Reino da Magia

Provocações.


E assim os testes prosseguem. Serena e Lucius percebem que o momento de suas respectivas apresentações se aproxima. Nicolas, que antes estava inerte diante das apresentações, toma uma decisão e muda de atitude. “Muito bem, está na hora de colocar pimenta nesse ensopado”. A diretora Victoria continua chamando as crianças para o teste, uma por vez. Elas se levantam, animadas, fazem suas apresentações, e voltam aos seus respectivos lugares, umas mais animadas que antes, outras um pouco decepcionadas. Enfim, os aplausos, as reações e os burburinhos posteriores determinam se a apresentação foi ou não boa. Um garoto sentado próximo a Sidney se levanta e segue em direção à professora Hilda. Tem uma aparência forte, robusta, mas com um rosto arredondado e de feições meigas.

—Renan Eidil! Idade: 14 anos. Classe: sagaia.

Enquanto todos esperam pelo próximo passo do teste, inesperadamente ouve-se uma risada, vinda dos assentos ao fundo. Era Nicolas, chamando a atenção.

—Ah! Ah! Ah! ‘Sagaia’, que nome engraçado! Ah! Ah!

Percebendo os olhares, inclusive os de Victoria, ele diminui o som dos risos. Serena e Lucius não entendem sua reação. Afinal, não apenas iriam ver coisas que jamais imaginariam que fosse possível como também passariam a conhecer - e até mesmo dizer - palavras que nunca ouviram antes. Isso é algo com o qual eles terão que se acostumar.

—Bom... Esqueçamos essa interrupção! Pode começar Sr. Eidil!

—Como se a gente não soubesse o que ele vai fazer. - diz Sidney, fazendo os que estão ao seu redor soltarem uma leve risada, não demonstrando surpresa com o que o garoto estava prestes a realizar.

—O que vai ser? Um castelinho de areia? Ah! Ah! - comenta Ricardo.

—Ahn... Tanta capacidade para tão pouco talento. - Margot.

—Olhem! Nada nas mãos. Eh! - diz Renan, de frente para os outros e com os braços levantados e as mãos abertas. Sua animação parece não ser compartilhar pelo público.

—Nem na cabeça. - diz Clara.

—Usar o ‘Chamado da Terra’ apontando para o solo é fácil. Eu queria vê-lo fazer isso apontando para o teto. - diz Paula.

—É Renan! Invente, tente, faça algo diferente - apoia Allison.

As palavras do amigo soam como um desafio e Renan o aceita, olhando com determinação para Allison. Ele eleva mais os braços, com as palmas das mãos viradas para cima e vai para trás da mesa. Um momento de expectativa acontece, todos esperam pelo que possa acontecer. O garoto se concentra e uma voz ao fundo se manifesta.

—Ué, o feitiço dele vem do sovaco? - diz Nicolas. Seu comentário causa risadas que deixam Renan constrangido e furioso. Ele olha enfezado para Nicolas.

—Esse moleque! VENHA A MIM... GEODEZ PATER!

Rapidamente ele abaixa os braços, fazendo com que pedras do tamanho aproximado de bolas de boliche caem do teto sobre a mesa. O estrondo é forte e com o impacto a mesa se despedaça. Não apenas os amigos, mas muitos o aplaudem com ênfase. Renan aproveita o momento para amedrontar Nicolas.

—Viu garoto! Não é apenas com Ricardo que você deve tomar cuidado. Dê uma boa olhada nas pedras que eu fiz saírem do teto.

—Teria sido mais legal se tivessem saído do sovaco. - responde Nicolas, provocando uma nova onda de risadas.

Antes que Renan pudesse reagir de alguma forma - como se fosse possível, já que Nicolas o deixou novamente constrangido - Victoria encerra o teste e o conduz ao lugar de origem, sem antes olhar para Nicolas, pensativa. “Esse garoto, vai acabar arrumando encrenca”. Serena e Lucius não entendem a atitude dele. Antes não o culpava pelo seu desconhecimento e sua ignorância sobre o mundo da magia. Mas agora, parecia que ele irritava os outros de propósito.

—Nick, por que você está falando assim?

Dessa vez ele não ignorou a garota e percebendo que Lucius também prestava atenção na conversa, decidiu falar para ambos.

—Eles não disseram que eu iria reprovar e que eu não merecia estar aqui e tal? Pois agora vão ter que ouvir também! Não ficaram chorando iguais bebezinhos, falando ‘não valeu, não valeu’ quando eu fiz o teste? Pois bem... Me humilharam, me ignoraram, me assustaram... Agora aguentam!

Ele volta a sentar-se, cruzando os braços e com uma expressão mal-humorada. E continua a fazer comentários a cada apresentação que acontecia.

—Allison Gareth! Idade: 13 anos. Classe: aerífero. - anuncia a professora Flora.

“Aerífero?”, pensa Lucius, se recordando das palavras mencionadas por aquela senhora na floresta. Se o julgamento dela estiver certo, então ele deve ser da mesma classe desse garoto. Ele se concentra na apresentação de Allison, que solicita a Victoria um candelabro acesso sob a mesa. Mark rapidamente providencia o objeto.

—Ahn... Tão previsível quanto o amigo dele. - diz Ricardo, bocejando.

Parecia que, assim como Renan, a apresentação de Allison não era tão interessante para alguns, principalmente para a turma de Ricardo. Até mesmo os amigos de Allison já previam o que iria acontecer. O garoto se afasta um pouco da mesa e, com um movimento rápido do braço esquerdo lança a mão aberta com os dedos bem unidos a frente, como se empurrasse algo com a palma da mão. Lucius reconhece aquela posição de mão. É a mesma que a senhora fez em seus dedos, moldando-os para que ficassem bem unidos e depois apontasse a palma da mão para os guardas. A diferença é que Lucius teve que dizer o nome do feitiço, ‘Impactus’, ele recorda, para que pudesse ter o efeito desejado. E Allison parece tê-lo feito sem muito esforço, apagando as sete velas do candelabro de uma vez. E antes que os aplausos pudessem ser ouvidos...

—NÃO VALEU! - berra Nicolas, lá do fundo.

—Não valeu? - indaga o garoto, olhando para Nicolas e depois para a diretora.

—E por que não valeu, Sr. Nicolas? Ele realizou o feitiço com perfeição. - diz Victoria. Nicolas se levanta.

—Apagar velinhas até eu faço isso. Não precisa de feitiço, é só assoprar. Qualquer um pode fazer isso. Olha o Lucius! Aposto que faz feitiço melhor que esse cara.

Lucius o olha assustado, com receio de que a atitude de Nicolas acabe lhe causando alguma consequência. E antes que pudesse abrir a boca para se defender Victoria o interrompe.

—Você não prestou atenção, ele apagou sete velas!

—Ele tem um pulmão bom. - diz Nicolas.

—Mas ele usou a mão.

—Ele tem uma mão boa.

—Sr. Nicolas! Isso aqui é um teste e não uma competição. Pare com as provocações.

—Provocações... Hunf! Apagar velinhas, até esse Pó de arroz aí na frente faz isso.

Ao perceber que Nicolas se referia a Ricardo, Allison solta uma risada olhando para ele, que percebe e retribui o olhar, com raiva, o que faz Allison mudar sua expressão de imediato.

—Sr. Nicolas, pare de atribuir nomes pejorativos às pessoas! - repreende Victoria - Eu não vou admitir isso.

—Não esquenta, ele já deve estar acostumado! - as palavras de Nicolas fazem Ricardo se levantar.

—Você é que deve estar acostumado a ser chamado de tudo que é ruim, Pivete!

—Olha aí, me chamou de pivete! Não vai falar nada não?

—O senhor pediu por isso. - responde Victoria, de maneira áspera - A partir de agora não tolerarei mais confusão. Isso vale para os dois, ou melhor, para todos.

—Mas Professora, foi ele...

—Sem mais desculpas, Sr. Berker! Aliás, o senhor deveria ser o primeiro a dar o exemplo.

O garoto estava levando uma bronca na frente de todos. Allison não se aguenta e esboça um sorriso, irritando ainda mais Ricardo. Ele prepara o braço esquerdo com o mesmo gesto feito em seu teste, apontando a mão entreaberta para Allison.

—Acha graça, não é? Vou lhe mostrar algo que o alegrará mais. - de repente, Ricardo sente um toque no ombro esquerdo que o faz olhar para trás.

—Não vai não! - lhe responde Sidney, com Renan ao seu lado. Ambos o encaram.

Ricardo vira-se para eles e ia falar algo, mas Margot interfere.

—Não vai acontecer nada! Ouviram-me, cavalheiros? Não vai acontecer nada. - As palavras da menina saiam com suavidade e doçura de sua boca. Era uma ordem, uma obrigação, que ao mesmo tempo parecia um convite irresistível. Os três a observam como se vissem algo fantástico, incomum. Sua face clara e seus olhos verdes logo chamam a atenção deles, que a olham admirados, hipnotizados, submissos. - Não vai acontecer nada. Voltem para seus lugares!

—O que está acontecendo?

—Nada, Diretora! - responde Margot, se virando para frente e voltando a posição inicial, assim como os outros, que recuam e sentam em seus lugares. Sem a atenção de Victoria sobre eles, ela segura de leve o braço de Ricardo, que se acomoda em seu assento sem tirar os olhos de Allison, pivô do conflito. Abaixando os olhos, ela lhe fala em voz baixa - Vê se não estraga tudo.

Renan e Sidney, que estavam atônicos, logo despertam, sem entender o que se passou. Mas Allison, encorajado pela atitude dos amigos que saíram em sua defesa, retribui o mesmo olhar ameaçador para Ricardo.

—Hunf! Você não me intimida! - com o braço direito, ele faz o gesto do feitiço anterior, só que dessa vez usa a mão como uma espada, fazendo um movimento horizontal diante da mesa como se cortasse o ar. Aos poucos as velas do candelabro caem cortadas pelo vento que saiu de sua mão. - E isso serve pra você também, Nicolas!

—Nossa! Ele usou o ‘Corte Mágico’.

—Isso não foi o ‘Corte Mágico’. - diz Mark para Clara, notando que a garota se equivocou - Mas o princípio é o mesmo. Esse garoto tem potencial para isso.

Assim como Ricardo, Nicolas parece não se importar com as palavras de Allison, que de maneira tímida e sob os olhares dos dois, volta para o seu lugar. “Coitado! Nem precisei interferir no teste desse infeliz, o Pó de arroz fez o serviço”. Enquanto Allison se senta, Paula já se dirige para frente da turma. Hilda e Flora repetem o procedimento.

—Paula Messina! Idade: 14 anos. Classe: animália.

Esta é uma classe que já havia sido mencionada anteriormente, o que tornou o teste de Paula tão menos atraente quanto o de seus amigos. A garota junta as mãos e estica o pescoço, olhando para o alto, como se buscasse as palavras. Mas sai um belo assobio de sua boca, uma canção. Ela está imitando uma ave. A melodia é harmoniosa e suave e a plateia se encanta, como que embalada pelo som, até serem despertados por uma voz estridente.

—Isso eu também sei fazer! - diz Nicolas. Paula se ofende e o desafia.

—Duvido! Duvido que você possa imitar um rouxinol das Ilhas de Halpshire como eu.

—Rouxinol? Pensei que fosse alguém agonizando. Estava tão triste...

—Oras, seu...

—Nãã... Cuidado com os pejorativos!

Novamente seus comentários provocam algumas risadas. A garota se enfurece e coloca as mãos nas laterais de seu vestido, erguendo-o um pouco.

—Ninguém conhece aves melhor do que eu, imbecil! - num salto inesperado, ela sobe na mesa com tanta agilidade que parecia que seu corpo não pesava mais do que uma folha de papel. Ela se vira para observá-lo e se mexe como uma ave de rapina que acabara de encontrar uma presa. Victoria a interrompe.

—Não é necessário, querida! Você passou no teste. - a diretora se aproxima da mesa e lhe estende a mão, auxiliando a garota a descer, o que ela faz de maneira tão graciosa como a subida. - Você foi muito bem no teste e não deve se sentir ofendida por ‘alguém’ que não conhece uma boa melodia. Mas só para registrar: Existe alguém que conhece aves melhor do que você: ‘A Pena Viva’.

As palavras da professora se repetem como um eco entre os aprendizes. Alguns parecem compreender seu significado e até se admiram por ela pronunciar esse nome abertamente. Porém...

—Ei! Você mesma disse que pejorativo não vale. Eu tô vendo que a garota é magrinha, mas não precisa chamá-la de Pena Viva. - interfere Nicolas.

—Eu não estou me referindo a Srta. Messina. Pode se sentar, querida! - pede a diretora. A garota a obedece, após olhar com cara feia para Nicolas. - É óbvio que você não sabe, Sr. Nicolas, mas que isso sirva de alerta para você e para os desavisados. Eu estou me referindo a Francis Beaumont, uma feiticeira poderosa, conhecida também como ‘A Pena Viva’. Francis faz parte de um grupo de feiticeiros que se autodenominam ‘Os Medievais’. E nessa sociedade eles adotaram outros nomes, talvez para acobertarem suas identidades, seus malfeitos, intimidação... Eu não sei! Só sei que também são conhecidos por tais nomes.

—Pena viva? Com um nome desses vai intimidar quem, um espanador?

Algumas risadas são ouvidas, até mesmo Victoria esboça um sorriso, não de alegria, mas de alerta.

—Você mudara de opinião caso um dia a encontre. Quanto aos Medievais, todos irão conhecê-los na Sala de Exposição.