Relacionamento Sem Limites

Hannibal servia mais um de seus pratos requintados para Alana Bloom e Will Graham; este tinha a carne de porco como base, ou era o que ele afirmava ser. Fazia mais um de seus discursos sobre a comida, sua origem e possivelmente algum impacto que ela causou na história da gastronomia em algum lugar do mundo. Os dois visitantes estavam acostumados. Os discursos informativos faziam parte do show, era uma das coisas particularmente interessantes nos jantares oferecidos por Hannibal Lecter.

No entanto, naquela noite, outra coisa parecia atrair a atenção de Alana Bloom.

Will Graham sabia muito bem quando estava sendo analisado por alguém e, definitivamente, Alana estava fazendo isso desde que colocara os pés naquela casa. Não apenas ele, ela analisava Hannibal também. Para ser mais preciso, ela estava analisando a forma como ele e Hannibal interagiam. Isso não podia significar boa coisa.

Will sabia que Alana ainda não confiava inteiramente nele, mesmo depois de ter ficado provado que ele não era o Assassino Imitador. Alana provavelmente ainda estava muito intrigada com a retomada da amizade entre ele e Hannibal, depois de Will tentar matar Hannibal em um passado extremamente recente. Mas Will não podia se dar ao luxo de compartilhar seus planos com Alana, não quando ela estava dormindo com Hannibal.

Will, inconscientemente, empregou mais dureza em sua mastigação, descontando no pedaço de carne triturado em sua boca a repentina raiva que sentia de Alana e Hannibal por isso.

— Freddie Lounds acha que vocês dois são um paradoxo — Alana soltou a informação durante a conversa, obviamente esperando para ver qual seria a reação dos dois homens. Will olhou para ela inocentemente. Ele se distraiu da conversa por um breve momento e não entendeu como Freddie tinha entrado no tópico da conversa. — Ela vê algo que ninguém mais vê.

— E o que seria? — Hannibal era o equilíbrio perfeito entre o nem muito curioso, nem muito indiferente. A reação que uma pessoa inocente normalmente teria.

— Ela tem a teoria de que nenhum de vocês é o assassino sobre o qual ela está escrevendo, mas que juntos podem ser.

Will estava com comida na boca e, ao engoli-la, sentiu como se fosse pedra. Fora a força extra que fez para engolir, nenhuma outra emoção transpareceu no seu rosto. Ele olhou para Hannibal, que parecia achar tudo muito divertido.

— Freddie Lounds deve estar desesperada para manter os leitores de seu jornal, Alana, se já está recorrendo à ficção — Hannibal olhou para Will, sorrindo em cumplicidade. O investigador tentou fazer o mesmo, mas só conseguiu um meio sorriso pobre.

Will não temia ser pego, ele tinha Jack a par de tudo (ou quase tudo), mas temia o que Hannibal poderia fazer com Alana se ela inadvertidamente esbarrasse na verdade sobre o Estripador de Chesapeake. Ele temia descobrir de qual lado ele ficaria, se Hannibal resolvesse matar Alana ali, naquela sala de jantar.

— Freddie nunca soube respeitar limites. – Will disse com desgosto genuíno. Sua antipatia pela ruiva não era segredo. — Alguém sem limites é um psicopata. Ou uma jornalista.

— E você acredita nessa teoria da senhorita Launds? — Hannibal acrescentou sorrindo.

Alana se ajeitou na cadeira com um sorriso mais largo.

— É claro que não. — Alana respondeu. Will sentiu mais desapontamento do que alívio. — Freddie é uma sensacionalista, não seria a primeira vez que ela inventa esse tipo de coisa para chamar a atenção. Mas ela me fez pensar sobre algumas coisas.

— Que tipo de coisas? — Hannibal tinha toda a atenção nela.

— Freddie não é a única sem limites. A relação de vocês parece não ter nenhum. Paciente e terapeuta. Amigo e inimigo. Eu me pergunto o quê mais além disso.

— Ultrapassar limites é diferente de violá-los. — Hannibal tomou um gole de seu vinho. — Limites sempre estão sujeitos a negociação. Se ambas as partes estiverem de comum acordo as cercas podem ser retiradas e/ou recolocadas quando quiserem.

— Sinceramente, é difícil entender a relação de vocês dois.

Hannibal olhou para Will com reconhecimento e aceitação, e sorriu para o jovem perfilador.

— Nós entendemos a nossa relação. Isso não é suficiente?

Will sorriu em resposta, ele não podia discordar da verdade.

Alana decidiu não tocar mais no assunto.

Embora a teoria de Lounds tenha plantado a sementinha da dúvida na cabeça de Alana, naquele momento, seu raciocínio emocionalmente comprometido a levou a se focar em outra coisa. Não na possível cumplicidade e culpabilidade de Hannibal e Will (ela ainda achava um absurdo pensar em qualquer um dos dois como o Estripador), mas na interação entre Hannibal e Will.

Hannibal tinha perdoado Will muito rápido, a julgar pela seriedade de todas as acusações e a tentativa de assassinato planejada por Will. Alana tinha visto a raiva e o desejo de vingança sangrando nos olhos de Will Graham quando ele esteve na cadeia. Depois de Will quase conseguir o assassinato de Hannibal, ninguém podia culpa-la por ainda não confiar plenamente em deixar Hannibal sozinho com Will. Mas aparentemente Hannibal não compartilhava dos seus receios.

Will parecia mais obcecado do que nunca por Hannibal, embora agora ele o considerasse um amigo novamente e jurasse ter cometido um erro ao acusar Hannibal dos assassinatos. Além disso, Alana estaria mentindo para si mesma se disse não perceber a maneira quase adorativa com que Hannibal olhava para Will.

Eles passavam a maior parte do tempo juntos, e por três vezes Hannibal cancelou um encontro com Alana porque tinha que “atender” Will. Suas suspeitas só aumentavam quando, mais uma vez, era ela quem deixava a casa de seu namorado depois de um jantar, e Will permanecia lá com Hannibal, provavelmente para passar a noite.

Alana não acreditava que Hannibal e Will Graham fossem assassinos psicopatas como sugeriu Freddie Lounds, mas ela sabia que havia algo de muito suspeito no relacionamento daqueles dois.

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— Por que você ainda está com ela? Eu sei que você começou esse relacionamento com a Alana para me atingir e me manipular. Mas acredito que o nosso relacionamento atingiu um estágio em que você não precise mais usar desses artifícios. Seja lá para qual propósito Alana tenha servido ou serve, ela está se tornando um problema. Precisa terminar com ela.

Eles estavam agora sentados em frente a lareira de Hannibal, desfrutando do calor das chamas.

— Não acha que ela suspeitaria mais ainda se eu terminasse com ela amanhã sem motivo algum?

— Invente um. Você é ótimo com as meias verdades e meias mentiras, não é? — Will deu de ombros, como se não ligasse muito para o assunto. Mas sua voz em seguida tinha um tom lânguido, beirando o sedutor. — Diga que encontrou outra pessoa. Alguém mais interessante. E deixe-a fora disso tudo.

Will não olhou ­­para Hannibal quando disse isso, mas a tentativa de manipulação estava clara. Hannibal achou muito interessante.

— Isso me soa um tanto indelicado, ela ficará magoada. Ela provavelmente ficará com a impressão de que estava sendo traída.

— Alguns males são necessários. Além disso, não podemos tê-la aqui o tempo todo. Nos interrompendo.

Hannibal estudou Will em silencio por alguns segundos, depois se levantou para buscar vinho.

— Estou curioso, você está com ciúmes dela?

Will comprimiu os lábios considerando a pergunta.

— O que eu sentia pela Alana não passou de um flerte, um encantamento, que se quebrou rapidamente quando ela me deixou claro que não tinha nenhum interesse em mim além de uma curiosidade profissional. Mas ainda a considero uma amiga e não me agrada que você a engane. Quantas vezes ela vem aqui? Nunca lhe ocorreu que ela possa descobrir alguma coisa?

— Eu tenho trabalhado bastante para mantê-la cega sobre certos fatos. — Hannibal voltou com apenas uma taça de vinho branco, mas em vez de esticar o braço para entrega-la a Will, ele a manteve junto ao corpo. — Além disso, ela não está desconfiada dos assassinatos, ela está desconfiada de nós. Da relação que compartilhamos.

Hannibal tomou um gole e ofereceu o restante para Will. Will piscou por um segundo, mas se levantou e pegou a taça. Havia apenas o espaço de um pé separando os dois homens.

— Ela acredita que nós somos amantes. — Will tomou um gole, seus olhos fixos em Hannibal. Era a primeira vez que eles literalmente compartilhavam uma taça de vinho.

— Eu acredito que Freddie fez acender uma luzinha na cabeça da Alana, mas para uma direção diferente que Freddie pretendia.

Hannibal se afastou para perto da lareira. Will circundou a borda da taça com a ponta do dedo.

— Nós somos? — Will perguntou baixinho. — Amantes?

Por oito exatos segundos Will não ouviu nada além do crepitar das chamas e as batidas de seu coração.

— O que você diria? — Hannibal olhava para ele intensamente. Seus olhos castanhos pareciam âmbar líquido, reluzindo com as chamas.

— Ah, não. Eu perguntei primeiro.

Will não sabia porque estava insistindo naquele assunto, nem porque seu corpo parecia queimar em expectativa, nem porque sua própria voz soava com uma qualidade vergonhosa, quase implorativa, quase... coquete.

Will já tinha usado de comportamento sedutor para tentar manipular Hannibal antes, mas agora ele estava indo além. Ele estava prestes a ultrapassar um limite. Esse tipo de relacionamento não fazia parte do plano. Esse tipo de relacionamento não era necessário para o seu plano, ainda assim ele se viu pressionando. Ele se encontrou olhando para Hannibal com expectativa.

— A parede que separa a amizade do romance na verdade é bem fina. Mas é necessária muita confiança para ultrapassá-la. Confiança e negociação. Aceitação.

— Concordo. Mas você não me respondeu.

Hannibal sorriu e se aproximou dele novamente.

— Você é a pessoa que eu mais frequentemente convido para a minha casa. Por vezes eu preparei refeições para dois e levei para compartilharmos em sua casa. Nós jantamos juntos quase todas as noites, não raramente você costuma ficar para passar a noite. Ultimamente você tem estado mais na minha casa do que na sua. E passamos mais tempo na companhia um do outro do que de qualquer outra pessoa; o que é bem impressionante, visto que temos trabalhos diferentes.

— E quando não podemos nos encontrar cara a cara, eu te ligo — Will acrescentou, tentando aliviar a pressão que os olhos de Hannibal estavam exercendo sobre ele agora. Tão próximo.

— Verdade. A você eu confiei o meu segredo — Hannibal disse num sussurro. Will engoliu em seco. — Isso pode ser considerado amizade. Mas também pode ser considerado cortejo. A diferença está na intenção.

— Você tem a intenção de me cortejar?

— Talvez. Isso te incomoda?

— Não. Na verdade, não.

Hannibal suspirou pesadamente antes de erguer a mão até o rosto de Will e acaricia-lo. No segundo seguinte, Will sentia a boca de Hannibal na sua.

Ele ouve o som da taça se partindo no chão, mas nenhum dos dois interrompe suas ações. Will aperta a camisa de Hannibal, sem puxar e sem empurrar, apenas mantendo-o no lugar.

Aquela era uma situação que Will jamais imaginou. Um resultado que ele jamais esperou. Mas enquanto ele sentia a respiração quente em seu rosto e a língua deslizando por sua boca, e a maneira como Hannibal apertou o seu corpo, Will soube que queria aquilo. Ele queria que Hannibal o aceitasse. Ele gostava que Hannibal o desejasse.

Naquele momento, Will esqueceu do plano, de Jack Crawford e de Alana Bloom. Só existia Hannibal. E isso era suficiente. Nada mais importava.

Quando ambos caíram na cama, já sem algumas peças de roupas, Will percebeu que estava tremendo. Hannibal se ofereceu para parar, surpreendentemente compreensível e gentil. Mas Will não queria parar. Ele queria continuar. Ele queria isso.

Os olhos de Hannibal estavam negros de veneração e desejo. E se Will pudesse ver seus próprios olhos, ele veria que os seus eram exatamente iguais.

Naquela noite eles ultrapassaram mais um limite. Eles se tornaram um.

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Alguns dias depois.

Will estava encostado em seu próprio carro, esperando o momento em que Jack o autorizaria para entrar na cena do crime. Alana se aproximou dele.

— Hannibal e eu terminamos — ela olhou para Graham, mas o homem não demonstrou qualquer reação. — Você não está surpreso.

— Eu deveria estar?

— Não. Na verdade, não. Eu suponho que ele tenha te contado, afinal vocês andam tão próximos.

Will sorriu pelo nariz, de uma maneira que quase soou como desdém.

— Por que você não pergunta o que realmente quer perguntar, doutora Bloom?

— Talvez porque eu já saiba a resposta.

Jack apareceu ao longe, atrás da fita amarela, chamando Will. Antes de se afastar, Will disse:

— Você não queria se envolver romanticamente comigo porque eu sou mentalmente instável. Algumas pessoas não se incomodam com a minha instabilidade.

Alana assentiu. Sim, ela lembrava disso.

— Hannibal é uma dessas pessoas?

— Ele é o único.

Alana sabia que aquele homem era muito diferente do Will Graham que ela conheceu anos atrás. Sinceramente, a provável infidelidade de Hannibal era o que menos a preocupava naquele momento.

A teoria de Freddie tinha crescido dentro dela, e ela via como o comportamento de Will se tornava cada vez mais estranho. Ela não tinha certeza se o relacionamento deles era saudável, mas de uma coisa ela sabia. Se Will fosse realmente um assassino psicopata, a afeição de Hannibal por Will o levaria a encobrir isso. Principalmente se eles estavam envolvidos romanticamente.

Alana nunca esteve tão certa e tão errada ao mesmo tempo.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.