trás e, consequentemente, das crianças. É como se fosse o segundo escritório de Jen.

— Juro que já estava preocupada com a demora. O que aconteceu? – Jen. falou.

Encarei a ruiva que tinha virado a minha mãe depois de tantos anos ao lado de meu pai e do meu também, mesmo que a diferença de idade fosse pequena demais para que ela fosse efetivamente a minha mãe, e, desabando no sofá, soltei a bomba.

— Eu acho que é fim do meu casamento.

Papai se sentou do meu lado, nessas horas ele não falava nada, apenas olhava, tentando ler nas minhas expressões e no modo como eu estava, se o que eu falava era verdade ou apenas drama da minha parte.

Já minha mãe, ela tirou os óculos de leitura – infelizmente não era mais aqueles vermelhos com glitter que uma vez usara. – e, se levantando da poltrona onde estava, caminhou na minha direção e se sentou na mesinha de centro, bem na minha frente.

— Por que diz isso? – Ela perguntou, quando parou de me analisar.

Respirei fundo para que eu não recomeçasse a chorar, mas não adiantou. Foi eu pensar em tudo o que tinha se passado nessa noite e na escolha que eu tinha que fazer que as lágrimas começaram a descer.

— Henry foi escolhido pelo Partido para sair como Senador. E...

— E isso complica a sua vida, já que a campanha é muito mais intensa e, caso ele venha a ganhar, as horas trabalhadas são praticamente dobradas, o que significa que quando você saísse em missão, não teria ninguém para tomar conta de seus filhos. – Jen completou todo o meu raciocínio.

— Isso mesmo. E eu não estou preparada para deixar a Marinha. Não ainda.

— Ele te pediu para sair? – Papai me perguntou.

— Não. Ele não chegou nesse ponto, ainda, eu acho. Henry está em êxtase pela escolha, e eu também, entendam, é importante para ele e ele está feliz, e eu fico orgulhosa de quem meu marido está se tornando em tão pouco tempo, só que... – Parei para respirar. – Eu não posso simplesmente abandonar o meu sonho para que ele viva o dele. A Marinha é uma parte da minha vida. Uma parte importante. Só perde para meus filhos e minha família. Mas não perde para a carreira de Henry.

Meus pais me encaravam e depois se olharam.

— O que eu faço? Eu amo o Henry incondicionalmente, ele é tudo o que eu pedi e muito mais. Um divórcio agora só vai... só vai nos machucar. Acabar comigo, acabar com ele, com a carreira dele. E... meus filhos? Os Sanders vão lutar com unhas, dentes, com os advogados mais caros que o dinheiro pode pagar, para ficarem com meus bebês. Eles vão acabar comigo e nunca mais deixarão que eu veja meus filhos. Eu não vejo saída, por favor, me ajudem! Eu imploro, não é só a minha felicidade que está em jogo, é a minha vida, se me separarem dos meus filhos eu vou morrer, eu sei que vou! – Levei minha mão até meu rosto, cobrindo os olhos, eu estava desesperada, com medo, apavorada com o futuro que se estendia na minha frente.

— Filha. – Meu pai me chamou.

— Não me peça para escolher, eu não posso.

— Kelly. – Foi a vez de Jen. – Não é uma escolha fácil e não podemos tomá-la por você.

— Mas vocês devem ter um conselho. Algo! Pelo amor de Deus!

— Você já conversou com o Henry? – Jen me perguntou.

— Não consegui. Eu... não sei se posso conversar sobre isso com ele. Ele não vai entender o meu dilema porque ele nunca teve que escolher.

— Na verdade, filha. Sim, ele teve.

Olhei incrédula para meu pai, ele tinha acabado de defender Henry? O Engomadinho? O Fracote?

— Quando ele te pediu em casamento, ele sabia que o que você faria. Ele sabia que você sairia do país de tempos em tempos. E ele, mesmo assim, escolheu ficar com você. E nunca reclamou dos meses sem fim, dos dias em que Will ou Jack ficaram doentes e ele ficou acordado a noite inteira, enquanto você estava seguindo a sua carreira. Tudo porque ele te escolheu e aceitou a sua escolha de ser da Marinha.

Levantei meu rosto para o que minha mãe falava.

— Chegou a vez, Kelly, de você escolher a carreira dele. Henry levou os últimos dezesseis anos muito bem. Ele fez tudo o que o marido de uma Comandante da Marinha tem que fazer. Agora você tem que colocar na sua cabeça que você é a Esposa de um Senador. - Jen continuou.

— Eu não posso...

— Uma pergunta, filha. – Papai começou.

— Faça. – Falei, estava esperando qualquer pergunta, menos a que ele me lançou.

— A Marinha ou sua Família?

— Minha família. Isso não tem nem... – E foi aqui que parei. Sem eu perceber, eles me mostraram a opção com a qual eu sempre soube que não poderia viver sem.

Jen me deu um sorriso, papai me abraçou.

Se a minha família era a minha primeira escolha. Por que doía tanto pensar em abandonar a Marinha?

— E por que parece errado sair agora? Por que dói tanto? – Questionei aos dois.

— Porque você nasceu para o que faz, Kelly. Você nasceu para ajudar aos demais e sempre viveu no meio dos militares. Ajudá-los, para você, é mais do que um emprego, você tem isso como obrigação, porque você é filha e neta de militares. Mas chegou à hora de sair, filha. – Papai me respondeu

— Eu não terminei...

— Nenhum trabalho jamais estará completo, Kelly. Nós sempre iremos achar que deveríamos ter feito mais ou melhor. Acredite em mim, Kelly, eu me senti assim quando saí do Escritório de Londres e aceitei o cargo de Diretora. Eu saí achando que poderia ter feito mais. Mas será que eu poderia mesmo?

— Mas é diferente! – Choraminguei.

— É uma escolha difícil, Kelly. Seus estudos, sua pesquisa, todas as novas técnicas que você criou nos últimos dezesseis anos... você tem um legado, uma história junto à Marinha. Esse capítulo tem que ser encerrado, pelo seu bem, pelo bem de seus filhos, de sua família.

— E meus pacientes... todos...

— Virão outros médicos, Kelly. E você sempre poderá ajudá-los. Um médico não vive só de consultas particulares. Você pode ajudar quem precisa, sempre tem um meio-termo.

— Você está me dizendo que eu devo sair da Marinha e virar uma médica civil.

— Sim.

— Mas o que isso muda na vida dos meus filhos e do meu marido? Eu continuaria a trabalhar...

— Não. Como uma médica civil, você fará os seus horários. Você estará perto de casa todos os dias. Não terá mais designações além-mar, não teria que enfrentar zonas de conflito, não colocará a sua vida em risco, e sempre poderá estar presente tanto para seus filhos como para seu marido.

— Como? Como conciliar isso, Jen?

— Da mesma forma como vocês vêm conciliando, Kelly. Há uma saída. Há um meio de você ter seu casamento e sua carreira. Você só tem que enxergar o que eu estou tentando te mostrar.

Fechei meus olhos e tentei visualizar a cena. Meu próprio consultório, meus horários, minha escolha de que horas eu começaria a atender e a que horas eu sairia.

— Você já fez coisa muito mais difícil do que essa escolha, filha.

— Mas pai... como é viver fora da Marinha?

— É um sentimento que você só terá quando, definitivamente, deixar tudo.

— Será que eu posso? Que eu consigo? Eu amo a Marinha. Amo o que eu faço. Eu não me vejo sem o meu uniforme!

— Kelly, você vai perceber que o momento é esse. Sua história na Marinha chegou ao fim, filha. Um dia chegaria, e você sabia disso.

Joguei minha cabeça para trás e comecei a pensar no que teria que fazer, no silêncio que se seguiu, escutei as risadas das crianças, minha irmã dando alguma ordem para que a brincadeira seguisse. Pude escutar Jack chamando pela Ruiva, copiando o apelido que meu pai dera à filha mais nova quando a conheceu.

Reconheci a voz de Will, clamando atenção para si, tentando falar algo que nenhuma das outras crianças queria escutar.

Will e Jack, meus bebês. Meus filhotes.

E minha mente se voltou para o pai deles.

Henry.

O futuro Senador Henry Sanders. A terceira geração dos Sanders a chegar a esse posto.

Eu não podia negar isso a ele, não quando ele me apoiou tanto. Papai tinha razão, Henry fez uma escolha quando se casou comigo, porque ele se casou comigo e com a Marinha. E eu me casei com ele e com a carreira dele. No fundo eu sabia que esse dia poderia chegar.

Talvez não tão cedo como estava sendo, mas eu sabia.

Era hora de me divorciar da Marinha para que Henry pudesse ascender. Eu cheguei até onde eu poderia ter chegado. Não almejava mais nada, pois uma médica não quer condecorações, não quer medalhas ou reconhecimentos.

Uma médica quer salvar vidas.

E eu tinha feito isso.

Salvei vidas.

E continuaria salvando.

Só que agora sem o uniforme.

Era triste, mas era o certo. Era hora de encerrar o meu ciclo na Marinha. Era hora de guardar o uniforme e quepe. De olhar para o que fiz e me sentir orgulhosa.

Não vou negar, dói. Dói muito. Mas é por uma boa causa.

Mais uma vez ouvi as risadas das crianças. Ouvi a alegria dos meus filhos.

E tomei a minha decisão.

Com um suspiro abri os olhos e encarei os olhos azuis de meu pai e os verdes de minha mãe. Eles souberam na hora que a tempestade tinha passado. Que eu me decidira. E que me decidira pelo certo.

— Creio que tenho mais trinta dias de Marinha. E depois... bem... eu ainda tenho um diploma de medicina, não?

Minha mãe me abraçou apertado. Meu pai só me disse uma coisa:

— Família em primeiro lugar.

— Eu sei, papai. Agora eu sei o que é realmente ser família. E Viver pela família. Muito obrigada pela ajuda. De novo. – Falei ao me levantar. – Agora eu tenho que me explicar para o meu marido onde me meti pelas últimas – conferi o relógio. – três horas.

— Não com essa cara. – Jen me avisou.

— Eu estou sempre chorando, mãe. Entenda. Das suas filhas, a única que não chora por relacionamentos é Sophie. Eu serei sempre a dramática e ela a pragmática.

Os dois riram.

— Vocês são a água e o óleo, Kells. Deve ser por isso que eu tenho certeza de que será a Ruiva quem tomará conta de você e não o contrário. – Papai me disse, me guiando para a cozinha.

No andar de baixo o caos imperava, o barulho era ainda mais alto, mas entre a cacofonia de gritos, risos, gritinhos de medo e risadinhas, da voz autoritária da minha irmã colocando ordem no caos, pude ouvir uma outra voz.

— Eu não deveria ter ficado preocupado com você, deveria saber que viria para cá, mesmo depois que a Sophie me mandou uma mensagem dizendo que você estava aqui, Kells. Mas, por favor, nunca mais saia de casa desse jeito, sem me falar, ao menos, que você irá voltar.

Me virei para a sala e Henry estava sentado no sofá, uma cara de preocupado e uma xícara de café na mão.

— Quando chegou aqui? – Perguntei indo na direção dele.

— Há uns cinquenta minutos, mais ou menos. Como eu disse, Sophie me avisou que estava aqui.

— Bem... eu precisava de um conselho que só os dois... – apontei para meus pais, porém eles não estavam mais atrás de mim. – Eu preciso conversar com você Henry, e não precisa fazer essa cara de pavor, não vou pedir o divórcio. – Comecei.

Meu marido se sentou direito no sofá e me encarou. Respirei fundo e proferi a minha decisão.

— Eu estou muito, mas muito orgulhosa da sua carreira e de onde você chegou, mesmo sem a minha ajuda e sendo pai do Will e do Jack quase por tempo integral quando eu saía em designações. Eu não sei expressar a minha alegria de ver o que você está fazendo e em como está trilhando o seu caminho até o posto mais alto do Poder. E... eu sei que agora fica ainda mais sério, mais difícil, seus horários vão ser muito mais apertados e chegará a hora em que talvez você não tenha energia para acompanhar a duplinha que está causando o caos no quintal dessa casa.

— Kelly, onde você está querendo chegar. – Coloquei um dedo na frente da sua boca para que Henry me ouvisse.

— Você me apoiou desde o momento em que eu falei que queria me juntar à Marinha até hoje. Nunca reclamou, nunca pediu que eu passasse para a reserva. Você foi, e é, muito mais do que eu pedi, Henry. Você se sacrificou pela minha carreira sem notar, você abriu mão da minha companhia em campanhas, em apurações, porque você sabia que eu estava vivendo o meu sonho. Bem, é hora de você viver o seu sonho de forma integral, e é hora de colocar na minha cabeça que eu sou esposa de um Congressista. Para que você possa se concentrar na sua carreira, na sua campanha, Henry, eu vou sair da Marinha. Vou pedir para ser transferida para a reserva. Está na hora de estar do seu lado em tempo integral. Muito obrigada por tudo o que você fez por mim, por minha carreira, por nossa família. – Dei um beijo nele.

Depois que nos separamos, Henry me olhou espantado.

— Você vai...

— Sim. Quero continuar exercendo a medicina, mas chegou a hora de dizer adeus para a Marinha. Você, Will e Jack precisam de mim aqui. Não posso negar isso. E nem posso deixar que minha irmã desencaminhe ainda mais nossos filhos como ela está fazendo agora. – Parei e pudemos escutar Sophie ensinando Will a plantar bananeira e, para piorar a situação, escutei meu pai ensinando Jack a atirar com o arco e flecha. – Viu o que eu falei. Vocês precisam de mim aqui. Não dá pra continuar desse jeito. – Comecei a rir.

Henry pegou a minha mão, beijou minha aliança e depois me levou em direção à porta dos fundos, paramos lá e ficamos observando a bagunça que era a tal festa do pijama, que do pijama não tinha nada, tinha era da sujeira. Não tinha uma criança que não estava imunda ali, e eu estava encaixando a minha irmã caçula no quesito criança e até meu pai, que há pouco tempo tinha se juntado à gangue, já estava sujo.

— Mas afinal, o que eles estão fazendo? – Henry me perguntou e foi na hora, pois Adam tinha acabado de pisar em uma mina. Uma mina feita com balão de água.

— Creio que é uma espécie de batalha naval, só que no jardim... – Falei tentando entender o jogo.

Sentei-me ao lado de meu marido no deck e fiquei vendo a brincadeira, que, no fundo não passava mais do que uma mistura de xadrez, com rouba bandeira e campo minado.

— Inteligente. – Henry comentou.

— Algo que só a Sophie poderia inventar.

Ao final, as meninas ganharam, apesar de estarem em menor número, mas quem declarou a vitória feminina foi o juiz, meu pai, para desespero de Jack, que começou a reclamar, no alto de seus cinco anos, que queria uma revange.

— Você quer uma revange, Gibbszinho? – Sophie o pegou no colo.

— Quero! Agora.

— Nem pensar! Fica para a próxima.

Meu filho fechou a cara e deu aquela encarada em Sophie.

— A sua não me causa medo. A dele sim! – Moranguinho comentou apontando para meu pai.

E emburrado, Jack seguiu para dentro de casa.

— Eu não quero ninguém se deitando nas tendas sem tomar banho! Tenham dó de mim, pois sou eu quem vai lavar esses lençóis! – Sophie alertou. Uma por uma, as crianças entraram, Jack não nos viu, estava bravo demais com a derrota, mas Will sim.

— Vieram nos buscar? – Ele me perguntou.

— Não, vocês vã dormir com a sua tia hoje.

E o Loiro só nos olhou.

— Tá tudo bem?

— Agora está, filho. Vai logo, ou sua tia não te deixa entrar no clube.

E ele saiu correndo, para dentro de casa, seguindo as ordens de Sophie, que já estava falando que todos iriam jogar Jenga.

— Eba! É o jogo que a mamãe sempre ganha do tio Tim! – Tali gritou feliz. E eu comecei a rir, Ziva tinha passado para frente a história de um jogo de jenga de quase vinte anos atrás.

Quando Sophie passou por nós, deu aquela olhada.

— Resolveram o problema?

— Não tinha problema.

Ela deu uma risada.

— Aham, sei. Você chega chorando, abraçada no papai. Nem reclama que eu quase fiz seu carro chique sair voando. Quando aviso ao Henry, ele me diz que não fazia ideia de onde você estava. E vocês vêm com essa desculpa? Não nasci ontem, apesar de ser bem mais nova que vocês!

Dei um chute na canela da minha irmã, ou melhor, tentei, pois os reflexos de gato dela agiram mais rápidos e ela deu um pulo para trás.

— Então, resolveram?

— Sim. – Henry respondeu por nós.

— Continue, Henry... informações completas ou eu te dou um tapa na cabeça, aliás. – Ela deu aquele sonoro tapa na cabeça. – Você mereceu, fez a minha irmã chorar.

E esse movimento me fez gargalhar alto.

— Agora está tudo bem, Moranguinho, eu só precisava de alguém para me ajudar a tomar uma decisão.

— Vai largar a Marinha, não vai? – Ela chutou.

— Sai daqui! Para que pergunta se você sabe a resposta?

— Eu não sei a resposta! Sei ler a resposta em você! Kells você é um livro aberto!! – Ela falou e me deu um abraço, sujando minha roupa de poeira. – Vai ficar tudo bem, Kells. Você já fez o que tinha que fazer na Marinha. Agora é hora de ficar com a sua família. Precisamos de você aqui! – Me deu um beijo na bochecha e saiu correndo, atendendo aos clamores de Adam, que era tão exagerado quanto o pai.

Ao fundo vi meu pai rindo da bagunça e depois ele só me indicou a janela do quarto. Nos convidando a passar a noite.

Depois que escutei Sophie contar a mais louca história de princesas e super-heróis que alguém poderia inventar, e de ver como todas aquelas crianças se ajeitaram para dormir, pude, finalmente, ir para a cama.

E, deitada ao lado de meu marido, perto da minha família, eu tive a certeza, tinha tomado a decisão certa.

Tem coisas que valem a pena de se abrir mão.

Mas não a família. Jamais.