Nicolas se afasta de seus amigos e acelera o passo para alcançar os que estão à frente, abrindo caminho por entre as crianças. Na verdade, assim que reparam na aproximação dele elas já saiam da sua frente. E ele sente toda a rispidez daquelas pessoas que o olham com cara feia e fazem comentários maldosos.

—Garoto imundo, seu lugar não é aqui!

—Não chegue perto, traste, não me contamine com seu cheiro.

—Não passa de um farrapo humano, vá embora!

—Fedorento, nem merecia estar aqui.

—Vai ser reprovado no primeiro teste, seu lixo!

Nicolas se concentra em seguir em frente e não dá atenção aos comentários. Ele não quer desapontar Serena e prejudicar os outros, arrumando mais confusão. Enquanto isso, Lucius nota que os olhares de Sidney perturbavam Serena. Prevendo um possível insulto ele sai em defesa dela. Encara aquele garoto esnobe e pergunta sem rodeios:

—O que é que você tá olhando?

Sua atitude foi tão inesperada que até Serena, ao seu lado, fica surpresa. Ele permanece firme e encarava o garoto do outro lado, que também se surpreende. Inicialmente Sidney desvia o olhar, mas toma uma decisão e retribui o olhar desafiador daquele garoto. Lucius não se intimida e repete a pergunta.

—O que é que você tá olhando, hein?

—Para uma linda garota. - responde Sidney, diretamente para Serena, que o observa com admiração.

—Se ela é linda assim imagina depois que tomar um banho... Aí! - diz Alisson, ao lado do amigo, que logo se cala após receber uma cotovelada no estômago dada de maneira não tão discreta por Sidney.

Serena se volta para Lucius e segura seu braço.

—Ei, o que deu em você? Eu preocupada com o Nick e é você que me arruma confusão?

—Não, não é nada disso! Eu só achei que... Essas pessoas, elas não gostam da gente. Eu... Só quis protegê-la.

—Tá! Mas não vamos dar mais motivos para não gostarem da gente. - Serena aos poucos se acalma, talvez Lucius tenha reparado em alguma maldade naquele garoto que ela não reparou, já que estava maravilhada por aquela fisionomia. Ela olha para ele e lhe dá um sorriso. - Lucius, obrigada!

Ele fica meio sem jeito, mas depois lhe retribui o sorriso. Nicolas se aproxima do grupo à frente e vê Ricardo conversando com Victoria. Então ele decide chegar logo até ficar do lado direito de Ricardo. Ele ainda consegue ouvir a última frase do garoto para a diretora: ‘Vai aceitá-los?’.

—Bom Sr. Berker! Sabes que o objetivo das entidades de ensino é não apenas ensinar, mas também preparar os alunos para os desafios da vida. Somos uma classe tão visada entre as criaturas místicas, e agora entre os comuns, que creio que os ensinamentos não são apenas para o controle de seus dons mágicos, mas também para que o aluno se conheça e sobreviva neste mundo tão conturbado atualmente. Formamos gerações por meio do conhecimento acumulado por anos de aprendizado. E não somos nós quem decidirá quem fará parte dessa nova geração...

—E aí, gente boa! Tão falando de mim? - diz Nicolas repentinamente.

—... Ou não. - completa Victoria ao ver Nicolas.

Tanto ela como Ricardo ficam calados. Ele resolve ficar do outro lado da diretora, dando a volta por trás dela. Ricardo o acompanha com os olhos. Agora que está mais perto, Nicolas percebe melhor as feições de Victoria. Seus cabelos, apesar de estarem presos, davam a entender que realmente eram curtos e cacheados. Não era branco em sua totalidade. A impressão que ele teve era de que eram cinza. Seu rosto mostrava as marcas do tempo, mas seus olhos verdes... Havia algo neles que parecia estar em desacordo com todo o resto, achou Nicolas. Pareciam estar mais vivos do que o resto do corpo.

—Que garoto impertinente! - diz Ricardo, olhando Nicolas de cima a baixo. - Você não teve educação não, Pivete! Não é assim que se cumprimentam as pessoas: “E aí, gente boa!”. Que palavras são essas?

—Ué! Por acaso vocês não são gente não? E creio que ‘pivete’ não seja uma maneira educada de se cumprimentar alguém... Pó de arroz!

—Meninos, parem com isso! - alerta Victoria, depois ela vira o rosto na direção de Nicolas - E você, garoto, tenha modos!

—Mas foi ele que começou, eu só...

Nicolas se enfurece ao perceber que Victoria não dava mais atenção às suas desculpas, voltando a olhar para frente. Também nota um ar de satisfação no rosto de Ricardo. “Você ganhou essa, Pó de arroz, mas espera só!”. Após alguns segundo de silêncio, ele decide falar.

—E aí, Dona! O castelo tá longe?

—Já disse que não sou sua dona.

—Tia?

—Deus que me livre!

—Velha?

—Sujeitinho mais ignorante! - interfere Ricardo - É Professora Victoria pra você. Se é que você vai chegar a ser aluno dessa escola.

—Então o castelo é uma escola. Que legal! Eu nunca fui numa escola.

—Nota-se! - afirma Ricardo.

—E parece que você também não. Não é, Ricardo Beco?

—GRR... É Berker, BERKER!

—Tanto faz... - Nicolas deixa Ricardo de lado e dirige sua atenção para Victoria - Enfim... Victoria! O que é que você ensina nessa escola? Olha! Eu sei ler e escrever... Digo, pelo menos algumas coisas que a Rose me ensinou. Meu pai me ensinou matemática... Digo, só a parte de somar e diminuir. Isso quando uma caixa de bebida vinha completa porque quando vinha pela metade, era mais difícil fazer as contas...

Victoria percebe que ele fala de coisas dos comuns, da vida cotidiana de pessoas normais. Mas se ele está ali é porque deve ter algum conhecimento da magia. “Pessoas comuns não conseguem passar pelos portais”, pensa a professora. Então ela tenta descobrir que tipo de magia ele possui.

—E quanto aos seus dons naturais, ninguém ti ensinou nada sobre eles?

—Dons naturais? - pergunta Nicolas, sem entender o que a diretora queria saber.

—É! O que já nasceu com você. - a professora procura ser mais clara - Aquilo que você consegue fazer sozinho, por conhecimento próprio, sem a interferência de outros.

—Bem... Eu lavo os banheiros lá de casa, apesar de a Rose achar que eles nunca ficam bons. Já tomo banho sozinho, se bem que eu gostava mais quando tomava com as meninas; e lavo minhas cuecas. É porque a Rose não gosta de lavar cueca de homem. E sei fazer barulho de pum no sovaco, querem ver?

—NÃO! - dizem Ricardo e Victoria, juntos.

Após esse estranho diálogo, os três ficam em silêncio. Victoria passa a pensar na sugestão de Ricardo de não aceitar Nicolas, e supõe que os outros do grupo sejam como ele. “Ricardo deve estar certo. Acho que o único dom mágico desse garoto é irritar os outros. Vou evitar suas perguntas. Se ele não for uma criatura mística é melhor não saber nada sobre nós. Mas como ele chegou até aqui? Será que minha magia...”.

—O castelo ainda tá longe? Tô com uma fome...

Victória permanece calada e Ricardo olha para Nicolas com desdém, voltando a olhar para frente.

—Professora Victoria, a Chave de Portal está próxima? - pergunta Ricardo.

—Sim, querido! Está logo ali.

—Portal? Não estou nem vendo o castelo. Logo ali onde? - também pergunta Nicolas.

Ele nota que ela não respondia suas perguntas enquanto que as feitas por Ricardo eram respondidas de maneira educada. O jeito como é ignorado o irrita. Então ele decide provocá-la para que não o trate como se não estivesse ali.

—Logo, logo... Logo aonde? Acho que esta velha tá ficando é cega, deve ser a idade.

—Como é burro! - retruca Ricardo - Você não achou que iríamos atravessar toda a Floresta do Sussurro, ou achou? Iria levar horas.

—Ah é, Pó de arroz! Então me diz como é que vamos...

Enquanto caminha, Nicolas sente algo estranho acontecendo ao seu corpo. Era como se, num rápido momento, passasse pelas águas de uma cachoeira, ou atravessasse uma cortina saindo de uma sala quente para um ambiente mais fresco, mas não havia nada a sua frente. De repente ele sente que o ar mudou a sua volta; uma brisa campestre que soprava o ar típico dos dias de verão. Não foi apenas o ar, mas a paisagem a sua frente também mudou, o céu, o chão. Cada vez que girava o corpo se deparava com uma imagem diferente. Pasmo, de olhos arregalados, nota que não era seu corpo que girava e sim sua cabeça. Estava ficando tonto e começa a cambalear. Ricardo ri do seu estado enquanto Nicolas vai ao chão. Victoria o observa e para de caminhar, fazendo com que os que a seguiam parassem também. Pressentindo que algo de errado aconteceu, Serena corre até Nicolas, sendo acompanhada por Lucius. Gabrielle e seus irmãos decidem ir também. Nicolas não chega a desmaiar, apenas fica sentado no chão com uma das mãos na testa e a outra no gramado, apoiando seu corpo.

—Nick! Nick! Você está bem? - pergunta Serena, que se ajoelha ao lado dele.

—Estou bem... Só meio tonto. Acho que é fraqueza.

—Ei, cara! Você não vai desistir agora que chegamos né? - diz Lucius, ajudando Serena a levantá-lo.

—Chegamos? Chegamos onde?

—Olha Nick! Ali! O castelo.

Serena vira o corpo dele na direção certa. Agora ele podia ver claramente. Não era ilusão ou outra peça que sua mente lhe pregava. Havia poucas árvores, indicando o início da Floresta do Sussurro. Mais adiante uma parte gramada e um campo bem grande com uma construção retangular de madeira. Próximo dali uma área com arbustos e muitas flores, um belo jardim. Em seguida um pequeno pátio e a entrada do castelo. Os muros eram enormes e com torres de vigia. Mesmo assim podia-se ver um pouco da parte de dentro. No centro havia mais torres: uma torre pequena, quadrada, outra maior atrás dessa e depois uma grande torre circular ao centro, com duas pequenas torres laterais circulares, uma de cada lado.

—Viiixeeee... Ele existe mesmo! - diz Nicolas, com um leve sorriso - Vocês tinham razão.

—Você está bem, garoto? Consegue caminhar? - pergunta Victoria. “Ele sentiu os efeitos da ‘Chave de Portal’, não passa de uma pessoa comum. Os outros também devem ser comuns. É bom mantê-los por perto para não alarmar os alunos”.

—Ah! Ah! Ah! Deve estar tão desnutrido que não se aguenta em pé. Ou então passou mal com o próprio cheiro. Ah! Ah! Ah!

—Cala sua boca! - ordena Serena, fazendo Ricardo calar-se - Não percebe que ele não está acostumado com essas coisas? Ele passou mal e ninguém veio ajudá-lo. É assim que vocês tratam as pessoas?

Serena passa a encarar a professora Victoria, que não se manifesta. Nicolas toca em seu ombro.

—Tá tudo bem, Serena! Já estou melhor. Obrigado!

—Ah... De nada, Nicolas! O que houve com o ‘Cabelo de fogo’?

—Ih, esqueci!

Ela o olha com uma careta, mas depois acabam sorrindo um para o outro.

—Com quem você pensa que está falando, garota? Vão lá pra trás!

—Não! Quero vocês aqui, ao meu lado. - diz Victoria, contradizendo Ricardo - Quando chegarmos ao castelo, tudo será esclarecido. Até lá, quero tê-los bem à vista. Vamos!

—Mas Professora, esse cheiro... Agora que eles estão na frente, vai vir todo pra trás. Isso não é bom pra minha pele. - comenta Michelle.

—Não se preocupe! Quando passarmos pelo Jardim das Delícias o cheiro vai passar. Até lá, não quero ouvir reclamações, de nenhuma das partes. Ouviu Senhor Berker, Senhor... Nicolas? Vamos!

E assim todos retornam a caminhada, percorrendo uma trilha que parece atravessar todo o lugar até a entrada do castelo. Victoria à frente, com Ricardo, Nicolas e seus amigos ao seu lado, e as outras crianças atrás, tendo que aguentar o cheiro caladas.