Viver é um processo de remendar-se.

Ninguém chega à vida adulta sem algumas cicatrizes internas e disto Kiramann sabia muito bem. Mas ela também estava ciente de que nem todo mundo traz suas marcas visíveis a olho nu, como era o caso de Violet.

Vi era um mapa de sinais sob a pele. Caitlyn tinha a impressão de que se concentrasse o bastante, conseguiria avaliar a história de dor inscrita em cada uma daquelas linhas. Era um alfabeto, ela pensou não pela primeira vez, enquanto deslizava os dedos com cuidado pela epiderme surpreendentemente macia da outra.

Um alfabeto que ela estava disposta a decodificar até se considerar letrada. E se havia algo do qual se orgulhava é que sempre tinha se considerado uma aluna aplicada.

— Como você conseguiu esse daqui? - questionou numa noite morna, intrigada com a fina cicatriz perto do cotovelo direito. Vi olhou para o próprio braço por um minuto inteiro antes que a memória lhe viesse à mente. Então ela abriu um sorriso fraco e passou a mão pela pele antes de dizer:

— Eu estava carregando Powder em um velocípede semi-enferrujado que Vander havia achado e consertado para a gente. Fazia um dia bonito em East End, quase era possível acreditar que por trás de toda a fumaça cinza londrina havia um céu azul. Nós estávamos aproveitando porque eu havia acabado de ser liberada de um castigo.

— Castigo?

— Você nunca ficou de castigo, Cupcake? - Vi provocou.

— É lógico que já fiquei de castigo. - ela girou os olhos. - O que eu quero saber é o que você fez para isso.

— Ah. - Vi encolheu os ombros de maneira indiferente. - O de sempre. Afanei algumas carteiras ou respondi de maneira espertinha. Talvez os dois.

— Eu posso imaginar. - Cait sorriu e visualizou uma versão pré-adolescente de Vi: parecia uma força da natureza impossível de conter. Ela admirava o pai adotivo dela, mesmo sem tê-lo conhecido.

— Como eu ia dizendo... Eu havia sido liberada e nós estávamos dando uma volta quando escutamos o zunido vindo do alto: era o maior zepelim que já tínhamos visto. Powder enlouqueceu de felicidade e me fez perseguir a mesma rota que ele fazia no céu, só que do chão. Não é exatamente fácil pedalar carregando uma criança olhando para cima ao invés de para frente, então em algum momento nós tropeçamos em algo e você pode imaginar o resto.

Caitlyn fez uma careta de dor pensando em duas menininhas rolando por alguma viela imunda depois de uma queda, mas Violet riu com carinho.

— Essa é uma das boas, Cupcake. - suspirou, olhando novamente para o cotovelo. - É uma das boas.

Kiramann concordou em silêncio e prendeu a respiração por um instante, deslizando as pontas dos dedos pelo rosto de Vi como se ela pudesse se desintegrar na sua frente a qualquer instante. Violet sempre se comovia com o gesto, mesmo achando-o irônico, como tudo quando se tratava de sua relação com Caitlyn.

Parecia uma piada fina do destino: elas não poderiam vir de realidades mais opostas e no entanto, ali estavam. Emaranhando-se uma na outra, noite após noite, há quase uma semana agora. Quando Violet decidira colaborar com a Scotland Yard para não ser presa, a última coisa que ela esperava era se apaixonar pela investigadora principal do caso que consentiu em delatar. Ela também não esperava se envolver de maneira tão pessoal com a possibilidade de derrubar Silco, o industrial que havia saído da mesma periferia que ela havia nascido para alçar outros níveis sociais a partir de métodos obscuros. E em hipótese alguma havia lhe passado pela cabeça que em determinada altura a própria Caitlyn perdesse a fé na corporação, que se demitisse e muito menos que lhe propusesse uma sociedade de investigação particular, mas tudo isso havia acontecido em cerca de um ano.

O escritório de investigação havia nascido do seguinte modo: Kiramann havia entrado com o cérebro e com o capital e Vi com a astúcia e a experiência das ruas. Contra todas as suspeitas, elas trabalhavam bem em conjunto, como haviam descoberto quando Caitlyn ainda era uma patrulheira. E elas também funcionavam bem de outros modos, como tinham descoberto muito recentemente.

Os flertes – escancarados da parte de Vi e revidados de maneira muito sutil por Kiramann – eram o modo que elas tinham encontrado de lidar uma com a outra desde o primeiro dia. As diferenças de classes, de personalidades e de comportamentos nunca haviam sido páreas para a química visível que havia entre as duas, mas ao contrário dos boatos que corriam na sede da polícia metropolitana e depois por todo o bairro de Westminster, onde ficava o prédio onde elas atuavam, Violet e Caitlyn nunca haviam cruzado a linha da possibilidade, ao menos até a sexta anterior, quando Vi arrumou confusão no Última Gota. Ela vinha seguindo uma pistas inconclusivas há meses sobre a irmã perdida, e nem sempre estava disposta a conseguir as coisas na lábia: às vezes seus punhos imploravam por uma chance de agir e Vi cedia aos apelos da própria força física de bom grado.

Na ocasião em específico ela havia saído aos socos com um antigo conhecido das ruas, três vezes maior e mais pesado. Um rapazote havia chamado Caitlyn às pressas e ela havia corrido como uma louca, chegando a tempo de ver Violet sendo separada do homem não por um, mas por quatro funcionários cansados. Ela não parecia disposta a ceder, não até ver Caitlyn. Diante do maxilar trincado da parceira, ela suspirou e olhou para baixo, no intuito de esconder o olho esquerdo já parcialmente inchado.

Kiramann a levou para o escritório em silêncio, sentindo parcialmente o peso do corpo de Violet, que mancava de uma perna. Em outros tempos, ela teria sido orgulhosa demais para aceitar o ombro, mas não naquela noite. E não depois de Caitlyn provar tantas vezes que merecia a sua confiança.

— Isso arde – foi a única coisa que ousou dizer quando, já sentada, Caitlyn pousou o pano molhado em água morna nos ferimentos do rosto para limpá-lo.

— Não arderia se você aprendesse a controlar o seu temperamento.

Violet abriu a boca para responder, mas se calou. Cait continuou os primeiros socorros, mesmo com a expressão contrariada.

Depois de fazer o possível com o rosto e o ombro esquerdo de Vi, ela estremeceu ao olhar a mancha de sangue na região do abdômen.

— O que eu posso dizer? – Vi tentou se defender e despreocupa-la ao mesmo tempo. – Era um covarde.

Cait suspirou, concentrando-se apenas em abrir os botões do colete que ela usava.

— Caitlyn. – ela disse de modo sério, como sempre dizia quando usava o nome de batismo de Kiramann. - Você não precisa fazer isso.

— Você perdeu o direito de me dizer o que eu preciso ou não fazer quando ignorou os nossos planos e foi até aquele pub sozinha. - Caitlyn disse firme, o que fez com que Vi apenas anuísse. Ela sabia que tinha se precipitado. Não admitiria o erro, mas colaboraria com Caitlyn pelo resto da noite se isso fizesse com que os olhos dela voltassem a encontrar com seus em melhores termos.

Vi deixou que ela lhe despisse o busto e conferisse o corte feito por um canivete afiado. Cait xingou baixinho, aplicou unguento e lhe enfaixou a cintura.

— As coisas que eu preciso fazer para que você tire minha roupa… - Vi tentou brincar, mas Caitlyn a fitou sem rir. Era, de fato, a primeira vez que ela a via despida. Violet se sentiu exposta e vulnerável de um jeito muito atípico. Seu coração falhou algumas batidas, e não por causa da dor ou do desconforto.

— Você podia ter experimentado pedir.

— Cupcake. - Vi sinalizou com a garganta seca. Caitlyn continuou encarando-a, sem voltar atrás. Ela estava com raiva; sentia que poderia, a um só tempo, socar e beijar Vi.

— Ou você aprende de uma vez por todas a contar comigo, Violet, ou…

Mas ela nunca terminou a ameaça: Vi selou os lábios nos dela com uma delicadeza insuspeita.

— Eu conto – Vi respondeu baixinho, a testa colada na de Cait. – Eu conto. – ela repetiu, antes de beijá-la outra vez, a despeito do ferimento no canto da boca.

— Eu quero matar você. – Caitlyn avisou, os olhos embargados de emoção há muito tempo reprimida. De todas as vezes que ela havia cogitado aquele desfecho, em nenhuma delas o cenário era aquele.

— Eu sei.

— Por sorte você é muito bonita – Caitlyn ponderou, fazendo-a rir.

— Você é louca, Cupcake – constatou, emoldurando-lhe o rosto com as duas mãos.

— Eu ainda estou puta. Não ouse discordar de mim - avisou, antes de ceder de novo à preocupação: – Como você está se sentindo?

Vi abriu um sorriso torto.

— Eu nunca estive melhor. – e ela estava sendo sincera.

Desde então, não importava como os dias começavam, eles sempre terminavam do mesmo modo. Nem Vi nem Caitlyn tinham expectativas de que a faceta amorosa do relacionamento as salvasse de todas as questões difíceis com que lidavam no trabalho e em suas respectivas vidas pessoais. Mas elas compartilhavam as dores e isso era um remédio bom o suficiente para continuar tentando.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.