Londres Séc XIX

Pov Oliver Queen

Eu estava completamente ferrado.

Antes que eu comece a comentar sobre a terrível situação em que me meti, me permitam, em uma breve explicação, contar um pouco de minha história.

Sou Oliver Jonas Queen, filho primogênito do duque e da duquesa Robert e Moira Queen. Nossa família não era considerada grande visto aos padrões londrinos. Éramos quatro, contando com minha pequena e irritante irmãzinha, Thea Dearden Queen. Podiamos ser pequenos, mas o amor e carinho que nos rondava era, sem sombra de dúvidas, o maior dos sentimentos que uma pessoa raramente tinha o privilégio de sentir. Meu pai, embora sério, podia ser considerado carinhoso. Fosse pelos passeios a cavalo, um jogo de cartas, ou seu passatempo favorito, observar com fascinação as colinas a nossa volta, se perguntando, a real razão para estarmos ali. Era um homem filosófico, um erudito de fato, completamente apaixonado por livros e pelos saberes da vida. Eu deveria ter perguntado mais coisas a ele.

Porém, era tarde demais.

Meu pai fora um dos muitos que, infelizmente, morreu devido a uma gripe forte. Os doutores tentaram recuperá-lo, mas no instante em que seus olhos encontraram os meus, e o grito de minha mãe ecoou pelo cômodo, eu soube que havia o perdido. Vi o brilho deixar seus olhos, e em um último sorriso, tentando nos acalmar, se foi. Minha mãe ficara arrasada por dias, sem tocar em uma refeição em seus dias de luto. E ainda havia Thea, que pequena, não entendia o que ocorreu. As responsabilidades chegaram, e eu, completamente quebrado, tive que por meus sentimentos e emoções de lado para assumir o controle do barco. E fui o que fiz.

E continuava fazendo.

Era cansativo.

Não que eu não houvesse chorado, ao menos, não na frente delas. Havia uma pessoa em si, que no momento e que me puxou para um abraço escondido, já que um homem e uma mulher não podiam ser vistos com tamanha proximidade, me desmoronou completamente. Chorei pela morte do meu pai, e senti a terrível e tormentosa sensação do luto. E suas mãos, sempre cobertas por aquelas enlouquecedoras luvas, seguraram meu rosto, e o acariciaram. Me foquei em seu olhar, caridoso, e me senti livre. Era assim com ela, sempre fora.

E era aí que começava um de meus maiores desejos, e a mais misteriosa das incógnitas. Meu mistério favorito, que eu amava desvendar.

Amava.

Eu realmente a amava.

Minha Felicity.

Posso dizer, sem remorso, que parte da autoria por me colocar nesta situação era única e exclusivamente minha. Claro que jamais cogitei que as coisas tomariam tamanha proporção, no entanto quando notei…Ah, quando notei já estava apaixonado por um par expressivo de olhos azuis.

Olhos azuis que sempre que eu tinha a oportunidade, os observava intensamente.

Fosse em uma festa, um piquenique ou uma roda de conversas no parque. Tínhamos que nos manter distantes com a sociedade, especialmente porque se sentissem qualquer resquício de amizade entre nós dois os boatos começariam, e ela poderia ficar falada.

Com a honra questionada.

E eu jamais permitiria que algo assim acontecesse.

Minha reputação para jovens debutantes era considerada “perigosa”. De fato, já fiz muitas coisas e frequentei muitos bordéis em meus tempos de faculdade, mas depois…

Simplesmente parei de gostar de ir.

Assim como toda pessoa, eu tinha minhas necessidades. No entanto, cada vez que me deitei com uma mulher, jamais senti paixão ou amor. Sim, havia desejo, puramente carnal. Um alívio rápido, físico.

Vazio.

E extremamente sem emoções.

Embora obtivesse essa fama, a cada ida desgostosa aos bailes reais sempre chamava atenção. As mães queriam que suas filhas se casassem comigo, e eu sabia o porquê. Eu era um duque. Filho da duquesa Moira Queen e do falecido Duque Robert Queen. Minha família tinha poder, influência. Eu tinha essas coisas. Algo que, aos olhos das mães casamenteiras, eram características ideais para um “bom partido”. Era verdade que uma vez tentei cortejar uma dama, porém, após um tempo, notei que não daria certo.

A Lady Lance não havia ficado nada feliz.

Especialmente porque, segundo ela, sempre que estavamos nos bailes, eu olhava para Felicity.

Era impossível evitar.

Quando eu via, já estava analisando cautelosamente cada cavalheiro que se aproximava. Laurel chegou a fazer boatos, sugerindo que eu, um libertino, estava tendo um caso com a filha da viscondessa. Que havia a tocada. Ou em palavras grotescas, a “corrompido”.

Minha mãe, com muito esforço, conseguiu me acalmar.

Eu não ligava que falassem de mim, e por conta disso, quando estávamos na companhia de terceiros eu me aproximava. Fazia alguma brincadeira ou a chamava para perto, tendo o privilégio de ouvir sua risada. Felicity era uma das únicas pessoas que não se importava com o que eu tinha, ou quem eu era. Podia ser eu mesmo com ela.

E eu amava isso.

Amava seus comentários ácidos sobre a sociedade nociva em que vivíamos. Amava seu jeito desengonçado de dançar, ou o rubor em suas bochechas ao falarmos de coisas indecentes. Amava seu cheiro, que me lembrava de campos recheados de tulipas azuis em um dia ensolarado e do frescor do campo. Amava seu sorriso.

Amava tudo nela.

Mas jamais viveria sabendo que, por minha culpa, a imagem dela seria manchada na sociedade londrina. Felicity é uma mulher extremamente forte e inteligente. Merece as melhores coisas.

Não transformaria a vida dela em um pesadelo.

Eu discuti com Laurel. Pedi para que a mesma calasse a boca e retirasse tudo o que havia dito de Felicity. Mas então ela me fez uma pergunta, a qual, até hoje, eu evito responder em voz alta.

“ Mas afinal de contas, você a ama, não é vossa graça?”

Jamais tive coragem de pensar nesta pergunta outra vez, muito menos respondê-la em voz alta. Nossa amizade floresceu desde minha juventude devido a aproximação de nossas famílias, que se juntavam em diversos eventos durante o ano. Começamos a confiar um no outro, e eu, de repente, não conseguia mais ficar longe dela. Amava quando estávamos sozinhos, pois assim, poderia, sem olhos maldosos, me aproximar e abraçá-la. Tinhamos nossos momentos, confusos, onde ambos se provocavam, e a tentação de beijá-la fervilhava por meu corpo tão profundamente que me faltava o ar.

Aquela maldita noite no jardim, onde quase deixei minha honra de lado e a beijei, povoava minha mente. Me atormentando, me punindo, me fazendo fantasiar. Eu tinha que me lembrar, dolorosamente, de que eu jamais poderia tocá-la. Não deixaria minha reputação manchá-la. Ela queria casar, ter filhos, e eu…

Eu não sabia se conseguiria dar isso a ela.

Com a morte de meu pai, acabei me fechando para possíveis relacionamentos. A dor de perder alguém que se ama fora tão angustiante que eu prometi a mim mesmo que jamais passaria por algo parecido como aquilo outra vez, e se eu me casasse…Se algo acontecesse…Ah.

Era complicado.

E enlouquecedor.

Principalmente porque Felicity, agora, estava debutando.

Sim, eu estava demonstrando mais do que deveria. Minha mãe, sempre analítica, percebeu, há muito tempo, meus sentimentos por Felicity, e ultimamente, me lembrava constantemente que, se eu não fizesse algo, a perderia.

Tentei ignorar seus conselhos, e seguir como um perfeito melhor amigo. No entanto, ao ouvi-la dizer que se mudaria e casaria me quebrou de uma forma inexplicável. E na noite do baile em que dançamos, quando a vi nos braços do príncipe, sorrindo, não consegui me conter. O ar me faltou, e apertei as mãos angustiado.

Eu estava com ciúmes.

Não deveria.

Mas estava.

E fora tão forte que eu precisei sair do salão.

Ao encontrar os olhos de minha mãe, soube que ela entendeu perfeitamente. Sai angustiado e fui direto para casa, me trancando naquele maldito escritório, idêntico ao que tinhamos na casa de campo. Tentei fazer contas, arrumar os papéis, mas absolutamente nada tirava minha mente daquela maldita dança. Ela sorriu pro príncipe da Áustria.

Áustria.

Era longe demais.

Soltei um suspiro irritado, e acabei espalhando os papéis pelo chão. Minha mente precisava ficar em ordem, eu precisava ficar em ordem. Mas não conseguia.

Não conseguia.

Eu sabia que algo estava errado desde o estranho pedido de minha mãe para que eu fosse a uma casa de campo. Não contestei, e após chegar e encontrar Tommy, contando o ocorrido em minha sala para pensar, ouvi o barulho de uma carruagem. Me levantei da cadeira, e pelas cortinas, a observei descer, deslumbrante em seu vestido vermelho. Ela estava tão linda com o ar puro soprando em seu rosto que por minutos eu fiquei ali, completamente parado, até me esconder quando seu olhar, esperto, seguiu até o ponto onde eu estava.

Tommy, soltando uma risada baixa, me puxou para que enfim descessemos. Meu amigo, o conde Merlyn, morava em uma residência perto da nossa.Meu amigo continha seus momentos irritantes onde eu tinha vontade de jogá-lo da ponte, desde nosso tempo juntos em Oxford, porém, quando se tratava de sentimentos, ele era uma das poucas pessoas qual eu confiava um conselho. Tommy observava bem as pessoas, e esse seu dom foi uma das razões que o fizeram deixar a capital. Ter que fingir em todos os bailes educação diante de comentários maldosos era, certamente, uma de suas atividades menos favoritas.

O vi a abraçar, e na escada, a analisei, desde seu sorriso forçado, até a postura um pouco ansiosa. Felicity estava mentindo para mim, e eu sabia disso, mas se ela achasse que não era o momento certo, eu esperaria, por isso entrei no jogo, e fingi estar relaxado quando conversamos. Minhas suspeitas se confirmaram quando a vi chorar no piano, sozinha, e eu soube que algo grave estava acontecendo. Vê-la daquela forma, tão triste, me deixou ainda mais angustiado. Eu queria ajudá-la, mas ela simplesmente não deixava.

Eu não sabia o que fazer.

Só sentia que precisava acalmá-la.

E após notar, sem que a mesma percebesse a mancha roxa em seu ombro eu perdi o controle. Não liguei se estávamos na sala, tampouco se alguém poderia nos ver. Ela estava machucada, e estava mentindo.

Eu sabia disso.

Eu sintia isso!

Mas ela continuava a negar.

Minha mãe havia visto nosso pequeno momento na sala, onde mais uma vez, o segredo entre nós acalorou os nervos, nos deixando próximos.

Muito próximos.

E por seu sorriso, temi que estivesse planejando algo.

Acordei após uma má noite de sono, e ao entrar na sala de jantares, onde minha mãe fazia o desjejum, tomei um chá com torradas.

— Bom dia querido.- cumprimentou calmamente. Mordi a torrada, desconfiado.

— Bom dia, mãe.

— O dia está lindo, não? Bem quente.- sorriu, balançando sua xícara.- Já visitou nossas flores desde que chegamos?

— Não tive tempo de ir ao jardim.- respondi, franzindo o cenho. Ela, de fato, amava o jardim, mas não entendi a pergunta.

— Achei que quisesse ver as tulipas azuis. As mandou de tão longe…- seu olhar encontrou o meu, passando uma mensagem, qual bufei.- Gostaria muito de entender esse seu fascínio por elas.

Eu também.

A primeira vez que havia visto aquele tipo de flor fora com Felicity em uma floricultura. Ela se iluminou ao vê-las, principalmente por azul ser sua cor favorita.

Ela ficava linda de azul.

Ao fazer a compra de mais flores para o jardim, me vi tentado a cultivá-las. Mas eram brotos difíceis, somente existentes nos países baixos. Ainda sim, persisti. No começo, achei que fosse apenas porque havia gostado delas, mas após ver o sorriso de Felicity ao vir aqui e vê-las, soube que compraria tulipas azuis pela eternidade. Não por obrigação, mas porque eu gostava de vê-la se alegrar com as flores. Jamais contei o real motivo a ninguém, muito menos que eu que cuidava daquela tarefa.

Tomei o chá de uma vez, e a encarei, perguntando onde queria chegar.

— Deveria dar uma olhada nelas. São caras, quero que se certifique que não é uma perca de gastos.

Suspirei.

No começo, discutimos muito por conta delas.

— Vou vê-las.- Respondi. Seu sorriso se ampliou.

— Devem estar lindas.

Ainda sem entender seu olhar, limpei minhas mãos no pano e segui até o jardim nos fundos. Fiz a trilha conhecida, parando, de forma abrupta, no enorme arco. Ela estava ali, parada entre as flores. A atmosfera mudou, o vento balançou as folhas das árvores de uma forma mais lenta, quase silenciosa. Engoli em seco com o olhar de Felicity, intenso e misterioso.

Como se soubesse de algo.

Não soube o porquê, mas havia ficado extremamente nervoso.

Felicity acompanhou cada movimento meu, enquanto eu tentava decifrá-la. Me agachei no canteiro de tulipas, a retirando com cuidado, limpando os pequenos grãos de terra, e a entrei a Felicity ao ficar de pé. Um sorriso doce tomou conta de seus lábios ao brincar com a flor, e eu, como um idiota apaixonado, não tive outra reação a não ser sorrir.

Era por aquela pequena ação que trazer essas flores valiam tanto a pena.

— São minhas favoritas.- comentou.

— Eu sei.- simplesmente respondi, sem me conter. Seu olhar cruzou novamente com o meu, e senti a assustadora sensação de que ela estava sabendo de algo que eu não tinha ideia do que era.

Sua mãe está cuidando bem delas.

Apertei as mãos, e franzi as sobrancelhas, completamente perdido, e um pouco envergonhado.

Ela não precisava saber das flores- uma voz sussurrou.

ela parece saber- disse outra.

Quebrei nosso contato visual, encarando o chão. Não conseguiria mentir para ela com seu olhar que parecia me enxergar por completo. Cada segredo, cada mentira.

— É, ela realmente cuida muito bem delas.- tentei soar casual.

Minutos em silêncio se passaram, até que sua delicada mão, coberta pelas malditas luvas, encostaram na minha. Voltei a observá-la, confuso.

Felicity estava muito enigmática hoje.

— Você me deve uma ida ao lago, esqueceu?- me lembrou da promessa, e eu inevitavelmente sorri. Talvez eu estivesse louco e as coisas estavam normais.- Temos que ir agora.

Seu tom mandão, costumeiro, me fizeram achar graça da situação.

—Como desejar Lady Smoak.- ri, sem me conter.- Como desejar.

Caminhamos, sem pressa, até os estábulos. No entanto, antes de prosseguirmos, encontramos Tommy, que conversava de forma animada com a senhorita Snow. Notei seu pequeno sorriso, a forma relaxada em que cruzava os braços, e a postura, que oscilava para frente, em uma tentativa de se aproximar de Caitlin. Ela também parecia mais relaxada que o costume. Eu conhecia Caitlin há bastante tempo, e tínhamos nossos momentos de lazer quando eu estava com Felicity e ela facilitava nossos encontros,porém ela sempre parecia carregar peso demais nos olhos.

Talvez Tommy mudasse isso.

Iria conversar com ele.

Tommy logo nos notou, sorrindo sugestivamente ao me ver andar com Felicity. Retribui o olhar com uma mensagem.

“Cale a maldita boca”

Seu sorriso se alargou e ergueu uma das sobrancelhas, em desafio.

— Bom dia Felicity.- a cumprimentou, beijando sua mão.

— Olha só, ele sabe ser cavalheiro.- riu, divertida.- Achei que tivesse virado um selvagem.

— Ah, eu posso ser selvagem.- piscou, Felicity revirou os olhos.- Se quiserem…

— Não, não queremos.- o cortou, já sabendo do que se tratava.- Vamos dar uma volta até o lago. Nos acompanham?

— Claro. Seria divertido.- sorriu Caitlin, animada.- Não perderia por nada ver em prática o ego destes dois senhores, que farão observações elevadíssimas deles mesmo nas próximas horas.

Felicity gargalhou, e eu e Tommy as olhamos chocados.

— Certamente é uma ótima diversão para uma tarde calorosa.- concordou Felicity, entre risos.- Libertinos.

— Sempre tão intensos e arrogantes.- continuou Caitlin.

— Ainda estamos aqui, sabiam disso?- questionei. Ambas nos olharam, dos pés a cabeça,

— Claro que sabemos. Afinal de contas, qual seria a graça de falar essas coisas se vocês dois não ouvissem?- sorriu Felicity cinicamente. A encarei, segurando um sorriso.- Vamos aos estábulos, ou prefere continuar chorando?

— Você está mais afiada que o normal, Lady Smoak.- a provoquei, quando começamos a caminhar.- O que houve? Ainda chateada com o comentário que fiz do príncipe?a vi mostrar a língua.

— Vossa alteza é um cavalheiro.

— Não disse isso. Apenas disse- seu olhar encontrou o meu, em uma ameaça. Sorri.- Que dançar comigo é muito melhor. E se discordasse…- a interrompi.- Falaria algo a mais que “ libertinos arrogantes” .

Um tom rosado tomou conta de suas bochechas e seus lábios, sempre tão espertos e falantes, se contraíram. Felicity me lançou um olhar irritado, empurrando sem delicadeza alguma meu braço, me ultrapassando e ficando a minha frente com Caitlin. Ri.

— Muito maduro.

— Você consegue ficar com a maldita boca fechada por um minuto?

Tommy abafou o riso.

— Ah, essa tarde será tão pacífica, não é caitlin?- perguntou meu amigo.

Caitlin olhou para trás e disse:

— Certamente será.- devolveu no mesmo tom irônico. Um pequeno sorriso brotou em seus lábios antes de se voltar para frente, o deixando completamente abobalhado.

Arqueei as sobrancelhas e Tommy fez sinal de silêncio. Balancei a cabeça, divertido.

Um dos cuidadores do casarão aprontaram nossos cavalos que, quando encelados, nos foram entregues. Tommy ofereceu ajuda a Cailin para subir, qual aceitou prontamente. Já eu, no momento em que virei me deparei com uma Felicity já montada, com as pernas postas em ambos os lados.

— Não me peça para andar a cavalo como fazemos na cidade.- reclamou.- É horrível ter que deixar as duas pernas para o mesmo lado.- sorri. De fato, as regras de etiqueta de nossa sociedade eram torturantes.

— Você nunca precisou disso aqui, não se preocupe.- sorri ao montar, arrumando meu corpo para que se ajustasse ao cavalo.- Aqui podemos ter um pingo de paz.

O rosto de Felicity ficou sério, muito sério.

— É o que eu mais quero.

Novamente a expressão pragmática estava ali.

Nos deslocamos, cavalgando com calma pelos campos. Não pude deixar de notar seu semblante pensativo e um tanto infeliz. Suas sobrancelhas estavam franzidas, acentuando uma ruga entre as mesmas, e suas mãos, embora estivessem andando devagar, não poderiam segurar as rédeas com mais força. Fui um pouco adiante, deixando Tommy e Caitlin conversando atrás de nós. Felicity percebeu minha aproximação e me lançou um sorriso fraco. Arqueei as sobrancelhas.

“ O que houve?”— perguntei.

Ela deu de ombros, o que me deixou irritado. Ela estava mentindo, eu sabia que estava. Alguma coisa grave havia acontecido, e por sua postura, eu temia em saber o quão grave era. Suspirei, frustrado, e a ultrapassei, andando um pouco mais rápido. Thea deveria saber o que havia acontecido, e claro, não me contaria, como de costume.

Eu iria enlouquecer.

Pois sabia que Felicity estava sofrendo, e ainda assim, não me permitia ajudá-la.

E inferno, eu só queria ajudá-la!

Seja lá o que fosse, dariamos um jeito. Eu ficaria ao lado dela para tudo,sempre ficaria. Mesmo que isso me dilacerasse.

Como vê-la sendo cortejada pelo príncipe.

Como vê-la debutar e, na mais irônica das situações, me pedindo conselhos para atrair outro pretendente.

Como saber que ela se casaria em breve, e eu estaria lá, como seu fiel amigo, enquanto morria por dentro.

Não percebi que havia me distanciado tanto até escutar o cavalo de Felicity rinchar, com o comando rementino. Diminui o ritmo, a aguardando, embora olhasse para os vales verdes aos arredores.

Talvez eles me ajudassem.

Me dando alguma luz.

Me tirando dessa situação tão lastimável.

— O que foi?- perguntou suave.

— Você sabe o quê.- fui franco, e a encarei, vendo sua hesitação;

— Oliver…

— Se for falar alguma mentira, por favor.- a interrompi.- Alguma coisa está acontecendo com você. Algo sério. E todas as vezes em que pergunto me sinto um completo idiota pois a deixo triste, e fico triste também por saber que se esquiva de cada tentiva de ajuda.- seus lábios se entreabriram.- Você não entenderia.- balancei a cabeça em negativa.

— Eu poderia entender, caso você permitisse.- seus olhos se arregalaram, e eu sorri, amargurado.- Mas isso não vai acontecer, não é? Ao menos não agora.

— Preciso…Preciso de tempo. E eu juro que se fosse fácil eu contaria mas…- levou uma das mãos ao rosto, massageando o ponto entre suas sobrancelhas.- Eu simplesmente não consigo agora, Ollie.



Suspirei, e assenti.

— Sei que estou sendo um chato mas só…Só não gosto de vê-la sofrendo.- confessei, desesperado.- E saber que eu poderia a ajudar de alguma forma…

— Você ajuda, sempre ajuda.- me interrompeu. Seus olhos tomaram um brilho diferente.- Só de estar aqui eu já me sinto melhor.- sorri.- E eu não sou a única a manter segredos.- apontou.- Você me disse que estava tendo problemas com sua mãe, mas não disse quais.

— Falei que eram sobre a temporada.- argumentei.

— Disse que queria que se casasse, mas nunca me falou com quem.

— Isso faz diferença?- seu rosto se tornou rígido.

— Para mim faz.

— Quer avaliá-la?- tentei fugir da pergunta.

Ri internamente. caso eu respondesse, seria algo assim: “ Minha mãe está me infernizando ultimamente por sua causa. Ela sabe que eu a amo, mas não sabe que você só me vê como um amigo.”

Patético.

— Por que está sorrindo?- despertei de meus pensamentos narcisistas.

— Como?- Felicity bufou.

— Estava sorrindo. Por quê? Por ela?

Encarei seus olhos profundamente, e sorri ainda mais. Seu rosto havia ficado, divertidamente, ainda mais rabugento.

— Se eu não a conhecesse tão bem, diria que está com ciumes.- alfinetei.

— Você…- a vi tomar um suspiro, que deveria ser para manter o autocontrole e não me derrubar do cavalo. Ri.- Como alguém pode ser tão irritante?

— Ah, eu tive um bom exemplo.- indiquei com as sobrancelhas sua pessoa. Felicity inevitavelmente sorriu.- Agora sim, bem melhor.

Rimos uma para o outro, um pouco aliviados. O olhar de Felicity cruzou com o meu, e seus lábios, tão lindos e macios, se entreabriram, em um convite. Meu mundo oscilou entre um misto de realidade e ilusão. Ela estava tão linda, novamente de azul, sua cor favorita, a qual por coincidência ficava tão bem. E o ar fresco, soprando alguns fios rebeldes de seu penteado…Inevitavelmente, parei meu cavalo, e Felicity fez o mesmo.

Meus pensamentos estavam bagunçados, muito bagunçados, mas eu tinha plena consciência de uma coisa. Se continuássemos assim, eu não teria o autocontrole que obtive no jardim, e a beijaria tanto que ficariamos sem ar. Meu corpo ardia em desejo, e por seu olhar, que se mantinha fixamente em mim, ela não estava tendo um pensamento diferente. Abaixei o olhar, vendo suas mãos cobertas por aquele tecido branco que eu tanto odiava. Em meus sonhos mais impuros, ela não os usava, e eu podia tocar sua mão, e senti-las deslizar por mim, devagar…

— O que estão fazendo parados aí?- a voz alta de Tommy,como uma intervenção divina me retirou de uma linha de raciocínio perigosa. Felicity também pareceu se recuperar, arrumando a postura.

— Esperando vocês. Se continuarmos desse jeito chegaremos amanhã.- brincou.- Vamos?

Assentimos.

Por segurança, fiquei distante. Caitlin agora estava ao seu lado, enquanto eu e Tommy ficamos para trás. Nossa distância era considerada segura, e por isso, meu amigo cochichou.

— Está cada vez mais na cara, Oliver.- esfreguei o rosto.- Se continuar negando…

— Foi um deslize. Não vai se repetir.- um sorriso sarcástico brotou em seus lábios.

— Claro, até porque, quando se trata de Felicity você tem o total controle de suas emoções, não é?

Não respondi, ainda angustiado. Tommy suspirou.

— Negue o quanto quiser, repita mil vezes seu mantra, mas isso…- comentou em voz baixa, apontando para mim e Felicity.- Uma hora vai explodir.

— Tommy…

— Você, meu caro amigo, está deixando a felicidade passar por dois fatores que não deveriam ser um impasse.- meu olhar interrogativo o deixou frustrado.- Seu pai…- o repreendi, Tommy continuou.- E não se dar o luxo de descobrir se ela sente algo por você.

— Ela não sente.- sorri, irônico.- O príncipe está a cortejando. E quanto ao meu pai…

— Uma hora terá que superar isso ou vai passar o resto da vida se lamentando sobre o que poderia ter feito.

Não quis mais conversar, e Tommy, notando meu estado de humor, respeitou. Continuamos a andar em silêncio, porém minha mente não poderia estar mais barulhenta.

Eu não sabia se conseguiria lidar com o fato de ter alguém tão importante por medo de perdê-la, como houve com meu pai.

Eu não sabia se conseguiria esconder meus pensamentos, e lidar bem com o casamento de Felicity.

Mas sabia que a amava, e ela só me via como um amigo.

Nem mesmo a brisa fresca e os pastos verdes me acalmaram.

***

Não consegui parar.

O caminho até o lago não poderia ter se tornado mais tempestuoso. Sorri, fiz algumas piadas, em minha postura típica a qual usava nos salões londrinhos, abafando por completo o que eu realmente pensava. Quando descemos dos cavalos, na conhecida clareira, usei uma desculpa e me distanciei, acelerado.

Precisava me acalmar, precisava me acalmar…

O lago era um pouco mais escondido,e por isso, voltei a adentrar a floresta, e no momento em que escutei o barulho daquelas águas, não pensei duas vezes. Retirei aquele colete, as botas, desabotoei a blusa e mergulhei. A água gelada ardeu em minha pele e eu fechei os olhos, sentindo a maravilhosa e dolorida sensação de estar com o corpo submerso.

Era bom.

E de fato me ajudou.

Retornei à superfície e continuei a nadar.

O céu de fato estava lindo, com passáros, que se deslocavam para sabe-se Deus onde. Ás vezes, quando saía em minhas viagens, gostava de imaginar para onde aquelas criaturas estavam indo. Se eram para as Índias, ou até mesmo, as terras americanas que eu não conhecia. Era estranho pensar que, para meus antepassados, existia somente a europa, e agora…Ah, agora havia realmente um novo mundo.

O que será que acontecerá com aquelas terras no futuro?

Eu, infelizmente, não saberia, mas meus filhos…

Soltei uma gargalhada amarga com o pensamento.

Eu não queria me casar, então como diabos eu teria filhos? Não conseguiria dar amor pelo bloqueio emocional que eu, inconscientemente criei. Seria um pai horrível.

Um marido horrível.

Felicity merecia mais do que isso.

Merecia o príncipe.

E inferno, como eu queria que aquele rosto australiano desaparecesse.

Voltei a mergulhar, tentando a todo custo esquecer os problemas. Embora meu corpo estivesse frio, os raios solares batendo em minha pele exposta passavam uma espécie de conforto. Fechei os olhos e respirei profundamente, relaxando. Ouvindo os pássaros, a correnteza e…

E o quê?

Imediatamente me pus em alerta. Pareceram passos, como se alguém tivesse tropeçado. Encarei o mato ao redor, me atentando às mais simples mudanças de relevo.

Não havia ninguém.

Observei mais uma vez com cautela, sem me mover na água, até que me atentei a um tronco.

Não podia ser.

Semicerrei os olhos e ao finalmente reconhecer quem era imediatamente sorri. Ela estava fazendo de novo.

Não podia acreditar nisso.

Fingi que voltei a relaxar. Estiquei os braços, me alongando, e a figura se remexeu, curiosa. Sim, ela estava me espiando, e eu não poderia ter ficado mais contente com isso.

Mas iria irritá-la também.

Hora do show.

— Espiar as pessoas é muito feio, sabia?- perguntei em voz alta. A figura ficou estática.- Eu sei que está aí.- ainda nada.- Felicity…- prendi o riso.- Eu estou nu. Se não aparecer eu mesmo saio e vou pegar você.

Um gemido sofrido ecoou da árvore, e eu ri diante de seu lamento. Eu ainda usava calças, mas ela não precisava saber disso. Seu semblante carrancudo me fez rir ainda mais. Felicity se aproximou da beira do lado de braços cruzados, completamente aborrecida. Ergui as sobrancelhas e ela bufou.

— O que quer?

— Ah, eu que deveria lhe fazer essa pergunta.- brinquei.- Mas sabemos a resposta, não é?

Seus lábios se contraíram e um tom rosado tomou conta de suas bochechas. Ela estava com vergonha.

Muita vergonha.

Me aproximei, deixando a água ainda acima de minha cintura. O olhar de Felicity me acompanhou, recuando um passo.

— Eu não estava fazendo nada, ok? Apenas vi procurá-lo após sua fuga sem motivos.- desconversou. Andei mais uma vez.- Oliver…- me repreendeu, fechando os olhos, seu corpo se retraiu.

Sorri. O nível da água foi baixando, e ao finalmente chegar na beira, caminhei até ela, completamente molhado. Felicity cobriu os olhos, e eu segurei suas mãos, as retirando com delicadeza. Seus olhos azuis, tensos, encontraram os meus, e um alívio os passou ao notar que eu estava meio vestido.

— Por que…

— Você não apareceria se eu não disesse.- respondi, dando de ombros.

— Canalha.- me xingou, ri com sua indignação.- Isso não se faz, Queen!

— Olhar as pessoas também não se faz. Mas aqui estamos nós, sozinhos em um lago.- a vi revirar os olhos diante de meu tom sarcástico.

— Eu não estava olhando.

— Ah, estava sim. Mas não se preocupe.- cochichei.- Seu segredo está guardado comigo.

Felicity sorriu.

— Mas que honra.- ironizou.

— Eu sei.- pisquei. A olhei dos pés à cabeça, quando tive uma ideia, uma ideia muito boa.

Felicity, já me conhecendo, negou.

Não ouse.- ameaçou.

— É tentador.- nossos olhares se cruzaram.- Está refrescante.

— Oliver não. Oliver…

A peguei no colo, e antes que formulasse o próximo xingamento nos atirei nas águas. Felicity se agarrou em mim, assustada, e após retornarmos a superfície, seu olhar rabugento se dissipou, e ela gargalhou. O riso mais maravilhoso que eu já ouvira.

Seu libertino idiota!- reclamou, entre risos.

— Não parece zangada.- brinquei. Felicity sorriu.

— É difícil ficar brava com você.

Continuamos a nos olhar, tendo como som o leve balançar das folhas ao nosso redor. Haviam gotas de água no rosto de Felicity, que escorriam lentamente, passando por sua bochecha. O cabelo, embora em um penteado completamente ensopado, começava a pender, e eu senti uma vontade absurda de tocá-los. Suspirei.

Não podia.

Não deveria.

Mas eu queria.

Fechei os olhos, e tentei ignorar sua respiração próxima, ou até mesmo, o toque de suas mãos nas luvas molhadas, que seguravam meus ombros para não cair. Era o bastante para me torturar, enlouquecer, e voltar aos pensamentos nada cavalheiros de horas atrás.

Seu dedo indicador se ergueu até minha barba, e ao abrir os olhos outra vez, notei um brilho em seu olhar. Quente, hesitante e ao mesmo tempo sensual. Contive um gemido por sua mão descer por meu peito, e flexionar seus dedos, me torturando. Sempre sonhei que ela fizesse isso, e se eu pudesse sentir a sua pele…Ah. Felicity sorriu, e continuou a me tocar..

— Felicity…- a repreendi.

— O quê?- sussurrou em um sorriso travesso.

Encarei suas luvas, e em um lapso, apertei firme sua cintura e ergui minha mão livre para tirá-las. Felicity as recolheu antes de eu sequer chegar a tocá-las. De repente o clima mudou, seu corpo se tornou tenso e a senti tentar se desprender de mim. Mantive meu braço firme ao seu redor.

— O que foi?- perguntei preocupado. Estavamos tão bem e ela simplesmente…

— Estou com frio.- respondeu olhando para os lados. Suspirei.- Acho melhor sairmos. Podemos estar no campo mas ainda é um lugar público. Se alguém nos ver podem fazer…Comentários.- engoli em seco.

Os comentários.

Malditos comentários.

Daria tudo para deixar a sociedade londrina sem palavras por um tempo. Porém, do jeito que são, achariam outro jeito de se comunicar e falar da vida das pessoas.

A soltei. Por mais que eu tivesse a minha revolta, a reputação de Felicity era algo de extrema importância para mim. E se por minha causa ela fosse manchada…Ah, jamais me perdoaria. Voltamos devagar até a margem do lago, e ao sairmos, peguei minha camisa seca e a recoloquei. Felicity acompanhou cada movimento meu. Botão por botão, o que me fez arquear as sobrancelhas.

— Gosta do que vê?- provoquei. Revirou os olhos.

— Como alguém pode ter um ego tão grande?- perguntou ao torcer a saia de seu vestido.- Ah, Queen! Eu estou toda ensopada!

— Ninguém manda bisbilhotar.

— Eu não estava bisbilhotando!- se defendeu.

— Ah, claro. E Thea não está interessada no conde. Sei.

Seu olhar afiado me fez uma ameaça.

Nem.Uma.Palavra.- disse pausadamente.

Certo, ela estava brava. Se eu falasse mais correria o risco de ser jogado ao rio, mas não me contive.

— Vamos manter entre nós.- cochichei.- Mas como já disse, se quiser ver algo, pode pedir.- seu rosto ficou rosado.- Eu adoraria.

— Libertino.- xingou ao colocar as mãos na cintura.- Faz sempre esse show ao tirar as roupas?

Me aproximei, a fim de afetá-la.

— Só há um jeito de saber.- a senti estremecer.- Quer descobrir?

Felicity pressionou os lábios. E após minutos bufou, batendo o pé e voltando a andar.

— Você é um idiota.- resmungou. Ri atrás de si.

— Ah, eu sei. Por isso somos tão bons amigos.- Felicity parou, e ao me observar, notei uma linha tensa entre suas sobrancelhas.

Franzi o cenho.

— O que foi?

— Nada, só…- suspirou, balançando a cabeça.- Deixa pra lá.

— Seus mistérios hoje estão me matando, sabia?- Cruzei os braços.- Me diga alguma coisa.

Felicity ponderou.

— O que quer saber?

— Uma verdade.- a pressionei, sentindo meu coração acelerar.- Só uma verdade.

Levou um tempo até que a mesma disse, com os lábios hesitante, a seguinte frase:

— Estou com fome.- simplesmente respondeu em uma sinceridade notável.

Gargalhei voluntariamente, balançando a cabeça. Não era o que eu queria ouvir, mas ela havia dito uma verdade.

— Certo, vamos. Além de estar faminta não quero que pegue um resfriado.

— Por que será que eu pegaria isso, hein?- me deu um empurrãozinho no ombro, sorrindo.- Eu…Eu estava com saudades disso.- comentou em voz baixa. A olhei de esguelha enquanto caminhávamos.

— Do quê?

— Disso. De nós.— falou um tanto angustiada.- Na capital não podemos ficar tão próximos, mas aqui eu não preciso ligar se seguro em seu ombro ou não.- sorriu.- Além disso.- Tocou minha mão, me fazendo encará-la.- Estava com saudades de termos um tempo só para nós dois.

Sua frase me tocou de uma maneira inexplicável, e eu tomei um fôlego cheio de amor.

Como eu amava aquela mulher.

— Também estava com saudades.- murmurei.- Muita.

Mais do que ela poderia pensar.

Só de imaginá-la na Áustria…

Espantei os pensamentos mórbidos para longe e apreciei aquele momento. Felicity pareceu fazer o mesmo, e fechou os olhos em um sorriso discreto.

— Espero que Caitlin e Tommy não tenham sentido nossa falta.

— Pode ter certeza que não sentiram.- brinquei.- Eles formam um belo casal.

— Espero que ela o dê uma chance.- concordei.- Vamos?

— Vamos.

E assim seguimos, sem pressa, de volta aos pastos verdejantes. Caitlin e Tommy, como o previsto, conversavam sentados na grama, e não ousaram perguntar porque estávamos molhados. Montamos em nossos cavalos, e uma hora ou outra Felicity esbarrava no meu.

Teimosa.

Eu sentiria muita falta dela quando fosse embora.

Imediatamente me fechei, e o dia, que estava tão alegre, não poderia ter parecido mais melancólico para mim.

***

Mais uma noite tormentosa se passou. Não que as coisas estivessem estranhas, de certo modo, estavam extremamente calmas. Thea parecia nas nuvens com as cartas do conde Harper, porém, não fazia menção ao retorno à capital. Minha mãe nos repreendeu pelos trajes molhados, mas logo sorriu, concordando de forma discreta com a travessura. Fui me trocar, e após o jantar, me tranquei no escritório, me concentrando nos papéis quais eu já deveria ter assinado.

Porém Felicity não saia da minha cabeça.

Estava em todo lugar.

Na minha mente e, em meus sonhos mais perversos, sob meu corpo. Me tocando sem as luvas.

Aquilo não podia ser bom.

Principalmente pelo príncipe, e pela forma como Felicity falava dele.

Eu estava lá em seu primeiro encontro com aquele homem todo pomposo. Me mantive neutro, tentando soar amigável, mas não poderia estar mais angustiado. A formo como ele a olhou…A forma como ela o olhou! A Áustria era muito longe, eu não suportaria…Me ergui da cadeira, e em revolta, achei a garrafa de whiskey e me servi com uma dose. Uma batida suave na porta avisou que alguém entraria, minha mãe, que levou o olhar imediatamente a minha mão. Suspirei.

— Já estou grandinho para me dizer o que devo beber ou não.

Seu olhar, sempre analítico, foi de meus pés à cabeça, e sorriu ao pegar o copo de minha mão.

— Não estou o repreendendo por isso, mas sim por não ter a humildade de servir uma dose a sua mãe.

Sorrimos juntos. Peguei a garrafa e a servi. Minha mãe tomou o líquido com elegância, e após o finalizar, levou os olhos até a pilha de papéis.

— Problemas?- questionou.

— Só…Só não estou com muita paciência para lê-los.- apertei o dorso do nariz.

— Algo o aflige? Ou alguém?

— E voltamos ao seu assunto favorito.- sorri amargo. Contornei a mesa, ficando onde a cadeira estava.- Não cansa de bancar a casamenteira? Felicity está sendo cortejada pelo príncipe. Quantas vezes devo lembrá-la?

— Eu não disse o nome dela. Mas essa sua reação responde por completo a minha pergunta.- fechei os olhos.

Merda.

Eu havia caido em um dos truques de Moira Queen.

— Mãe…

— É óbvio o que está acontecendo. Vocês dois na sala…

— Não houve nada.- rapidamente expliquei.

— Eu sei querido.- sorriu.- Mas pode haver.

O príncipe está a cortejando.- repetir aquela frase que despedaçava meu coração.

— Ela não tem um anel, tem?

Balancei a cabeça, irritado.

— A senhora só deve estar querendo me enlouquecer.

— Eu só quero que seja feliz, Oliver.- aumentou o tom. Imediatamente a encarei.- Seu pai…

— Não fale dele.- a adverti.

— Eu sei que a morte dele o abalou muito. Mas você a ama. Não pode deixar esse trauma…

Não deixei que terminasse. Apenas sai, sentindo sua mão sob meu ombro, me impedindo de abrir a porta.

— Eu também sinto a falta dele. Mas não acho justo que algo assim tire a sua felicidade. Não quero que sofra. Você a ama.

Trinquei o maxilar.

— Às vezes ́ só isso não basta.

E sem olhá-la, abri a porta, caminhando a passos largos até meu quarto, onde passei o restante da noite pensando em suas palavras.

Em meu pai.

Em Felicity.

E na droga da temporada.

Sem que eu percebesse, amanheceu, e com muito esforço, cochilei.

***

Minha cabeça estava me matando.

E os sons, até mesmo o cantar dos passarinhos me aborrecia. Tomei meu café em silêncio, massageando minha cabeça. Não estava de mau humor, porém não podia dizer que estava bem. Thea apareceu sorrindo em um vestido rosa, divertida com algo. No entanto, me olhou com cautela ao notar meu estado de espírito. Se aproximou da larga mesa, pegando um bolinho e o entregando em minha mão. Agradeci, e o engoli em seco.

— Eu perguntaria se passou a noite em algum lugar, mas sei que não saiu.- comentou, me observando.- Então só posso deduzir que meu irmãozinho não dormiu bem.

Resmunguei, puxando mais um bolinho.

Thea sorriu.

— Parece um velhinho rabugento.- desdenhou.- Claro que o rabugento você já é, e o velhinho, pelo notar de suas expressões, não tardará a chegar.

A lancei um olhar mortífero.

— Não tem nada melhor pra fazer? O conde Harper também.- sugeri. Thea se sentou ao meu lado.

— Eu…Eu já escrevi uma carta.- disse sem graça. Seus olhos encontraram os meus, e notei, que era um dos raros momentos em que Thea ficava hesitante. Arrumei minha postura, a dando total atenção.

Thea engoliu em seco.

— Você…Você gostou dele?

Ela queria minha aprovação, claro. Não que eu não fosse apoiá-la. Independente de sua escolha eu estaria ali por ela, mas era verdade que não deixaria de colocar minhas perspectivas à mesa. Se fosse um sujeito ruim, falaria o que pensava.

Mas o Conde Harper não era um homem ruim.

Fingi seriedade enquanto pensava. Thea apertava as mãos, nervosa com minha demora. Levei a xícara à boca, dando um gole demorado no café.

— Ollie!- me cutucou. Acabei rindo.- Vai me matar assim!

— Ah, eu sei. Só queria ver até onde você poderia suportar.- brinquei.- Mas então, qual era a pergunta…Aí, aí Speedy!- a repreendi pelo belisquão.

— Você sabe o que eu perguntei. Fale logo.

Suspirei, e a observei profundamente.

— Ele parece um bom homem. A tratou com respeito. E pela minha pesquisa…

— Você o pesquisou?- disse chocada.

— …Ele é aceitável.- ignorei seu comentário.- E além disso.- sorri.- Dá pra ver que ele está apaixonado por você.

Suas bochechas tomaram um tom rosado, e sua mão segurou a minha, com carinho. Retribui o aperto.

— Se ele pedisse…Você aprovaria?

— Sim. Se ele pedisse, você aceitaria?- arqueei as sobrancelhas.

— Sim.- sorriu.

— Então não há com o que se preocupar.- a acalmei.- Eu espero que você seja muito feliz, irmãzinha.

Seus olhos marejaram e eu senti minha garganta secar. Eu a amava. Vi aquele serzinho chegar à nossa família, vi seus primeiros passos…E agora ela estava ali, me contando que planejava se casar.

Não poderia estar mais orgulhoso.

— Sei que você teve que cuidar de mim e da mamãe. Que teve que ficar no lugar do papai.- meu peito se apertou.- Só quero agradecer por todo o esforço comigo.Por me apoiar, e por me ajudar a crescer. Você se dedicou muito a nós. Às vezes me questiono se não está na hora de se dedicar a você.

Suspirei.

— A temporada…

— Thea, por favor, não.- pedi, em uma dor desconhecida até então por mim.- Esse foi o motivo para eu não ter dormido. Não me faça pensar nele outra vez.

Ela assentiu compreensivamente. Inclinou o corpo e deu um beijo em minha barba.

— Ficariam lindos juntos se quer saber.- sorriu.- Ela está conversando com Tommy na sala do piano.- piscou.- Vamos lá?

— Vamos.

E de mãos dadas seguimos, quando parei, chamando a atenção de Thea.

— Você mencionou a temporada.- falei, pensativo.- Se é tão importante, por que estamos aqui?

Seus lábios se entreabriram, e pude perceber que ela estava nervosa.

Sorri sarcasticamente.

Havia mesmo algo.

— Ollie…

— Estou cansado de ser deixado no escuro. Alguma coisa muito errada está acontecendo, eu sinto.- falei angustiado.- e vou descobrir o que é. Por bem ou por mal.

***

O dia estava sendo estranhamente calmo. Fiquei pensando em minha conversa com Thea e sua reação ao ser questionada pelo motivo real de estar na casa de campo. Eu amava aqui, sem dúvida alguma. Mas não era idiota.

Estava acontecendo algo.

Grave.

E não queriam me contar.

Toquei duas teclas solitárias, quando decidi tocar uma melodia antiga. Era bela,harmônica, e ao mesmo tempo, enigmática. Me deixei guiar por um par de olhos azuis, e nos mistérios que eles andavam me transmitindo ultimamente. Ensurdecedor, porém com uma beleza mística.

Era como eu via Felicity às vezes.

Um amor que me enfeitiçou. Agitado. Místico por sua natureza, jogando pistas que eu demorava a decifrar.

Meus dedos desaceleraram, fazendo os últimos arranjos, até que por fim, me desconectou daquele universo paralelo. Abri os olhos, e encontrei Felicity sorrindo.

— É muito bonita essa.- comentou.

— Também gosto.- sorri.- Essa é…Especial para mim.

— Por quê?

Porque me lembra você- uma voz sussurrou.

A ignorei, dando de ombros.

— Apenas me sinto bem com ela.- seus olhos estavam atentos, como se aguardasse outro tipo de resposta.- Thea a deixou em paz?

— Está com sua mãe no jardim.- respondeu, olhando aos arredores.- Sabe o que eu adoraria fazer?

Meu olhar serviu como pergunta.

— Esgrima.

— Ah não, sem chance.- ri.- Rasgar roupas não estava incluso no meu dia.

— Já assumiu a derrota? Muito sábio, vossa Graça.- revirei os olhos.

Ela estava me provocando, sabia que eu odiava que ela me chamasse assim.

— Tudo bem então.- me ergui, confiante.- Que vença o melhor. As coisas…

— Eu já peguei.- a olhei chocado.- Só estava aqui, tentando convencer você a ir logo.- balancei a cabeça, divertido.

— Você é uma criatura perversa.

— Ah, eu sei.

A acompanhei, achando graça da situação. Fomos em direção oposta a que minha mãe e irmã estavam, pegando as espadas e colocando os coletes e capacetes de proteção. Me posicionei, e a encarei, em um desafio claro.

— Lembre-se: não pode ser tocada. Quem marcar três pontos vence.

— Eu lembro das regras.- rebateu, irritada. Sorri.

Felicity era muito competitiva.

Sempre usava isso ao meu favor.

— Não será como uma de suas danças tediosas com vossa alteza.

Continuei a provocação, a fim de distraí-la. Começamos a andar em círculos, em alerta. Empurrei minha espada na frente, que foi bloqueada com louvor.



— As danças não são tediosas.- tentou me acertar. Desviei.

— Ele me pareceu bem chato.

— Você disse que o achava aceitável.

— Achar aceitável não é achar legal.- sorri ao quase acertar sua barriga.- Cuidado, princesa.

Seus golpes ficaram rápidos e violentos. Antes que eu tivesse chance, ela colocou a ponta de sua espada em meu peito.

Um ponto.

Podemos melhorar.

— Vossa alteza parece nervosa.- brinquei.- consigo ver, por trás desse capacete horrível, a fúria em seus olhos.

— Eu não…

Aproveitei que sua guarda baixou, e a toquei na barriga.

Um a um.

— Alguém se distraiu…

— Você é extremamente irritante, Oliver, sabia disso?

— Você faz questão de me lembrar, obrigafo.- agradeci, e escutei seu riso. Nos posicionamos outra vez.- Pronta?

— Pronta.

Retornamos a nossa batalha. Consegui tocá-la em um contragolpe, e a mesma me acertou em um bloqueio mal executado. Estávamos empatados, ambos concentrados, famintos pelo título de campeão. Decidi ir mais pra frente, a cercando. Felicity deu passos para trás, e eu a segui, sendo impedido de tocá-la por suas defesas. Em um momento a mesma escorreu, e caiu para trás.

Acho que temos um campeão.

— Mas que pena.- tirei o capacete, a vendo no chão.- Quer ajuda?

Felicity aceitou minha mão, e antes que eu pudesse ver, ergueu sua espada em um movimento rápido e me tocou.

Touché.— riu, me deixando desacreditado.

— Eu fui ajudar você, e você me usou?- fingi indignação.

— Nunca abaixe a guarda.- me lembrou. Balancei a cabeça.

— Que mundo vivemos. Nem para ajudar as pessoas podemos confiar mais.

— Deixe de drama e deite logo aqui.

Ergui os braços em rendição, e deitei ao seu lado. Felicity deitou sua cabeça em meu ombro, suspirando profundamente, Seu perfume suave invadiu minhas narinas, e fechei os olhos, apreciando senti-lo tão de perto.

— Estava sonhando com isso desde que cheguei.- sussurrou. Sua mão, coberta pelas luvas como de costume, segurou a minha.

— Em ganhar de mim na esgrima? Deu pra ver que se esforçou bastante.- seu riso me contagiou.

— Não sei bobo. Em estar assim com você.- abri os olhos, encontrando os seus, tão próximos.

— Sonhou é?- sorri, realmente como um bobo.

— Era bom?

— Era.

— É bom agora?

— Sim. E não diga que é um bom travesseiro.- me repreendeu no momento em que me preparava para falar a frase.- Libertino arrogante.

— Lady insensível e terrível.- sorriu. instintivamente olhei para seu ombro, que fora exposto por nossa brincadeira.

— Agora não.- disse em tom baixo, quase sonolento. Felicity se aconchegou mais em mim, e fechou os olhos.- Vamos apenas aproveitar o momento.

Concordei, e a abracei ainda mais, ouvindo apenas o som de sua respiração e da floresta. Ter seu corpo ao meu, tão sereno e quente me deu uma sensação de paz inexplicável. Imaginei como seria acordar com ela todos os dias, imaginei como deveria ser vê-la dormir feliz todos os dias.

O homem que tivesse isso seria o mais sortudo do mundo.

Uma hora se passou até que eu decidisse levá-la para dentro, em um sono pesado. Minha mãe arqueou as sobrancelhas ao me ver carregá-la no colo, e eu apenas dei de ombros, subindo as escadas. A arrumei na cama, onde em um suspiro profundo continuou a dormir, e eu, encantado com a visão, sai, e me tranquei no escritório, evitando perguntas.

***

A pilha de papéis não diminuía. Ao contrário, quanto mais eu os assinava, mais parecia que duplicavam. Esfreguei o rosto agoniado, encarando a janela, e os raios solares, que daqui a poucas horas se despediram em um espetáculo de cores. Um toque suave até a porta me chamou atenção. Era Felicity, já disposta.

— Mas que cara amarrada.- brincou ao entrar.- Muita coisa?

Apontei para a mesa sem vontade alguma.

— Muita coisa.- repetiu com pesar. Pegou o papel mais próximo e o leu, atenta.- Problemas no condado?

— Algo do tipo.- me levantei, dando a volta na mesa para ficar ao seu lado.- Estão alegando que têm direito às terras.

— Mas são de sua familia.- lembrou.- Esse homem não pode simplesmente chegar e falar que é dele.

— Já tentamos conversar, mas de nada adiantou.- bufei, irritado.- E o pior são os trabalhadores. Estão apavorados com a possibilidade de perderem suas casas.

A mão de Felicity subiu pelo papel até o nome do sujeito.

— Ele apresentou algum registro?- perguntou de repente.- Alguma escritura?

— Não.

— Então não podem fazer nada. Se persistirem, leve a questão ao rei.

— A reforma agrária…

— A reforma agrária, se aprovada, só vai ser disponibilizada a divisão de terras para gerar empregos para as pessoas. Pelo o que está escrito aqui, este senhor não tem intenção alguma de fazer isso. Será barrado.

Encarei seu rosto com admiração.

Felicity notou meu olhar, e devolveu o papel à mesa, sem graça.

— Eu já disse o quão brilhante você é?- segurei suas mãos, e as beijei.- Porque você é.

— Obrigada.- sorriu.- É só usar o pensamento. Sabe o que é isso, né?

Ri de seu tom. Felicity me acompanhou e puxou o braço. devo ter segurado suas luvas com muita força, ou o destino queria que aquilo acontecesse, pois em um segundo suas mãos estavam cobertas, e no outro completamente expostas. Notei o hematoma em seus dedos, e o terror que passou por seus olhos.

Aquilo não era mais brincadeira.

Eu não deixaria passar.

Meu corpo ficou tenso, e tentei, a todo custo, fazer uma pergunta.

— Não foi na…

— Não repita essa maldita frase pra mim, por favor.- a cortei, sentindo meu corpo fervilhar. - Desde que chegamos você tem escondido algo de mim. Primeiro o ombro, agora isso?- Apontei, seu rosto se retraiu, choroso.- O que aconteceu?

Ela não respondeu, o que me irritou mais.

— Oliver…

— Alguma coisa aconteceu para você estar aqui.Que tipo de dama, sendo cortejada pelo príncipe e se tornando o diamante abandonaria a temporada sem mais nem menos?- questionei, confuso.- Não faz sentido. Qual motivo uma dama…

Minha voz sumiu imediatamente.

Comecei a revisar os acontecimentos. Sua forma de se esquivar das perguntas, a tristeza em seus olhos que muitas vezes eu não entendia…

“ Não posso, não agora”- disse aflita em uma de nossas discussões.

A compreensão me tomou por completo, e por segundos fiquei estático. Se fosse verdade, se o que eu estava cogitando realmente tivesse acontecido…

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Ficou difícil respirar.

Quem?- minha voz saiu fria, sem emoção.

Felicity engoliu em seco.

Pelo amor de Deus, quem Felicity?- Aumentei o tom de voz.

— Malone.

E de repente, eu enxerguei vermelho.

Imaginei socando aquele conde desgraçado. Quebrando seu nariz, e o empurrando com toda força contra uma parede. Ele havia…Meu estômago se revirou, e fiquei ofegante.

— Ele…Ele que machucou você?

Ela assentiu, cabisbaixa.

Eu vou matá-lo.

Abri a porta com brusquidão, e caminhei a passos pesados pelo corredor. Os clamores de Felicity pediam para que eu parasse, mas eu não podia…Iria até a capital, e deixaria Malone tão quebrado que ele se esqueceria de quem era. Uma mão delicada agarrou meu ombro, me impedindo de prosseguir. Encontrei seus olhos, agitados como um oceano, e vermelhos pelo choro segurado.

— Não faça isso.- pediu desesperada.- Por favor.

— Ele tocou em você.- trinquei o maxilar.- A machucou. Quando?

— Na noite do baile em que você foi embora mais cedo.

Meu mundo girou.

Senti vontade de vomitar, e depois de terminar, de me repreender. Fui embora aquele dia por não suportar vê-la com o príncipe. Se eu tivesse ficado…Se eu tivesse ficado, talvez Felicity não tivesse corrido perigo. Se eu fosse menos egoísta…Tentei respirar, mas o ar ainda não vinha.

Eu só via Malone.

E seu rosto ensanguentado.

— Ele que machucou seu ombro?- consegui, com muito esforço, perguntar. Felicity hesitou.- Sem mais mentiras.

— Foi ele.

Meu corpo tremeu.

— Céus, eu vou acabar com aquele filho da puta.

Voltei a caminhar possesso. Se ele achava que faria o que quisesse, que podia fazer o que quisesse… Felicity continuou a me chamar, mas eu estava desesperado demais. Cheguei ao hall, quando Tommy apareceu, em alerta. Seus olhos encontraram os meus, e ao olhar Felicity, em uma conversa silenciosa, compreendeu o que estava acontecendo.

Ele sabia, claro.

Sorri amargo.

— Cara…

— Tommy.- minha voz falhou.- Ele…Ele a machucou…- o encarei, angustiado.- Aquele desgraçado merece pagar.

— Não posso deixar que faça isso.

— “Deixar”.- repeti, com graça.- Todos vocês mentiram para mim, e agora se acham no direito de deixar alguma coisa?- perguntei, irritado.- Eu vou à capital.

— E depois? Vai fazer o quê?- questionou.- Apagar o cara?

Tentei passar, mas Tommy me empurrou, fazendo com que eu voltasse.

— As pessoas vão comentar, Oliver.- ri sem humor.

— Para uma pessoa que fugiu a vida toda de julgamentos, dizendo que não se importava, eles parecem te afetar muito.

Tommy me encarou seriamente.

— Eu deveria te dar um soco no meio da fuça, mas não vou fazer isso porque você está alterado.- balancei a cabeça em negativa.- Se fizer isso, vai dar o que Billy quer. Ele vai fazer isso para alegar que algo aconteceu entre ele e Felicity. Se não pensa na sua reputação, pense na dela.

E eu desmoronei.

Toda minha raiva, ódio e fúria não forçava mais minhas pernas a irem embora. Ele havia tocado em meu ponto fraco, e quando o olhei, pedindo ajuda… Tommy apenas segurou em meu braço, me retirando da casa, trocando poucas palavras com Felicity. Fomos para sua casa, e bebemos juntos. A ideia de ir a Londres voltou a me perturbar, mas o corpo pesado, misturado ao álcool foram o bastante para me fazer dormir.

***

Acordei com uma tremenda dor de cabeça e o corpo completamente dolorido.

Talvez fosse pelo fato de eu ter apagado no sofá. Lembrava com precisão do dia anterior, e de meu comportamento ridículo. Havia sido grosseiro com ela.

Com Tommy.

Enquanto quem merecia a minha ira era aquele filho da puta.

Céus, eu ainda queria matá-lo.

Os raios solares predominavam na sala de Tommy. Me sentei ao sofá, deixando o corpo curvado enquanto apoiava os braços em meus joelhos, enjoado, quando ouvi passos se aproximando. Eu sabia quem era, tanto que apenas estiquei a mão, pegando o copo com a mistura que nos salvou de uma ressaca nos tempos de Oxford. Bebi o líquido em um único gole, limpando a boca.

— Obrigado.- agradeci, com a voz arrastada.- Não só por isso.- finalmente tive coragem para olhá-lo, e enfrentar as consequências de minhas ações. Ele não parecia bravo, apenas…Pensativo, com um quê de recriminação e pena.

Me senti pior, e em protesto, voltei a me encostar no sofá, gemendo de dor.

— Pensei em levá-lo para cima. Mas devido a nossa pequena discussão ontem achei que merecesse acordar fudido.- rimos, sem humor.

— Eu mereci.- assenti, culposo.- Peço perdão.

— Tudo bem.- deu de ombros, se sentando ao meu lado.- fazemos loucura por amor, não é?

Suspirei profundamente, em um lamento.

— Por que não me contou sobre o que aconteceu com ela?- questionei, triste.- Eu poderia ter a acalmado, pensado em algo.

— Como fez ontem?- perguntou em tom irônico.- Sabemos que você é explosivo.

Não respondi. Tommy continuou.

— Ela me contou como aconteceu.- murmurou.- Ele a cercou no jardim.- fechei as mãos em punho, e meus ombros ficaram rígidos.- Ela o socou.

O olhei, chocado.

— Por isso o hematoma na mão.- deduzi, impactado. Um sorriso orgulhoso tomou conta de meus lábios.- Ela é íncrivel, né?

— É sim.- comentou.- O restante da história pergunte a ela. É pessoal demais.- assenti.

— Eu quero tanto acabar com aquele imbecil.- balancei a cabeça, irritado.- Não é justo ela se esconder enquanto ele fica livre, se achando o dono do mundo. É errado.

— Eu concordo com você. Mas temos que ser realistas, Oliver. Malone jamais assumiria que levou um soco de uma mulher. Ninguém os viu. E se você for até lá e o socar, ele vai usar isso para obrigá-la a se casar com ele.

Um calafrio me percorreu, e a garganta se fechou, seca. Só ao imaginar aquele brutamonte casando com ela…Meu corpo se encolheu, e Tommy assentiu, entendendo meu estado de espírito.

Aquilo não era uma opção.

— Além do mais, sei porque ficou tão revoltado ontem.- o questionei.- Você se culpa.

— Tommy…

— Saiu cedo do baile porque não soube lidar com o que viu,e isso o consome, porque se disser a alguém a real razão pela qual o fez ir embora cedo, vai assumir o que sente.- me levantei, angustiado.- e você sabe o que sente. Mas não faz nada. Tem a felicidade nas mãos, mas assisti passar como um covarde.

Trinquei o maxilar.

— Cuidado com o que diz, Tommy.- o adverti em tom baixo.

— Vai fazer o quê? Me bater?- desafiou.- Ser amigo não é somente dizer o quão incrível e bom você é. Um amigo de verdade fala quando você está errado também porque se importa com você. Se não aguenta isso, sugiro que volte a tomar drinks chatos com os homens pomposos de Londres, que se atiram no chão para ter a atenção de vossa Graça..— Tommy…– Me preocupo com você, Oliver. Quero que seja feliz.

— Eu sei.- e sabia mesmo. Tommy era minha familia.

— Não consigo ficar para o vendo deixar a oportunidade de ser feliz passar.

— E o que você sugere?- gritei, angustiado.- Que eu me declare? Que diga que: sim, eu amo aquela mulher, e não suporto vê-la com o príncipe.Que tenho falta de ar só ao imaginá-la ir para a Áustria? E me despedaço, dia após dia, por saber que ela pode se casar a qualquer momento?

O encarei, ofegante pela minha explosão. Tommy sorria, e entendi que, nossa discussão nada mais foi que um incentivo para eu finalmente assumir o que sentia.

Me joguei no sofá outra vez, deprimido.

— O que vou fazer, Tommy?- perguntei, com a voz falhada.

— Diga o que disse para mim.

— Ela não sente o mesmo.- meu peito doeu.

— Nunca vai saber se não tentar.- sorriu ao cruzar os braços.- O duque Queen está amando. Quem diria.

— Você também. Não pense que não notei seus olhares para Caitlin.- o vi ficar sem graça.- sabe que vai ter muito trabalho, não é?

— Estou trabalhando nisso, e ao menos eu já comecei.- se vangloriou.- Você, meu caro amigo, tem uma longa trilha a percorrer.

***

Era noite quando retornei ao Casarão Queen.

Minha camisa branca estava desabotoada no começo, e as mangas arregaçadas. Eu estava amassado, e andava sem vontade pelos corredores. Após minha grande revelação com Tommy, passamos a tarde falando de nossos amores. A história de Tommy era linda, triste, mas linda, e a minha…Ri sem humor.

Eu era patético.

A essa altura todos já deveriam estar dormindo, no entanto, quando passei perto de meu escritório, vi uma vela acessa. Talvez alguém tivesse a esquecido ali, e por segurança, caminhei em direção aquela luminosidade. A porta estava encostada, e quando a abri, devagar, encontrei a figura de meus tormentos, e meu coração doeu. Felicity estava encolhida perto de minha estante de livros.

E chorava baixinho.

Aquela cena me destruiu.

Fechei a porta, captando sua atenção. Seus olhos azuis brilhantes se ergueram, assustados, e os arregalou ao me ver. Felicity se levantou, e trajava uma camisola de seda branca.

— Não…Não pensei que voltaria.- disse com a voz embargada.

— Estava com medo de voltar.- confessei baixinho. Observei seu rosto marcado por lágrimas.- vem aqui.

E ela veio, onde desmoronou.

Se sentou em meu colo, e nos acomodamos em minha poltrona, onde aconchegou seu rosto na curvatura de meu pescoço. Eu a abraçava fortemente, balançando seu corpo junto ao meu.

— Me perdoe.- sussurrei após um tempo.- Não deveria ter agido daquele jeito.

— Foi um idiota.- fungou ao apertar minha mão.

— Eu sei É que…- fechei os olhos, e inalei o perfume de rosas que exalava de seu cabelo.- Só de imaginar aquele filho da puta fazendo algo com você, e que eu não estava lá pra te proteger…- trinquei o maxilar. Felicity, que estava de costas para mim, virou seu corpo, deixando suas pernas de lado e me encarou, colocando uma mão em meu ombro para se apoiar.

— Não foi culpa sua.

— Sinto como se fosse.

— Mas não foi.- disse séria.- O único culpado é ele.

— Eu sei.- fechei os olhos ao sentir sua mão acariciar minha barba.- E sei porque não me contou. Tommy disse que o socou.- abri os olhos a tempo de ver seu sorriso.- Foi bom?

— Excelente.- disse divertida, até seu sorriso morrer.- Ele me seguiu até o jardim.- comentou, com o olhar distante, como se voltasse a aquela maldita noite.- Eu disse que não queria, mas ele não se importou. Era como se…Como se o que eu quisesse não valesse nada.- me encarou de repente, com um peso indescritível.- E então eu o soquei, e corri. Como se eu fosse a errada.- neguei, Felicity apenas deu de ombros.- Agora tenho que ficar na moita para aquele idiota não achar um jeito de me forçar a casar com ele, porque a palavra de uma mulher não tem valor.

— A sua palavra tem valor pra mim.

— Você…Você é diferente, Oliver. É bom, um cavalheiro…- seu olhar intenso me fez engolir em seco.- É único.- continuou a acariciar meu rosto com carinho.- O mundo não tem homens como você. E a mulher que o tiver…- a vi fazer uma pausa, como se se esforçasse a dizer.- vai ser a mais feliz do mundo.

— E o homem que a tiver…- falei no mesmo tom, sentindo meu peito despedaçar.- será o mais feliz do mundo.- meus olhos arderam, e eu pisquei, mas ao tentar olhar para outro lado fui retido a olhar para frente, pois Felicity segurou meu queixo.

E eu a encarei, por minutos, sem dizer uma única palavra.

— Acha…Acha que vou ser feliz?- questionou em tom baixo. Assenti, hipinotizado.- Tenho medo de não conseguir.

— Você vai. É inteligente, tanto que me questiono o quanto uma universidade aprenderia com você.- Felicity sorriu, e seus lábios se arquearam levemente, e eles estavam perto…- É brilhante. Vai mudar o mundo.

— Acredita mesmo nisso?

— Acredito.

Não conversamos mais.

Felicity se remexeu, e pela primeira vez, notei como estava. Seus cabelos dourados, sempre arrumados em um penteado, estavam soltos, e desciam por seus ombros, ultrapassando seu peito e as mãos, ah…As mãos estavam nuas, e meu desejo oscilou dentro de mim.

Estávamos sozinhos.Não completamente.

Mas estávamos.

E merda, a luz das velas a deixava ainda mais atraente.

Respirei fundo. Por mais que eu quisesse beijá-la, tocar seus cabelos e fazer amor com ela, eu não podia. Era um cavalheiro, e eu a tinha em alta conta. Ficava cada vez mais difícil ser racional com seus olhos, que pareciam ler cada pensamento meu. Prendi a respiração quando ela deslizou sua mão por meu ombro, parando na gola de minha camiseta, encarando a pele exposta.

Merda.

Ela mordeu os lábios, e eu vi desejo. O mesmo do jardim, onde olha olhou para aquele mesmo local, e eu me imaginei com ela. Foi uma imaginação tão forte que eu tive que deixá-la, e tomar um banho gelado para esfriar meu corpo. Isso não aconteceu agora. Eu me sentia quente, fervilhando e ela…Ah, ela parecia igual.

Seus dedos tocaram o tecido, cuidadosos, e então pararam no botão fechado. Felicity suspirou, e então, estufou o peito, como se reunisse coragem e o desabotoou. Um, dois, três… Apertei sua cintura, a mantendo em meu colo e dando firmeza para prosseguir. O tecido foi aberto, e eu arfei. Arfei com seu olhar, e o toque de suas mãos, que elétricos, me espalmaram. Gemi baixinho, e trinquei o maxilar.

Aquilo era errado.

Aquilo era errado.

Inferno, eu não podia!

Aquilo fora o que eu sempre sonhei, mas de um modo diferente pois, a cada toque, sua pele na minha, passando por meu abdômen, subindo, eu me sentia errado. Era uma dor masoquista. Eu gostava, mas doía em saber que eu jamais poderia tê-la da forma que queria. Felicity parou, e me encarou, preocupada.

— Doí?- perguntou. Ri ao negar.- Parece que está sofrendo.

— Eu estou, mas não por isso.- suspirei.

— Você gosta?

— Mais do que deveria.

Isso foi motivo o bastante para fazê-la continuar.

Felicity me tocou em um movimento de vai e vem delicioso. Ela estava me fazendo gemer, apenas com o toque de suas pequenas mãos em meu peito. Aquilo era…Ah, aquilo era diferente de tudo. Ela me tinha completamente, e eu estava…Estava perdido. Minha camiseta foi atirada ao chão, e ela passou a tocar meus ombros, meus braços. E desceram…

Inferno como era bom.

Sua pele era macia, e ao meu ver, combinava completamente com a minha. Era uma combustão, em que, com poucos ingredientes, se formava uma explosão enorme. Eu estava à beira de explodir, e deixar a ética de lado para beijar seus lábios em um beijo fervoroso. Estava quase perdendo o controle…

Quase…

Até que ela me beijou.

E eu me permiti sentir. Me entreguei a aquela paixão, ao calor de nossos corpos. A puxei pela cintura,a apertando, enquanto com a outra mão, acariciei seu pescoço, segurei seus cabelos. Os apertei, e enterrei minha mão ali. Felicity arfou em nosso beijo, onde eu explorava seus lábios macios em uma dança calma. Pedi a passagem com a língua e toquei a sua, que tímida, respondeu. Ela não parava de corresponder.

Mas eu precisava que parasse.

Eu precisava parar.

— Felicity…- deslizei meus lábios por seu pescoço, e a mordi. A mesma me abraçou, e impulsionou meu rosto a ter mais atrito com sua pele ao apertar meu cabelo.- Não devemos…

— Ah, devemos sim.- gemeu. A mesma se afastou, e eu a assisti se sentar de frente para mim, deixando suas pernas caindo cada ao meu lado. Pressionei sua cintura, e voltei a beijá-la, devagar, enquanto explorava, com uma mão livre, sua coxa a mostra pelo vestido.

Não posso…isso é complicado demais pra mim.- tentei, sem esforço, explicar, enquanto seu corpo se balançou contra o meu, e voltou a me tocar.- Eu desejo você. Mais do que gostaria de admitir, mais do que deveria desejar. E você..

— Eu também o desejo, Oliver.- murmurou.- Tanto que chega a doer. E eu quero…

— Não devemos.- voltei a repetir. Nossos narizes se encostaram, e eu fechei os olhos, tentando me controlar.- Ter você assim em meu colo, me tocando sem a porcaria daquelas luvas…- trinquei os dentes,e voltei a segurar seu cabelo, a fazendo olhar para mim.- Sempre tive vontade de tirá-las, sabia?

— É?- murmurou ao encostar nossos lábios. Beijei o canto de sua boca, e logo após seu rosto.

— Se eu pudesse, as queimava,e tocaria em você sempre que pudesse. Aquelas luvas me enlouquecem, Felicity. Não me deixam sentir você, e eu quero, ah…Ah como eu quero sentir você. Tocar você…- seus seios ficaram pontudos, e eu gemi com a visão.- Eu quero fazer tantas coisas com você.

E eu queria, queria mesmo.

Meu autocontrole se foi, e eu voltei a beijá-la. Notei o hematoma em seu ombro, beijei a pele exposta ali, com carinho. Só ao imaginar o que ela passou… Felicity fez carinho em minha nuca, como se soubesse o que eu pensava. Toquei seu rosto com amor, e gravei cada detalhe. Seus lábios carnudos entreabertos, rosados por nossos beijos. Os cabelos bagunçados, a fina camisola que quase caia…

Era um paraiso.

Que me faria queimar no inferno, porque eu amava, mas sabia que não poderia tê-la.

A manga de seu vestido caiu, e eu engoli em seco. Sabia que não podia, que estava errado. Mas eu a queria tanto… Os toquei com as mãos trêmulas, e ela percebeu meu nervosismo, pois as segurou, e incentivou a continuar. Seu corpo arqueou, e ela era a mulher mais bela que eu já havia visto. Tão delicada, e com o rosto repleto de desejo… Desci meus lábios até ali, tendo o privilégio de ouvir seu arquejo no pé do meu ouvido. Ela se preparava para descer a outra manga, quando ouvimos passos. A consciência me tomou conta, e eu paralisei, em choque. Não falamos, mal respiramos, apenas…Apenas nos embriagavamos em nossas respirações. Sejá lá quem fosse, desapareceu, mas foi a pessoa essencial para ver a merda que eu estava fazendo.

— Deve ter sido algum trabalhador da casa.- sussurou.

—É.

Felicity notou minha mudança de postura, pois se levantou, ajeitando seu vestido. Também me levantei e esfreguei o rosto, sufocado. O cheiro de rosas…

Maldito cheiro de rosas…

Estava impregnado em mim.

Recolhi minha camiseta, e a vesti, sem saber o que fazer.

— Oliver…

— Você vai casar.- foi tudo o que consegui dizer, sem olhá-la.

— Eu…

— O príncipe vai pedir a sua mão.- lembrei, aflito.- Eu não posso. Simplesmente não posso, lis.- minha voz falhou. Seu rosto endureceu.

Não pode ou não quer?

Resmunguei, e andei a sala de um lado para o outro.

— Você…Você não entende.- falei desesperado. Felicity riu.

— Tudo o que eu vejo é um libertino sendo um libertino.- acusou, raivosa.

— Jamais repita isso.

— Não me arrependo do que fizemos. Mas ao menos eu tenho coragem em admitir isso e olhar nos seus olhos.- encolhi os ombros.- Mas você aparentemente é covarde demais para fazer isso e assumir…

— Droga, Felicity…- apertei o dorso, agoniado.- Pare.

— É um covarde.

— Mas o que você quer que eu diga?- gritei, ofegante.- Que estou apaixonado por alguém que não posso ter?

Seus lábios se entreabriam, chocados.

— Você…

— Eu não posso te ter, Felicity. Por mais que eu queria desesperadamente isso.- confessei, quebrado.

— Talvez não queira tão desesperadamente assim.- comentou baixinho.

E aquilo…Aquilo me destruiu.

Não consegui falar uma única palavra, apenas a assisti sair com um olhar decepcionado, quão eu nunca esqueceria. Joguei minhas coisas no chão, e desabei na cadeira, impregnado por seu cheiro, e me sentindo completamente sujo. Não consegui dormir, e no dia seguinte, descobri que Felicity havia ido embora.

Para o meu desespero, eu não a vi mais.

***

2 meses depois.

Eu ainda não havia a visto.

Se completavam hoje, dolorosamente, dois meses desde que havia visto Felicity. Aquela noite permanecia em mim, viva, em cada parte do meu corpo. Em meus ombros, meu peito, e cada lugar que ela tocou permaneciam marcados. Marcados por seu toque ardente, o beijo recheado de paixão, e o perfume, o maldito perfume, que impregnava minhas narinas. Não usei mais azul, muito menos quis ver tulipas em minha frente. Minha mãe soube que algo havia acontecido, mas não ousou perguntar. Era claro que eu sabia de Felicity. Pelas últimas notícias, ela e vossa alteza estavam bem próximos, desde bailes, chás da tarde no castelo real e até mesmo, passeios no parque.

Eu estava enlouquecendo.

Mas não tinha o direito de reclamar, afinal, eu a deixei ir.

Covarde.

Tommy também estava na capital, e pude perceber que estava aflito. Saia mais do que eu poderia contar, e sempre que voltava estava sério, e até mesmo triste. O questionei uma ou duas vezes, mas o mesmo apenas me olhava, e eu já sabia o que era.

Caitlin Snow.

Ele comentou que algo havia acontecido em nosso tempo na casa do campo, mas não especificou o que. Agora ele estava aqui em Londres, lutando pela mulher que amava, mesmo que recebesse uma quantidade de nãos absurdas. E eu…Eu permanecia aqui, parado.

Um completo idiota.

Tommy sabia o que eu estava passando. Tentou me animar, em vão. Decidi me concentrar nos negócios da família, e passava, amargamente, noites em claro trancado no escritório. Ainda tinha forças para cuidar de Thea, que notou minha postura carrancuda, mas eu não deixei aquilo afetá-la. Era o seu momento.

E eu não estragaria isso.

Tanto que nos bailes, minha mãe passou a acompanhá-la sem mim. Não suportaria ir lá e estragar sua noite. Além disso, eu poderia vê-la.

Aquilo era uma dor que eu não suportaria ainda.

Respondi, sem vontade, ao toque na porta. Minha mãe entrou, elegante e impecavel como sempre.

— Bom dia.- cumprimentei.

— Se arrume, vamos ao parque hoje.- arqueei as sobrancelhas.

— Perdão. Eu ouvi “vamos”?- indiquei o plural.

— Precisa sair com sua irmã. Os pretendentes…

— Ela já tem um, e você sabe muito bem quem é. Estava até falando com a ex-condessa sobre o casamento do filho dela, e de que tipo de torta o conde Harper gosta.- minha mãe entreabriu os lábios.- Posso não participar de forma interativa das conversas, mas presto bem atenção.

Ela cruzou os braços e me encarou seriamente.

Devolvi o olhar, já sabendo que havia perdido.

— Não quero que vá a praça por sua irmã;

— Eu sei, e agradeço sua honestidade- sorri sincero.- Eu estou bem, mãe.

— Não, não está. Eu ficaria muito feliz se você nos acompanhasse.- pediu secretamente.

— Me…Me espere no hall.- suspirei, desanimado. Minha mãe sorriu.

— Ponha uma roupa bonita. Parece um bêbado nestes trajes.

Ri por seu comentário.

Troquei de roupa, colocando um casaco social marrom por cima de minha blusa social branca. A bota e a calça, ambas pretas, me deixaram apresentável, e eu desci, vendo a animação de Thea ao finalmente me ver.

Eu estava sendo um irmão de merda mesmo.

— Olha só quem resolveu aparecer.- provocou.- Até me esqueci que estava aqui, irmãozinho.

— hahaha. Muito engraçado speedy.- a dei um beijo na cabeça.- O senhor Harper está nos esperando?

— Está.- sorriu animada.- Ele gosta de você. O acha intimidante, mas pelas conversas que tiveram, o achou uma pessoa boa.

— Realmente aprecio. Aparentemente estou perdendo minha postura marrenta e aterrorizante do Duque Queen.- a vi rir.- Pareço mal com essa cara?- fiz carreta.

— Aterrorizante

— Então agora podemos vê-lo.- peguei seu braço.- Vamos?

— Vamos.

***

O costumeiro clima de Londres permanecia o mesmo. Estava nublado, e uma brisa gelada soprava pelos ingleses. Haviam patos no lago, e pessoas, apesar do frio, faziam piqueniques. Logo, encontramos o conde Harper, que sorriu como um bobo ao ver minha irmã. Conversamos um pouco, quando os deixei “sozinhos”, os olhando de longe com minha mãe. A mesma estava com o braço entrelaçado ao meu, e cumprimentava cada pessoa que passava. Suspirei, entediado.

— Ser um duque é muito mais que um título, filho. As pessoas tem que gostar de você.

— Elas gostam de mim.- me defendi, e fingi um sorriso a outro cidadão.

— Eu sei. E sei que gosta de parecer intimidador…

— Os negócios…

— Mas recomendo que apareça mais.- entendi seu ponto.

— Mãe…

— Vai ter que ser forte agora.

Seu tom soou completamente preocupado. Ela estava tensa, e pelo toque discreto em meu braço queria que eu permanecesse calmo. Cheguei a abrir os lábios, mas rapidamente os fechei ao notar quem ela olhava. O príncipe, e…

E Felicity.

Que estava maravilhosa em um simples vestido roxo, com detalhes em pedras.

Ambos caminhavam de mãos dadas, e atrás, estavam o visconde e a viscondessa. Um passeio em família para conhecer o futuro genro, claro. Assim como eu estava fazendo com Thea. Apertei as mãos com força, e tomei fôlego, assumindo uma falsa postura de serenidade. eu não estava bem.

E minha mãe sabia que eu não estava.

Por isso me apertou mais.

Felicity parou de sorrir ao me ver. Seus lábios se entreabriram, e uma lembrança maldosa sobre como eu os beijei poluiu meu pensamento. O cheiro, os toques…Ah. Estremeci, e sorri ao cumprimentá-los.

— Noah, Donna.- minha mãe fez a reverência.- Vossa alteza.

— Vossa Graça.- o príncipe sorriu, e me encarou.- Vossa Graça.

— Alteza.- fingi um sorriso. Meus olhos cairam sobre Felicity, que me encarava, com o rosto rígido.- Lady Smoak.

Nos observamos, e ela demorou a responder. Minha mãe limpou a garganta, indicando que eu quebrasse o contato visual.

Eu não fiz isso.

Eu queria falar tanta coisa, queria que ela entendesse…Mas Felicity parecia chateada. Seu olhar era hostil, como se questionasse o que diabos eu estava fazendo. Segurei o riso.

Nem eu sabia o que estava fazendo.

— Como estão as coisas?- a voz de minha mãe soou, e me recompus.- Tudo certo?

— Perfeitamente bem.- Donna sorriu doce. Seu olhar encontrou o meu, e vi que ela hesitou.- Estamos fazendo um passeio, não é, Noah?- o cutucou.

— Vossa alteza achou que o dia estava bom para um passeio em familia.- o senhor Smoak sorriu.- E aqui estamos. E vocês?

Indiquei o queixo Thea e Roy.

—Minha mãe teve uma ideia parecida está manhã.- sorri azedo.

— Eles formam um bonito casal.- falou Donna, sorri.

— Formam sim.- meu olhar voltou ao príncipe, e depois a Felicity.- E vejo que temos um aqui, não?- provoquei. Felicity apertou os lábios.

— Eu já volto.- o príncipe comentou. Felicity assentiu, sem olhá-lo.

O encarei, e pensei o quão gratificante seria socar aquele rosto austro.

— Então felizes?- minha mãe me repreendeu, mas ignorei seu toque.

— Ele é um bom homem.- respondeu Felicity.- Fofo e…- se calou quando o viu voltar com um buquê de rosas.- Oh, céus.

— Achei que gostaria de ter umas.- revirei os olhos.- São suas favoritas, não?

Soltei um riso baixo, e logo fingi que era uma tosse. Felicity me repreendeu pelo olhar, e eu devolvi de forma debochada. Rosas.

Tão clichê e previsível.

Ele nem sabia as flores favoritas dela!

— Vossa alteza parece ter acertado em cheio.- fingi animação. As linhas de expressão de Felicity se acentuaram.

— Acha mesmo?- Ray sorriu, sem notar a ironia em minha frase.

— O duque acha muitas coisas.- Felicity disse seca.- Vamos?

— Foi bom revê-los. Desejo toda a felicidade do mundo.

Todos se despediram, e eu encarei Felicity uma última vez, deixando a ironia e o cinismo de lado. Eles já estavam fazendo passeios em família.

O pedido não demoraria a ser feito.

Meu peito se apertou, e a dor fora tão grande que eu não suportava ficar ali mais.

— Mãe…

— Vá. e não faça besteira.- me deu um beijo na bochecha.- Amo você.

— Também te amo.

***

Não me surpreendi ao parar em um bar.

Não que eu não estivesse acostumado a estar ali. Era o ponto de encontro dos homens, muito conhecidos na cidade. Tomei duas doses de conhaque, e encarava o terceiro copo, com raiva.

Ele nem sabia as flores dela.

Mas com que tipo de mula ela ia se casar?

E isso importava? Era da minha conta? Não. Mas eu ligava sim. A deixei ir, por saber que não conseguiria amar alguém por um trauma do meu passado, e agora estava sofrendo, vendo a mulher de minha vida nos braços de outro, sem fazer nada.

Eu estava puto.

Comigo.

Com o mundo.

Virei o terceiro copo, sentindo o líquido queimar.

— Noite difícil Queen?- uma voz conhecida e nojenta me chamou.- Isso tem algo a ver com a Lady Smoak?- suspirei.

— Malone.- fingi um sorriso.- Seu nariz está estranho, algo aconteceu?- provoquei. O mesmo o cobriu, e em encarou, irritado.- Parece que alguém te socou. Sugiro procurar um médico, pode ter quebrado.

— Está se preocupando demais com algo que não é da sua conta.

— A vida da Lady Smoak não é da sua conta, mas você parece se importar, muito.

— Ah, a vida da deliciosa Lady Smoak é de minha conta sim.- trinquei o maxilar, e a encarei.- Não diga que não a acha gostosa porque ela é. Até queria algo com ela, mas percebi que a mesma não era digna.- endireitei o corpo.

— O que disse?- perguntei em tom baixo.

— Não se faça de sonso. Ela está com o príncipe e acredito que até com você ela já dormiu. É uma prostituta.- me ergui,e arregacei as mangas.- Se ofende?

— O que um homem de ego ferido não faz.- desdenhei. Ele estava falando alto para as pessoas ao nosso redor saírem falando, mas eu não deixaria mancharem a imagem de Felicity.- Tudo isso por que ela o recusou?– Ela não…– Por favor. Todos sabem o quão repugnante você era perto dela. E se precisa ferir a honra dela para justificar o seu não, não tem honra alguma.

Os murmúrios atrás de mim soaram surpresos e concordantes.

Havia conseguido, afinal.

Mas Malone não estava satisfeito.

— O único aqui que não consegue aceitar algo é você. Até dançou com ela várias vezes, todos vimos. Mas ela o trocou pelo príncipe.- riu.- O imponente Queen não é tão imponente assim. Imagem só…

Eu não me aguentei, e sem pensar duas vezes soquei aquele maldito rosto ingleses.

Malone retrucou, me acertando no queixo. Uma roda em volta de nós se formou, especialmente quando eu o agarrei, e o empurrei em cima da mesa, quebrando copos e garrafas. O segurei pela gola e o soquei.

Uma,

Duas,

Três vezes, diretamente.

Meu ódio, minha raiva, me consumiram.

— Se acha que vai sair impune com o que fez com ela…- sussurrei em seu ouvido quando o ergui, o dando um mata leão.- Você a machucou.

Malone pedia socorro.

— Diga que não vai mais tocá-la. Prometa que não vai manchar a reputação dela.

— Eu…Eu prometo.- falou engasgado.- o soltei no chão, e o vi respirar com dificuldade.- Um dia, eu vou matar você Queen. E ter esse seu nariz sangrando vai ser uma caridade por o que eu vou fazer com você.

— Um homem que faz uma ameaça de morte a outro com testemunhas é um tolo. E eu não tenho medo de você. Faça algo, e vai parar na cadeia, lugar que animais como você tem que permanecer enjaulados.

Peguei meu casaco, e joguei uma gorjeta por cima da confusão e saí, sentindo a adrenalina se dissipar de meu corpo. Passei a mão em meu queixo quando cheguei em casa, e vi que sangrava. O xinguei baixinho, especialmente pelo olhar de minha mãe.

Merda.

Ela lia o jornal, e me observou, da cabeça aos pés. Pediu para que um de nossos empregados trouxessem panos e compressas, e eu apenas me sentei a poltrona ao seu lado. Seu olhar interrogativo me fez suspirar.

— Malone.- respondi. A mesma pegou seu chá e o tomou, calmamente.

— Muito bem.

Sorrimos cúmplices juntos. Claro que ela me repreendeu, mas estava em paz por saber que o conde havia levado uma porrada. Coloquei a compresa sob meu rosto, e gemi de dor.

Inferno.

— Por que foi parar no bar exatamente?- questionou.

— Mãe…

— Pelo amor de Deus, Oliver.- me espantei com sua mudança de humor repentina.- Estou cansada de o ver fugir. Algo aconteceu entre vocês dois. Você anda deprimido, e pelo o que Donna conta Felicity está na mesma situação. Retirei a compressa do olho e a encarei.

— Ela o quê?

— Algo aconteceu e você não soube lidar. Precisa fazer algo filho.

Resmunguei.

— Não pode perdê-la, nem deixar o trauma de seu pai interferir com isso.- continuou, angustiada.- Você a ama?

Encarei seus olhos sábios, deixando o peso dos últimos meses se fazerem presentes.

— Eu a amo mais do que um ser humano deveria amar um ser humano. E isso me assusta.- confessei, perdido.- Não sei o que fazer mãe.

— Diga a ela…

— Aí meu Deus!

As portas se escancararam, e Thea entrou saltitante com sua dama de companhia. A mesma correu até minha mãe, feliz e preocupada, especialmente ao me ver. Ela escondeu uma folha atrás de si, mas não passou despercebido por mim.

— Speedy.

— Não achei que estaria em casa. - se justificou, nervosa.

— Speedy.- persisti.- O que você não quer que eu saiba?

Ela encarou minha mãe, em busca de uma saida. Sem tê-la, me olhou com pesar, especialmente por meus machucados.

— Vossa alteza fez o pedido.- De repente eu não respirava.

— O que ela disse?- perguntei com um fôlego.

— Sim.

Me encostei na poltrona, derrotado. Do que adiantava eu ter assumido o que sentia se ela iria se casar?

Ela iria se casar.

Iria para a Áustria.

Tudo o que eu mais temia.

Meus olhos lacrimejaram, e eu me segurei para não desmoronar. Minha mãe tocou em meu braço, compreensiva.

— Não a deixe escapar, filho.- sorri amargo.

— Eu a deixei ir. E agora não há nada o que se fazer.- lamentei. Minha mãe trocou um olhar com Thea.

— Ela ainda não disse sim oficialmente.

Minha mente estava lenta demais para acompanhar seu raciocínio, e eu apenas a encarei, esperando luz.

— Você a ama. Fale o que sente. Ela pode desistir.

— Lute por ela, Ollie.- apoiou Thea.- Antes que seja tarde

E eu me vi tentado a ir.

Se era aquele sentimento de arrependimento horrível que me acompanharia o resto da vida, ao menos que me acompanhasse sabendo que eu havia feito algo. Eu amava.

Muito.

E ela precisava saber.

Me ergui, mas fui impedido de sair pelas duas.

— Você está machucado e cheira a bebida.- Thea comentou.- Tome um banho, se recomponha e aí sim, lute por ela.

Sorri, e abracei as duas.

— Vou dizer o que sinto.

E, na minha vida inteira, eu nunca fiquei tão assustado e nervoso para fazer algo como agora. Havia uma tentativa.

Uma escolha.

E eu faria dar certo.