Seu próprio reflexo faz o garoto sentir pena de si mesmo.

Xander acabara de voltar de Pequena Vansa, e, como sempre, se atrapalhou ao ter que passar pela janela do próprio quarto, suas longas pernas desastrosas se enrolando na roupa e o fazendo cair no chão, o carpete azul escuro abafando o barulho.

De seu lugar sentado no chão, podia se ver no espelho de corpo que sempre ficou no canto do quarto. Resolveu consigo mesmo de que nenhum ser humano podia voltar sã e salvo às quatro horas da manhã num domingo, entrando de fininho na própria casa. Achou que até estava melhor que as outras vezes, a maquiagem preta e pesada levemente borrada e o vestido branco sequer tinha rasgado como na última vez que fora se divertir nas ruas de sua cidade vizinha.

Xander continua a pensar com seu próprio reflexo. Pequena Vansa era - é, - seu único ponto de liberdade, onde não precisa de estressar com nada e ser simplesmente... ele. Onde pode vestir suas roupas que o fazem se sentir confortável, falar na voz que o faz confortável, ser do jeito que sempre quis.

Xander era uma pessoa completamente diferente em Pequena Vansa. Ele não era Xander - era Hailey, e o garoto amava ouvir esse nome rolando da língua dos outros na cidade, se dirigindo a ele, aplaudindo quando descia do palco improvisado no meio da piscina local abandonada e empurrando copos para ele - para Hailey.

Um barulho de porta de fechando faz o garoto transvestido pular de seu lugar, e ele volta a realidade, a lembrança boa de suas noites de liberdade sendo empurrada de sua mente pela preocupação. Estático, olha intensamente para porta, quase como se ela fosse sua salvação. Seus ouvidos captam passos leves, próximos de seu quarto, e Hailey sai de seu estupor apenas para se trancar no banheiro na hora em que a porta (que fora sua salvação por cinco segundos) se escancara.

"Xander?"

O garoto abre rapidamente a torneira de sua pia, ouvindo os passos leves de sua mãe pelo quarto.

"Aqui, mãe."

Hailey não ouve o que sua mãe diz. Em vez disso, se assusta com o quão estranho sua voz grossa contrastava contra o batom vermelho e suas bochechas rosadas.

Solta uma lufada de ar em alívio quando ouve a porta do quarto se fechar novamente, e apoia as mãos na superfície gelada da pia. Quase fora pego. Prometera a si mesmo de que nunca mais iria chegar tão tarde assim, não depois de que sua irmãzinha o vira correndo apressado para o quarto um mês antes. Felizmente, seus pais somente riram quando ela disse no café da manhã o ocorrido, e a deram os parabéns pelos sonhos criativos que tem.

Xander somente sorrira amarelo para sua tigela de ceral, sentindo o olhar de sua mãe queimando nele durante toda a manhã.

Suspirando, Xander começa o processo para retirar a pesada maquiagem, evitando de olhar no espelho. Odiava quando tinha de deixar de ser Hailey para se tornar novamente Xander.

Quase uma hora depois, enfia o vestido branco e os saltos vermelho-sangue o mais fundo que pode em seu armário. Virando-se, se depara mais uma vez com seu reflexo. Parecia outra pessoa - e era. Deixara de ser a bonita e sorridente Hailey, para se tornar o magricela e estranho Xander. Seus cabelos espessos caíam pesadamente em cachos louros de sua cabeça, logo acima dos ombros. Os olhos amendoados encaravam si mesmos, e as claras sobrancelhas grossas franziram à imagem de sua pele clara. É possível alguém morar quase vinte anos no litoral e mesmo assim ser tão branco?

Xander balança os ombros para si mesmo. Não importa.

Guarda um suspiro quando vira para a porta do quarto. Todos os dias, especialmente nas manhãs de domingo, se remuia de culpa por não contar pelo menos à mãe o que acontecia com seu filho. Ela merecia saber. Xander sabe que, independentemente de ser Xander ou Hailey, continuaria a ser seu filho. Odiava mentir para ela.

Xander não sabe como o pai reagiria. Nunca chegara a ter uma boa conversa sobre o assunto, porquê não sabia como abordar isso sem dar trela. Hailey saberia como. Mas Xander não.

Passando pela porta, anda pelo corredor até as escadas. Para pra observar o grande quadro que sua pintara no passado, antes de se aposentar das artes para cuidar da família - a grande cidade de Nova Yorke fora seu último quadro. A mãe uma vez o dissera porquê A Grande Maçã fora e sempre será sua cidade favorita - fora nela que conquistara seus sonhos, que encontrara sua liberdade e que achara o amor em seu pai.

Xander aperta os lábios uns contra os outros, boca formando uma linha reta enquanto encara o quadro de linhas e círculos que forma a silhueta da cidade. Decide ali, naquele momento, que não importa o que os outros acham dele ou de seus gostos. Xander iria atrás de seus ideais e sonhos, com aprovação ou sem, não importa. Decide que o que importa é sua liberdade, seu livre arbítrio.

Decidido, desce as escadas em direção à cozinha.